terça-feira, 21 de julho de 2015

E POR FALAR DE AMORES


(...) «Aqui há uns tempos fui à Escola S. João de Brito e estava a falar do meu Irmão Lobo para uma turminha de miúdos do 3º ano do 1º ciclo, e disse: «Bom, este livro, o Irmão Lobo, já é assim mais para adolescentes...». Queria pôr as coisas de uma forma que não soasse muito triste, e disse: «Bom, não sei como é que vos hei de dizer isto...». E há um miúdo que se levanta e diz: «Mas pode dizer, que nós percebemos.» E eu: «Pronto, então este livro é a história de uma família que se desmoronou.». E há outro miúdo, do outro lado da sala, que diz: «A minha família também se desmoronou.» Isto tocou-me imenso. Houve um silêncio naquela sala que foi de comunhão. Todos percebemos do que estávamos a falar.» (...)

Este é um excerto da uma entrevista para o programa Escrever na Água, da RDP África, conduzida pela jornalista Fernanda Almeida. O pretexto foi o Amores de Família, que saiu recentemente pela Editorial Caminho, um livro que cruza os arquétipos da mitologia greco-latina com algumas famílias que vivem mesmo ao nosso lado. Famílias funcionais e nutritivas, em que se valoriza o amor, o carinho e a ética do cuidar, forças essenciais numa sociedade tão fragmentada como a nossa. Falámos também de literatura para crianças, de mediadores de leitura apaixonados, de como nasce e se fixa a ideia para um livro, do processo de ilustração com a Marta Monteiro, da resistência dos adultos a livros fora da norma e, enfim, de outras coisas que podem surgir numa conversa que flui como a água. Com a Fernanda Almeida é sempre assim.

A entrevista demora meia hora (entre o minuto 00:00 e 29:55) e pode ser ouvida na íntegra aqui. Pode ser útil para os professores que estejam a pensar trabalhar o Amores de Família no próximo ano lectivo, em especial para a abordagem dos temas clássicos numa perspectiva literária e estética. O livro entrou agora para o Plano Nacional de Leitura, área de Apoio a Projectos - Educação para a Cidadania (3º, 4º, 5º e 6º anos), que é justamente onde deve estar.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 14


   «Foi um Verão estranho e sufocante, aquele em que electrocutaram os Rosenberg. Estava então em Nova Iorque sem saber ao certo porquê. As execuções incomodam-me. A ideia de se ser electrocutado dá-me a volta ao estômago, e os jornais não falavam de outra coisa: cabeçalhos atrás de cabeçalhos olhando-me esbugalhados em todas as esquinas e entradas de metro tresandando a amendoim. Embora nada daquilo tivesse a ver comigo, não conseguia deixar de imaginar como seria ser queimado vivo até à mais ínfima parcela do nosso corpo.
   Deve ser a pior coisa do mundo.»

Sylvia Plath, A Câmpanula de Vidro, Assírio & Alvim, 1988, tradução de Mário Avelar. Originalmente publicado em 1963.

sábado, 18 de julho de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 13


«Chamo-me Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e vivo com a minha irmã Constance. É frequente pensar que se tivesse tido um pouco de sorte poderia ter nascido lobisomem, porque o anular e o dedo médio das minhas mãos têm o mesmo comprimento, mas tive de me contentar com aquilo que tenho. Não gosto de me lavar, nem de cães ou barulho. Gosto da minha irmã Constance, de Ricardo Coração de Leão e do Amanita phalloides, o cogumelo da morte. Todas as outras pessoas da minha família estão mortas.»

Shirley Jackson, Sempre Vivemos no Castelo, Cavalo de Ferro, 2010, tradução de Maria João Freire de Andrade. Originalmente publicado em 1962.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

GRANDE AFONSO



Afonso Cruz venceu esta semana a 19ª edição do Prémio Nacional de Ilustração com o livro Capital, uma obra da colecção Imagens que Contam (Pato Lógico), já assinada por alguns dos nossos melhores ilustradores: Marta Monteiro (Sombras), André da Loba (Bestial), Catarina Sobral (Vazio), João Fazenda (Dança) e Bernardo P. Carvalho (Verdade?!). Como o nome da colecção sugere, trata-se de livros sem texto, ancorados num título de uma só palavra que dá o mote para a narrativa de 32 páginas que se segue. Ainda há muito desconhecimento (e também preconceito intelectual e falta de curiosidade) em relação a este género de picture books - ou «álbuns puros», se preferirem - que se caracterizam pela recusa do primado da palavra, durante tanto tempo responsável pela clivagem hierárquica entre o texto e a ilustração. A prová-lo, como exemplo negativo desta tendência, temos aí uma quantidade de livros palavrosos, chatos, quadrados e absolutamente irrelevantes.

Graças ao trabalho de editores e autores, entre outros agentes (e honra seja feita ao investimento continuado da actual Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas), o panorama da literatura infanto-juvenil mudou muito nos últimos vinte anos, felizmente; e Afonso Cruz, com a sua vivência singular da arte e da criatividade, sem constrangimentos étarios, contribuiu para essa revolução. É um autor completo e complexo, de quem nunca sabemos bem o que esperar, e que já nos deu livros tão bons e tão peculiares como A Contradição Humana (Caminho), O Livro do Ano (Alfaguara), Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho) ou essa pequena pérola, rara nas livrarias, que dá pelo nome de Os Pássaros (APCC), só para falar da sua produção que acolhe (sublinhado meu) os leitores mais novos. A bibliografia completa de Afonso Cruz pode ser conhecida aqui.

A leitura de Capital é bastante explícita e não deixa dúvidas quanto à sujidade do chamado «vil metal», desde a primeira contaminação das personagens até à apropriação absoluta do Sistema Solar. A página dupla das guardas finais evidencia, simbolicamente, os resultados desta digestão devoradora, com o porquinho-mealheiro a flutuar no lugar onde antes estava a Terra. Limpinho. Para os professores e mediadores de leitura que queiram trabalhar esta obra recém-premiada de Afonso Cruz, sugiro que o façam em complemento com um excelente texto dramático, levado à cena no Centro Cultural de Belém e agora fixado em livro: A Cruzada das Crianças - Vamos Mudar o Mundo (Alfaguara).

Inspirada num acontecimento adstrito aos «ficheiros secretos» da História, um movimento semiespontâneo de milhares de crianças e adolescentes que, em 1212, partiram em peregrinação por terras de França e da actual Alemanha, empenhados na missão insana de libertar Jerusalém dos muçulmanos, A Cruzada das Crianças - Vamos Mudar o Mundo é seguramente a obra mais política de Afonso Cruz destinada a este público. Intercalando ilustrações, notícias de jornais e fotografias de manifestações com crianças, um pouco por todo o mundo (excelente trabalho de design gráfico de Maria João Lima), é um livro de uma inteligência poética e argumentativa desconcertantes.

«Dedicado a todas as crianças que já fui», diz o autor em epígrafe, a peça parte desta possibilidade extraordinária: como seria se milhares de crianças resolvessem questionar todas as instituições e os adultos que as dirigem? Crianças para quem o território da justiça é sempre maior do que o mapa das leis; crianças para quem a semiótica e a retórica dos «crescidos» não interessa patavina; crianças que só querem respostas directas, honestas e verdadeiras:

(...)
Polícia (condescendente): Não podem andar assim, aos milhares, a reclamar coisas tão importantes.
Criança 1: Não se pode reclamar coisas importantes?
Polícia: Não têm idade para isso. Vocês não percebem.
Criança 2: Com que idade é permitido?
Polícia: A partir da idade em que sabem o que querem e não andam a brincar com as pessoas.
Criança 1: Quando ficarmos sentados no sofá sem tempo para brincar?
Criança 2: Estamos presos?
Polícia: Não estão presos. Estamos à espera dos vossos pais.
(...)

Com imagens ou sem imagens, Afonso Cruz é um autor capital. E estes dois livros só nos enriquecem ainda mais. Agora chega de trocadilhos. Vão ler.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

A VIDA EM ANEXO


A 15 de Julho de 1944, faz hoje 71 anos, uma rapariga judia escrevia num diário secreto a uma amiga imaginária: «...se estás a pensar que a vida aqui no Anexo é mais difícil para os adultos do que para os jovens, a resposta é não, sem dúvida que não. As pessoas mais velhas têm uma opinião sobre tudo e estão seguras de si próprias e das suas ações.»

Se há nomes próprios que reflectem algo do carácter do seu portador, a frontalidade e a argúcia de Anne Frank transparecem no que lhe foi atribuído à nascença (em inglês, «frank» é sinónimo de «sincero», «honesto», «directo»). Do horror generalizado até aos familiares e residentes no «anexo», expressão por que ficou conhecida a parte da casa de Amesterdão onde oito pessoas viveram escondidas durante dois anos, Anne não foi branda nas palavras. Quando veio a público a primeira edição do diário, em 1947, a opção de Otto Frank, pai de Anne e único sobrevivente, foi eliminar os trechos mais íntimos ou então pouco abonatórios para a família, em especial para a mãe. «Tenho uma característica predominante que deve ser óbvia para qualquer pessoa que me conheça: tenho um grande autoconhecimento [«autocrítica» na tradução anterior de Ilse Losa para a Livros do Brasil]», escreveu Anne: «Em tudo o que faço, consigo observar-me como se fosse uma desconhecida. Consigo pôr-me de fora da Anne de todos os dias e, com imparcialidade e sem a tentar desculpar, observar o que ela está a fazer, tanto o bom como o mau.»

Este grau de honestidade só é possível quando a capacidade de observação é aliada do pensamento crítico e reflexivo. Mais: quando a vida interior de uma adolescente brutalizada ainda não foi totalmente destruída pelo «lado pior da natureza humana, quando toda a gente duvida da verdade, da justiça e de Deus». Pergunto-me que esforço intolerável teremos ainda nós de fazer - adultos, mas sobretudo adolescentes e crianças - para resistir à distribuição diária de pequenas e grandes mentiras a que somos expostos. Mais do que um testemunho histórico, O Diário de Anne Frank, hoje integrado nas Metas Curriculares de Português (8º ano), é uma obra «que nunca acabou de dizer o que tem a dizer» (para recorrer à definição de Italo Calvino em Porquê Ler os Clássicos?), precisamente porque se construiu ancorada na verdade essencial de um indivíduo, uma rapariga morta aos 15 anos num campo de concentração.

Recentemente, numa visita que fiz à escola EB1 de São João de Brito, em Lisboa, uma professora desassombrada comentava: «Outro dia, o meu filho perguntou-me "mãe, o que é a esperança?", e eu não sabia o que lhe dizer... E agora acontece isto: queremos que eles leiam O Diário de Anne Frank, mas não lhes sabemos explicar o que é a esperança.»

Possa a vida prosseguir e prosperar, mas não em anexo. 

O Diário de Anne Frank - versão definitiva
Tradução de Elsa T. S. Vieira
Livros do Brasil, 2015

sexta-feira, 10 de julho de 2015

SEI O QUE FIZESTE NO VERÃO PASSADO


Finalmente o Verão, de Mariko Tamaki (texto) e Jillian Tamaki (ilustração), duas primas de ascendência japonesa nascidas no Canadá, é o quarto título publicado na colecção Dois Passos e um Salto, «para adolescentes e outros leitores mais crescidos», como desde o início foi apresentada pela editora Planeta Tangerina. Nada de equívocos, portanto. A linguagem explícita que aqui aparece é até bastante soft, se comparada com alguns «diálogos» avulsos que captamos na rua ou perto de qualquer escola secundária. Se há pais, professores, livreiros e adultos em geral que preferem olhar para os adolescentes como se os pudessem conservar num frasco de formol delicodoce, talvez seja porque se esqueceram dessa época bruta, incerta, confusa e sempre angustiante que se sucede à relativa previsibilidade da infância. Finalmente o Verão tem tudo a ver com isso e muito mais.

A maternidade é um dos temas que atravessam o livro de uma ponta à outra - e esta noção de «travessia» é, em si mesma, estruturante do ponto de vista narrativo. Primeiro, a travessia da família Wallace para a zona dos grandes lagos, um lugar idílico chamado Awago Beach onde desde há muitos anos passam as férias de Verão. Rose Wallace, adolescente magra e aérea como um galho, reencontra ali a amiga de infância, Windy, cujo corpo redondo contrasta com o seu e oferece já outra visão do feminino, menos agreste e mais maternal. Mas perceberemos rapidamente algumas das razões da crispação de Rose: um aborto espontâneo da mãe às seis semanas, ainda por curar, transporta o mal-estar e as discussões do casal Wallace para o desejado retiro no seu éden privado.

Interligando-se com o cenário familiar, o quotidiano rude dos adolescentes e jovens adultos da localidade de Awago Beach - e o impacto de uma gravidez não desejada entre duas personagens - adensam o clima sufocante da teia de relações humanas. Surgem alguns presságios: as referências aos feiticeiros da tribo Huron, ancestrais habitantes daquela região do Canadá, agora convertidos em atracção turística; ou a fantasmática figura do homem que aparece a Rose quando ela foge para o lago, avisando-a do perigo dos relâmpagos. No entanto, nada nos prepara a iminência da tragédia nem para o final redentor do livro. E essa surpresa é um dos deslumbramentos desta novela gráfica em tons de azul, por isso não a estraguemos aqui.

Mas esta é, esssencialmente, uma travessia dos lugares cristalizados da infância, ainda com cheiro a gomas e refrigerantes e festas de pijama, para outros lugares insondáveis onde se fala (muito) de sexo, rapazes, casamento, filhos... Personagens que são, sobretudo, seres em transição: raparigas que gostariam de ser mulheres para serem desejadas; mulheres que gostariam de voltar a ser crianças só «para poder gritar e espernear», mulheres que não querem ter filhos porque elas próprias se sentem ainda crianças. A maternidade, fortemente simbolizada nas águas uterinas do lago, recorda que «a mãe natureza nem sempre é a pessoa mais simpática do mundo». Por vezes, navegamos em águas turvas ou desconhecidas. Há perdas de sangue e de filhos; há conversas cortadas a meio e mensagens não respondidas no telemóvel. Há a eterna incomunicabilidade das coisas brutais, e também o esforço que fazemos para lhes dar um nome. Onde faltam as palavras, exorbitam as onomatopeias, traduzindo emoções, cheiros, sabores, sensações, gestos, movimentos, sons. Do muito grande ao muito pequeno, o espaço de página faz convergir espaços antagónicos e tempos paralelos com absoluta mestria.

Muito mais poderia ser dito sobre Finalmente o Verão, livro que mereceu, com bastante polémica (ver aqui), o prestigiado Caldecott Honour, atribuído pela American Library Association, em 2015. É um daqueles livros que não hesitamos em classificar como obra-prima, por muito batida que esteja a palavra. E ainda bem que agora se escrevem tantas obras-primas na literatura infanto-juvenil. Mas nada de equívocos, novamente: este é um livro «para adolescentes e outros leitores mais crescidos», que muitos adultos deviam ler pelo menos duas vezes. Terminamos com a fala do homem do lago, que com o seu cão magro aparece junto de Rose, deixando-lhe um sábio conselho: «Algumas lições só se aprendem a doer, miúda. Não precisas armar ao pingarelho.»

Finalmente o Verão
Mariko Tamaki (texto)
Jillian Tamaki (ilustração)
Tradução de Isabel Minhós Martins
Planeta Tangerina

quarta-feira, 8 de julho de 2015

E NÓS, MÃE, PARA ONDE VAMOS DE FÉRIAS?


O Jardim Assombrado não foi de férias, muito pelo contrário: sucumbiu a uma avalanche de trabalho que fez os livros acumularem-se numa pilha rival à da roupa para passar a ferro, havendo agora que desbastar uma e outra. Começo por uma das novidades da Kalandraka, Gatinho e as Férias, o terceiro título da série iniciada com Gatinho e a Neve e Gatinho e a Bola. Não é muito fácil encontrar obras adequadas a pré-leitores (a partir dos 3/4 anos, diria) em que a aparente simplicidade é o resultado de um trabalho invisível que implica muita reflexão, bom senso e profundidade psicológica; um pouco como a indispensável colecção do Sapo, do holandês Max Velthuijs (1923-2005).

Partindo de situações familiares à vida interior das crianças, sempre realçando os tempos livres e as brincadeiras (sem i-pads nem consolas), faz-se aqui uma subtil apologia da oportunidade de aprender com situações inesperadas e mesmo geradoras de ansiedade. Neste caso, é a aproximação das férias a dar o mote: o que fazer com esses dias que interrompem a segurança das rotinas, seja ela falsa ou verdadeira? Um dos amigos do Gatinho não vai de férias porque o pai tem de trabalhar; outros vão sozinhos para casa da avó, na aldeia; outro passa metade das férias com o pai e outra metade com a mãe... Circunstâncias sociais comuns na vidas dos miúdos de hoje. Algum vocabulário pode ser desconhecido («espesso», «caldeira», «lomba», de O Gatinho e a Neve), mas guarda a oportunidade de aprender palavras novas com a ajuda das imagens e dessa força agregadora que preside às ligações parentais. Estes são livros ideais para leituras partilhadas entre adultos e crianças pré-leitoras, em que a figura nutritiva da mãe sobressai com o tal «bom senso» supracitado. Mais informação sobre o livro e os autores na página da Kalandraka, aqui.

Gatinho e as Férias
Joel Franz Rosell (texto)
Constance v Kitzing (ilustração)
Kalandraka