sábado, 24 de janeiro de 2009

A ENTREVISTA QUE NUNCA FIZ


Cada vez gosto mais de velhos, como disse no post anterior. Além do inegável truísmo – também estou a ficar velha –, há aqui uma espécie de má consciência, é verdade. Lamento não ter conhecido melhor alguns velhos da minha família, autênticos mananciais de histórias e testemunhos de um tempo que não vivi, mas cuja proximidade me assombra. Tenho um tio que fará, espero, cem anos em 2009. O meu Tio João emigrou clandestinamente de uma aldeia recôndita do Minho para a América, onde ajudou a construir prédios e linhas de comboio. Uma vez, quando já era jornalista e me sentia cheia de importância, disse-lhe que um dia lhe iria fazer “uma entrevista”, de gravador e tudo. Ele ficou entusiasmado. Sempre que eu ia à aldeia – a mesma aldeia onde passei parte da infância – o meu Tio João perguntava-me, cheio de esperança: “Então, Carla, quando é que fazemos a entrevista?” E eu, na estupidez dos meus vinte anos, e na estupidez dos meus trinta anos, sempre a adiar, sempre a deixar para a próxima vez. Até que a próxima vez foi se tornando cada vez mais esporádica e coisas de família se foram intrometendo pelo meio, para culminar numa ausência sem remissão possível. Apesar de voltar ao Minho de vez em quando, na Páscoa ou no Verão, há muitos anos que não vejo o meu Tio João. Mesmo que o pudesse ver, sei que está demasiado velho e doente para qualquer conversa desse género. Perdi a oportunidade de ouvir histórias que mais ninguém me poderá contar. E apesar de não ser dada a arrependimentos, porque acredito mais na aprendizagem do erro do que da virtude, se há coisa de que me arrependo, é dessa “entrevista” que nunca fiz.

(Fotografia de Rocha Peixoto, de 1901. Costumes da Serra de Arga. Edição do Museu Nogueira da Silva, Universidade do Minho)

4 comentários:

portuguesinha disse...

Compreendo o que quer dizer, acredito que todos nós passamos por essa fase. Pessoalmente, sinto-me tranquila, pois sei que soube dar muita atenção aos mais velhos e sei que estes sabiam que os valorizava - a eles, e aos conhecimentos que possuiam. Não sou de descriminar, sou de procurar riquezas! E os idosos, tantas vezes excluídos por serem considerados pessoas "desactualizadas", têm um valor, diria, histórico.

Eu fui mais além e fiz a minha entrevista com os meus. Uma conversa, a bem dizer... que foi registada em vídeo. Agora que também estou nos trinta, acho as questões que coloquei patéticas e pouco enquadradas, mas não quis induzir a nada, queria que fossem eles a contar o que lhes apetecesse.

Se ainda tiver alguém a quem interrogar, faça-o. Pode ser que se sinta mais rica, pode ser que não. Uma coisa é certa: não terá muito tempo para o voltar a fazer noutra altura. A idade a avançar faz-nos perceber, cada vez melhor, o valor do tempo e a riqueza da experiência dos mais velhos.

Anabela AG disse...

Belíssimo texto, cheio de uma lucidez enternecedora. Eu sei o que é essa sensação, da entrevista que nunca se fez, da sabedoria que nunca se espremeu gentilmente de quem a tinha, porque a pouca lucidez dos vinte anos e dos trinta (e às vezes dos quarenta) sempre achou que havia outras prioridades e que um dia, um dia...

Carla Maia de Almeida disse...

Obrigada, Anabela. O meu Tio João morreu a semana passada.

Anabela AG disse...

Mesmo depois de uma viagem ao Cosmos daqueles que mais amamos, arranjamos sempre maneira de conversar, de perguntar. De estarMOS. Lamento a tua perda.