domingo, 31 de maio de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 10


   «Os escritores que engendram histórias sobre outros escritores, não há quem o não saiba, arriscam-se a trazer à luz do dia a pior espécie de literatura. Inicia-se uma narrativa pela frase: "Craig esmagou o cigarro no cinzeiro e dirigiu-se à máquina de escrever", e não haverá um único editor nos Estados Unidos que sinta o desejo de ler a frase seguinte.
   Não se aflijam: garanto-vos que o que se vai seguir é uma simples narrativa de ficção, talvez um tanto insensata, acerca de um motorista de táxi, de um astro de cinema e de um psicólogo de crianças. Mas, pelo menos durante um instante, tereis de ter paciência, pois também irá aparecer em cena um escritor. Não lhe vou chamar Craig, e posso garantir-vos que não será a única pessoa sensível entre todas as personagens, mas iremos encontrá-lo ao longo desta narrativa e é preferível que contem com ele, como criatura desairosa e embaraçante, dado que assim são, quase sempre, os escritores, quer na ficção, quer na vida.»

Richard Yates, Construtores, in Onze Tipos de Solidão, Livraria Bertrand, s/ data, tradução de Bertha Lopes. Originalmente publicado em 1962.

sábado, 30 de maio de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 9


  «Sou americano, nascido em Chicago - Chicago, aquela cidade sombria -, e encaro as coisas da maneira que aprendi a fazer sozinho, em estilo livre. Vou, portanto, fazer o relato à minha maneira: o que bater primeiro, é o primeiro a entrar; às vezes uma pancada inocente, outras nem tanto. Mas o carácter de um homem é o seu destino, diz Heraclito, e no fundo não há forma de disfarçar a natureza das pancadas, nem fazendo um tratamento acústico na porta nem cobrindo os nós dos dedos com uma luva.
  Toda a gente sabe que não existe primor nem exactidão na supressão; quando se corta uma coisa, acaba-se por amputar o que está ao lado.»

Saul Bellow, As Aventuras de Augie March, Quetzal, 2010, tradução de Salvato Telles de Menezes. Originalmente publicado em 1953.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

ALICE JÁ NÃO MORA AQUI


Tinha de partilhar aqui esta fotografia, eu que não percebo nada de fotografia. Porque foi distinguida num concurso da Gulbenkian, A Terra Como um Jardim (Prémio do Júri), e sobretudo porque é da autoria de um amigo chamado Fernando Lopes dos Reis, que umas vezes tratávamos por Paulo e outras por Fernandinho (esqueçam a lógica). Não é fotógrafo profissional, não vale a pena googlar. Conheço-o desde o tempo em que comprávamos singles e LPs em vinil e tínhamos o gozo de ler e decorar as letras das canções, dando graças quando estas apareciam no interior do disco. Portanto, estão a ver os séculos... Não percebo nada de fotografia e não me atrevo a comentar a luz e o enquadramento e por aí fora, mas sei que quem olha assim para as árvores vê além do visível e é sempre isso que me interessa; é sempre isso que distingue um olhar poético de um olhar concreto e banal. Os anos vão passando e começo a reparar nas pessoas da minha geração que se salvaram da morte por suicídio, overdose e doenças várias, todas elas estúpidas e demasiado rápidas. Se me dissessem que iria escrever isto há 30 anos, diria que estavam malucos, mas os anos passam e uma pessoa aprende a dar valor a certas coisas, se não for arrogante ou autista de todo. Enfim, que grande relambório só para dizer que estou orgulhosa por ter esta foto no meu Jardim Assombrado (fica a matar, na verdade), com a devida permissão do autor: Fernando, Fernandinho, Paulo Reis, Sonic Vessel ou o que ele quiser. A foto tem um título: Alice Já Não Mora Aqui, como o filme do Martin Scorcese que todos nós vimos, os da geração do vinil. E ainda que o disfarcemos, estamos sempre à procura uns dos outros, nas nossas moradas frequentemente extraviadas, perdidas, incompletas, rasuradas. Estamos sempre à procura uns dos outros e ficamos contentes quando, por acaso, nos encontramos no abraço de uma árvore.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

CONVITE


Começa hoje a Feira do Livro de Lisboa, para durar até 14 de Junho. E é já neste primeiro fim-de-semana - domingo, 31 de Maio, às 18h30, na Praça Leya - que acontece o lançamento do Amores de Família, meu recente livro para a Caminho A apresentação será feita pela jornalista e directora da revista Pais & Filhos, Helena Gatinho, a quem muito agradeço, e lá estarei com a Marta Monteiro, autora das lindíssimas ilustrações que podem ver no convite. Se não forem à praia nem ao Estádio do Jamor, apareçam, porque a conversa vai ser boa.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

DOIS REBELDES


Quase ao mesmo tempo, a editora Relógio d'Água fez sair dois novos títulos da colecção Universos Mágicos. De Mark Twain, Viagens de Tom Sawyer (Tom Sawyer Abroad), uma das sequelas de As Aventuras de Tom Sawyer, já publicado na mesma colecção. E com uma nova tradução de Alexandre Pastor (directamente da língua sueca, incluindo algumas notas úteis), surge também Pippi das Meias Altas, de Astrid Lindgren, obra publicada originalmente em 1945 e já então motivo de controvérsia. De facto, entre as personagens femininas mais subversivas da literatura infantojuvenil, desde Alice às meninas mal comportadas dos álbuns de Babette Cole, é difícil encontrar quem manifeste tanta indiferença pelas instituições sociais, a par de um sentido elementar de justiça e liberdade individual. Uma espécie de anarquista, portanto.

terça-feira, 26 de maio de 2015

COM O TEMPO: PRÉMIO SPA/RTP 2015


Confesso que é um dos meus álbuns preferidos do catálogo Tangerina, pela inteligência com que palavras e imagens se conjugam para explicar um tema tão difícil de materializar. Com o Tempo, de Isabel Minhós Martins (texto) e Madalena Matoso (ilustração), foi o vencedor dos prémios da Sociedade Portuguesa de Autores/RTP, entre os nomeados deste ano para Melhor Livro Infantojuvenil. O Planeta Tangerina bisou com a representação de Supergigante, de Ana Pessoa (texto) e Bernardo Carvalho (ilustração), e a Orfeu Negro voltou à liça com Hoje Sinto-me, de Madalena Moniz (texto e ilustração). Parabéns a todos!

ERA UMA VEZ UM RAPAZ


«Um artista tem sempre os olhos postos na sua infância», disse Tonino Guerra (1920-2012), poeta, escritor e argumentista, numa entrevista à Pública. Já a tinha citado num post dos primórdios do Jardim Assombrado, Caminhos da Infância. Recordei-a a propósito de José Fanha e de Era Uma Vez Eu (Booksmile), um livro feito de pequenas histórias que transmitem as emoções de uma criança perante os segredos, as estranhezas e as interrogações do mundo à sua volta. Por exemplo, sentir-se protegido debaixo da mesa da sala de jantar, acreditar que a mítica carrinha itinerante da Gulbenkian pertencia a uma tal Senhora Dona Gulbenkian ou que havia (e há!) um lago cheio de plantas carnívoras lá para os lados do Largo da Luz. Se não acreditam, vão lá ver.

O lançamento de Era Uma Vez Eu é hoje, às 18h30, no Piso 7 do El Corte Inglés (Lisboa), com apresentação de Eduardo Sá.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

MEDIAÇÃO LEITORA AVANT LA LETTRE


William Wordsworth, poeta romântico inglês (1770-1850), disse em poucas palavras o que é a mediação e a promoção da leitura.

POEMAS PARA BOCAS PEQUENAS


Nos primeiros anos de vida, quando estamos ainda próximos do nosso estado de natureza animal e intuitiva, somos facilmente enfeitiçados pelo ritmo, pela melodia, pelo movimento, pelo jogo lúdico e descomprometido. A primeira ligação às palavras e à linguagem que nos «civiliza» faz-se pela voz e pelos sons circundantes que entram na barriga da mãe como numa caixa de ressonância, levantando arcos e abóbadas que sustentarão um mundo crescente de significados. Não mais a voz humana soará tão pura, tão solta, tão des-racionalizada. Vem esta deambulação regressiva a propósito de um audiolivro acabado de editar pela BOCA, o quarto da colecção Boca Júnior: Poemas para Bocas Pequenas, com música e interpretação de Margarida Mestre e António-Pedro. Começou por ser um recital de poesia para crianças dos três aos cinco anos, encenado para o Teatro Maria Matos e entretanto transposto para outros palcos, e agora materializou-se num suporte ainda mais itinerante. Pode ser ouvido em casa, no carro, no avião ou noutros lugares mais imaginativos. Mais do que um livro acompanhado de CD, é uma obra completa em que tudo dança: os textos poéticos seleccionados (e escritos, em alguns casos) por Margarida Mestre; a música interpretada por António-Pedro e um lote de músicos convidados; as ilustrações de Marta Madureira e o grafismo de Pedro Serpa; os desafios lúdico-filosóficos «para fazer» e «para pensar», no fim de cada canção (com a colaboração de Dina Mendonça); as fotografias e os vários textos de apoio que acompanham a edição. Tudo, tudo um primor. Vejam mais (e ouçam) aqui.

Amanhã, 23 de Maio, às 18h00, a BOCA convida toda a gente a assistir ao lançamento de Poemas para Bocas Pequenas no Teatro Maria Matos (Lisboa), onde no final da apresentação por Susana Menezes, João Bonifácio e moi-même acontece um mini-concerto. Para bocas pequenas e bocas grandes, claro.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

BLIMUNDA DE MAIO


Imperdível, como sempre, o último número da Blimunda, revista cultural digital da Fundação José Saramago, traz um resumo das novidades infantojuvenis que vão passar pela próxima Feira do Livro de Lisboa, entre 28 de Maio a 14 de Junho (a que se seguirá a do Porto). O texto de Andreia Brites está organizado por editoras e, no que toca à Caminho, Gato Procura-se, de Ana Saldanha, e o nosso Amores de Família são os dois livros em destaque (págs. 60-61). Atenção também ao artigo dedicado ao novo título da colecção Dois Passos e um Salto, da Planeta Tangerina: Finalmente o Verão, de Jillian Tamaki e Mariko Tamaki, uma novela gráfica crossover para leitores de estômago forte... A Blimunda pode ser lida online ou descarregada em PDF no Scribd ou no site da FJS.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

PRÓXIMAS FORMAÇÕES


Terminam hoje as inscrições para o II Encontro de Literatura para a Infância e Juventude, na Escola Superior de Educação de Lisboa, que acontece no próximo sábado. O tema é a mediação leitora (ou, dito de forma mais bonita, «Livros de Mão em Mão») e compete-me iniciar o programa logo depois da sessão de abertura, às 9h30. Está tudo aqui. Já no mês de Junho, também num sábado, na Biblioteca Municipal de Ovar, farei uma formação de seis horas no âmbito da organização da rede de Bibliotecas da CIRA - Região de Aveiro. As inscrições são gratuitas e terminam a 28 de Maio. Informações pelo telefone 256 586 478 ou biblioteca@cm-ovar.pt.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

FAMÍLIAS FUNCIONAIS




Sexta-feira, 15 de Maio, foi Dia Internacional da Família e dia de Amores de Família. Em tempo recorde, a jornalista Salomé Pinto, do Porto Canal - delegação Lisboa, fez uma óptima peça de reportagem sobre o tema, tomando o meu livro e da Marta Monteiro como enquadramento para esta ideia que defendo: uma família funcional é uma família em que há respeito, confiança, comunicação, apoio mútuo, carinho, compreensão, autonomia, liberdade e outras qualidades que compõem a palavra «amor». Entendo outras sensibilidades, mas a minha definição de família está muito, muito além do modelo clássico pai + mãe + filho(s). Família é quem nos acolhe e quem nos trata bem, ponto. Não é uma questão de crença ou descrença, mas de consciência. Nos últimos dez anos, houve um aumento de 49% de famílias monoparentais, de 276 mil para 411 mil (fonte: Pordata). Conheço várias, nenhuma tem a vida facilitada. São «menos famílias» do que as outras? Porquê? A partir do momento em que um papel é assinado? Era o que faltava, que lhes fosse também negado, por pressão social e por convenções anacrónicas, o direito de constituirem e viverem o seu próprio «amor de família». Num trabalho sério, reflectido e original, a jornalista Salomé Pinto levantou uma ponta do véu. Muito há a dizer e a pensar sobre este tema. E, sobretudo, muito há a fazer.

domingo, 17 de maio de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 8


«Um dia, já eu era velha, um homem dirigiu-se-me à entrada de um lugar público. Deu-se a conhecer e disse-me: «Conheço-a desde sempre. Toda a gente diz que você era bonita quando era nova, vim dizer-lhe que, para mim, acho-a mais bonita agora do que quando era jovem, gostava menos do seu rosto de mulher jovem do que daquele que tem agora, devastado.»

Marguerite Duras, O Amante, Difel, s/ data, tradução de Luísa Costa Gomes e Maria da Piedade Ferreira. Originalmente publicado em 1984.

sábado, 16 de maio de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 7


«Quando Genghi, o Resplandecente, o maior sedutor que jamais surpreendeu a Ásia, atingiu os cinquenta anos, deu-se conta de que tinha de começar a morrer. A sua segunda mulher, Murasaki, a princesa Violeta, que ele tanto amara através de tantas infidelidades contraditórias, precedera-o num desses Paraísos aonde vão os mortos que conquistaram algum mérito durante esta vida inconstante e difícil, e Genghi atormentava-se por não conseguir recordar exctamente o seu sorriso ou o esgar que esboçava antes de chorar.»

Marguerite Yourcenar, O Último Amor do Príncipe Genghi, in Contos Orientais, Dom Quixote, 1986, tradução de Gaetan Martins de Oliveira. Publicado originalmente em 1938.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

LIVROS PREMIADOS, 4


Com cinco importantes distinções bem explícitas na capa, quer para o texto quer para a ilustração, Sete Minutos Depois da Meia-Noite (Editorial Presença) é uma novela juvenil ilustrada, não chegando a ser exactamente uma novela gráfica. Mas as ilustrações a preto e branco de Jim Kay, na sua expressiva fantasmagoria simbólica, têm um papel relevante nesta história, e não se percebe bem por que motivo o seu nome foi arredado da capa, também na edição original inglesa (A Monster Calls). O tema é pesado, como é hábito nestes tempos a ferro e fogo: Conor O'Malley, um miúdo de 13 anos, enfrenta a morte iminente da mãe, vítima de cancro terminal, depois de o pai ter saído de casa para constituir uma nova família (mais cool) nos Estados Unidos. Há uma relação difícil com a avó materna e um cerco de bullying à sua volta, criando um reduto de solidão e revolta que passam visceralmente para o leitor, ainda que não se trate de literatura de primeira água. O estilo de Patrick Ness, que elaborou o texto a partir de uma ideia original de Siobhan Dowd, é curto e seco, com grande ênfase nos diálogos e nas imagens. Pelo meio, há histórias dentro da história, contadas pela figura do Monstro. É um bom livro para oferecer a adolescentes e pré-adolescentes (a partir dos 12 anos, talvez) que gostem de temas fortes, crus e realistas. Ou que também estejam a enfrentar os seus próprios monstros.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

LIVROS PREMIADOS, 3


Duas figuras públicas de reconhecida projecção social e política, dois irmãos, falavam numa entrevista à TSF do seu percurso profissional, a que atribuiam grande importância. «E os vossos pais, elogiavam esse trabalho?», perguntou o jornalista, a dado passo. Responde a voz feminina, num tom que nada tinha de pesaroso nem melancólico: «Não. Na nossa família sempre houve um grande pudor em manifestar sentimentos.» Desliguei o rádio, por manifesta falta de paciência. Alguns dias antes, tinha recebido pelo correio este livro de Simona Ciraolo, vencedor do Sebastian Walker Prize for Illustration 2014. É um álbum recomendado para crianças entre os três e os seis anos, sobre uma ilustre e antiga família de cactos que não gosta de «invadir o espaço dos outros»; por exemplo, dando abraços. Um dos elementos da família sai fora da linha e essa opção terá os seus efeitos. Não vou contar o fim, para não perder a graça. Quero um Abraço tem a chancela da Orfeu Negro e já se encontra por aí. 

quinta-feira, 7 de maio de 2015

FLORES MÁGICAS


Flores Mágicas (Livros Horizonte) é uma das preciosidades do ano editorial. Li algures que este livro é um tratado de mindfulness (ou «consciência plena»), termo circunscrito à área do bem-estar e do desenvolvimento pessoal. Pode ser. É um livro sobre a arte de reparar nas coisas que nos rodeiam (pessoas, flores, animais...) e prestar-lhes a devida atenção, sem necessidade de palavras. A figura infantil disfarçada de Capuchinho Vermelho é só para despistar. Aqui não há lobos bons nem lobos maus. Há um autor da ideia (Jon Arno Lawson) e um autor da ilustração (Sydney Smith). Parceria invulgar, já que os álbuns sem texto são habitualmente assinados pela mesma pessoa. Esta entrevista desvenda parte do processo e algumas páginas.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

JOÃO PEDRO MÉSSEDER EM BRAGA


À semelhança do que já aconteceu com outros autores, o Instituto de Educação da Universidade do Minho vai dedicar um dia de comunicações centradas na obra de João Pedro Mésseder, nome literário de José António Gomes. O primeiro é co-autor (com Francisco Duarte Mangas) de dois dos meus livros de cabeceira: Breviário do Sol e Breviário da Água, ambos editados pela Caminho, em 2002. O segundo é docente de literatura na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto. Foi a primeira pessoa que entrevistei nesta área, há coisa de quinze anos, quando ainda só fazia jornalismo. E também por culpa da sua imensa sabedoria e paciência (de professor?), meti-me nesta embrulhada da literatura infantojuvenil, da qual não penso livrar-me tão cedo. Gosto muito de ambos. Não consigo decidir-me.

terça-feira, 5 de maio de 2015

LIVROS PREMIADOS, 2


Também considerado o melhor livro de literatura infantojuvenil pelos prémios Newbery, atribuídos pela Associação Americana de Bibliotecas, foi agora publicado pela Booksmile a versão semificcionada da história de Ivan, um gorila macho submetido a 27 anos de cativeiro num centro comercial manhoso de autoestrada. Retirado da selva ainda bebé, Ivan foi uma espécie de brinquedo de família até ao momento em que as suas gracinhas se tornaram cansativas e a roupa de miúdo deixou de lhe servir. A família desfez-se e Ivan foi posto a render. Um clássico, no seu género. Para quem ache que estamos neste mundo para nos servirmos dos animais, a história pode ser indiferente; e basta pensar nesses 27 anos para constatar como a espécie humana consegue ser tão miseravelmente indiferente. Com a ajuda de uma reportagem da National Geographic, o caso tornou-se falado pela opinião pública, essa entidade abstracta de pulso intermitente, e Ivan encontrou um novo habitat no Jardim Zoológico de Atlanta, junto de outros gorilas, onde viveu até aos 50 anos. Katherine Applegate, escritora norte-americana que já vendeu 40 milhões de livros, conta como tudo aconteceu em O Único e Incomparável Ivan. O que não aconteceu é imaginado, mas com contenção e sem ponta de lamechice, o que é obra. Mais informação aqui.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

LIVROS PREMIADOS, 1


Talvez seja prematuro fazer desta coincidência uma tendência, mas nota-se a preocupação, por parte de algumas editoras, de traduzir em tempo útil livros de reconhecida qualidade, nomeadamente os distinguidos com prémios relevantes na área da literatura infantojuvenil. É o caso de Flora & Ulisses (Presença), uma novela juvenil que mereceu a Newbery Medal de 2014, atribuída pela American Library Association, e que também assinala o regresso de Kate DiCamillo aos nossos escaparates. Os títulos anteriores foram publicados pela Gailivro. Agora que está em preparação o próximo número da LER, aqui fica o texto publicado na edição nº 137: 

«Tal como Desperaux, protagonista do livro e do filme de animação homónimo (A Lenda de Desperaux), também Ulisses é «um herói improvável», talvez mesmo o superlativo da improbabilidade na galeria dos heróis de Kate DiCamillo: é um esquilo voador, compreende os humanos, sabe escrever à máquina e é sensível à poesia de Rilke. Quanto a Flora, nas palavras de uma mãe escritora e neurótica (parece que não há forma de evitar o cliché), «é uma criança estranha», uma céptica assumida cuja filosofia de vida se traduz no produto de decepções várias, a começar pela separação dos pais: «Não tenhas esperança. Em vez disso, observa», repete Flora para si mesma, enquanto consulta de memória o livro Podem Acontecer-te Coisas Terríveis!, um manual de sobrevivência para crianças ansiosas. Apesar de tudo, Flora tem esperança – e o leitor tem história. De amizade, de coragem e de perdão, a trilogia de valores em que se sustenta a obra de Kate DiCamillo, profundamente influenciada pela tradição do sul dos Estados Unidos. Fantasia com um pé no realismo, Flora & Ulisses é uma novela indicada para leitores pré-adolescentes. Descontando as quebras no ritmo narrativo e algumas cedências aos estereótipos, DiCamillo continua a dotar os seus personagens com a mesma estranheza inspiradora que encontrámos em Por Causa de Winn-Dixie, A Libertação do Tigre, A Lenda de Desperaux e A Odisseia de Edward Tulane, todos traduzidos em português pela Gailivro. É muito bom tê-la de volta»

domingo, 3 de maio de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 6


«Conhecêmo-lo naqueles tempos de incerteza em que o facto de cada um ser dono de si e dos seus bens nos bastava para vivermos contentes. Nenhum de nós, julgo eu, possui hoje quaisquer bens e ouço dizer que muitos perderam a vida negligentemente; mas estou certo de que os poucos que ainda vivem, não estarão tão faltos de vista que deixem passar, por entre as brumas da respeitabilidade dos jornais que lêem, as notícias sobre as várias insurreições de nativos no Arquipélago Malaio.»

Joseph Conrad, Karain: Uma Recordação, in Histórias Inquietas, Assírio & Alvim, 1986, tradução de Carlos Leite. Publicado originalmente em 1898.

sábado, 2 de maio de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 5


«Esta é a história mais triste jamais contada. Convivemos com os Ashburnham durante nove temporadas de Nauheim em extrema intimidade ou, melhor dizendo, com um relacionamento muito solto e natural e ao mesmo tempo tão chegado como uma luva à nossa mão. A minha mulher e eu conhecemos o Capitão e Mrs. Ashburnham o melhor que se pode conhecer alguém e no entanto, num outro sentido, nada sabíamos deles. Este estado de coisas, ao que creio, só é possível com ingleses, dos quais, até este dia em que me sento a reflectir sobre o que conheço deste triste caso, nunca soube absolutamente nada. Até há seis meses nunca tinha estado em Inglaterra e seguramente nunca tinha sondado o fundo de um coração inglês. Os baixios, conhecia.»

Ford Madox Ford, O Bom Soldado, Teorema, 2004, tradução de Telma Costa. Originalmente publicado em 1915.