quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

ADEUS, DODÓ


Querido 2014: começaste mal, continuaste pior, mas acabas bem (embora todos os noticiários o desmintam). É isso que te safa. Isso e os «momentos especiais» do ano que o Facebook seleccionou aleatoriamente, admito que com extremo bom gosto. E houve mais, muitos mais, mas tu não ficaste a saber. Dos outros, nem falar. Pira-te depressinha e, já agora, põe o lixo lá fora. Não te esqueças de fechar bem o saco. Many thanks.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

DEAR PATTI


Patti Smith faz hoje 68 anos. Há um certo conforto em envelhecer com os nossos heróis, aqueles que tiveram a arte de roubar o fogo aos deuses sem se autoimolarem no altar das oferendas (Ian Curtis, Janis Joplin, Kurt Cobain, Amy Winehouse). Contrariando o aforismo grego, «morrem cedo aqueles que os deuses amam», Patti foi sempre fiel à vida e atravessou os seus tumultosos abismos com uma dignidade de princesa. Estas fotografias ilustram-no: de donzela dos infernos a velha sábia, reconhece-se aqui a inteireza de um espírito clarividente e perene, enraizado na força do rock'n'roll. Nas entranhas do dragão esconde-se uma pérola, rezam os mitos. Ela regressou para contar como foi.

Mais sobre Patti Smith n'O Jardim Assombrado: May Your Path Be Your Own, Rock'n'Roll Nigger, Goddess Patti.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

«NÃO PODE SER SÓ ISTO»


É uma pena que a entrevista ao padre e poeta José Tolentino Mendonça, conduzida pela jornalista Anabela Mota Ribeiro e publicada no Jornal de Negócios de 24 de Dezembro, não possa ser lida na íntegra urbi et orbi. Foi uma óptima companhia na viagem de comboio Lisboa-Porto e continuará depois disso. Partilho aqui alguns sublinhados:


«As nossas sociedades são extenuantes nos ritmos que pedem. É sempre para lá das margens. Perdemos o sentido dos limites. Não é só em termos do espaço, com a disseminação dos "open spaces". Também com os telemóveis, e as comunicações, estamos sempre ligados.»

«Deixámos de ter tempo para nós próprios, para a gratuitidade dos gestos. Deixámos de ter tempo para uma conversa. Em vez de ouvirmos palavras, ou frases, apenas ouvimos sílabas, rumores, que já não são nada. Isso implica uma diminuição da nossa qualidade de vida.»

«Cada vez mais um de nós tem de levantar a mão, e tem de esbracejar. Temos de ouvir os poetas quando dizem:"Não pode ser só isto". Um grande manifesto político seria dizer: "Não pode ser só isto."»

«A questão é se estamos a pensar na sobrevivência ou se estamos entretidos com a sobrevivência. Sobrevivemos para alguma coisa. A sobrevivência não é a finalidade da própria vida, é um meio para a construção de outra coisa. Vivemos para quê? É esse tipo de abertura que é necessário rasgar.»

«Também digo que o corpo é a língua materna de Deus.»

«Os distúrbios permitem-nos tomar consciência do sítio onde estamos. As crises são máquinas de consciência, de intensificar a nossa atenção aos próprios processos, àquilo que estamos a viver. Senão, caímos num automatismo muito grande.»

«Muitas vezes, o que a nossa casa precisa é que abramos a janela, em vez de estarmos exasperadamente a introduzir um novo purificador do ar. Precisamos de uma boa corrente de ar. E isso é uma metáfora para a própria vida.»

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

ESPÍRITO & REVOLUÇÃO


Duas sugestões de última hora n'O Jardim Assombrado, antes da pausa para recolhimento festivo, passe a contradição. Dois livros, duas gerações, duas autoras admiráveis: Sophia de Mello Breyner Andresen e Isabel Minhós Martins (A Fada Oriana está para Quando Eu Nasci como a minha infância está para um propósito de vida; a ambas infinitamente grata me confesso). Se A Noite de Natal (Porto Editora) significa reencontrar a protecção da Consoada e a «casa pintada de amarelo com um jardim à volta», na edição especial agora ilustrada por Jorge Nesbitt, Daqui Ninguém Passa! (Planeta Tangerina) incita-nos a avançar sem medo para 2015, depois de cingir os rins e enxugar os fígados. O trabalho de ilustração de Bernardo P. Carvalho é excepcional: Daqui Ninguém Passa! é mesmo a grande surpresa do final deste ano tramado, disseram-no mais cedo os blogues Cadeirão Voltaire, O Bicho dos Livros e Hipopótamos na Lua. «Espírito da revolução» ou «revolução do espírito», preparem-se para o melhor; nada menos do que isso. E Boas Festas (sempre)!

domingo, 21 de dezembro de 2014

SOLSTÍCIO DE INVERNO


Vieste vagante através da visão e da dor,
vieste dos meus mais escuros dias
e construíste até mim uma ponte
por sobre a culpa e a neve.

Sorridente e brandamente tu me guias,
e, sobre teu cabelo em coroa de ouro,
levas breves, leves, plumosos flocos
a morrer alegremente em primavera.


Rainer Maria Rilke, Primeiros Poemas - Advento (1898). Prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Atlântida Editora, Coimbra, 1967.

A MAIS SOLITÁRIA DAS LUTAS


«Quando se escreve temos de nos isolar dos outros, não podemos lembrar-nos de que eles existem, do que vão pensar do nosso trabalho, do que poderão dizer. Temos de ser completamente livres. Escrever tem de ser muitas vezes um acto imoral. Para o fazer é preciso ser independente e livre, e isso obriga a que de vez em quando se tenha de ir contra o social, que é o lugar da moral.»

Karl Ove Knausgard, autor de A Morte do Pai (Relógio d'Água), em entrevista a José Riço Direitinho no Ípsilon de sexta-feira.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

TRILOGIA DO INVISÍVEL


Tempus fugit. Não vou conseguir deixar um best of de 2014, mas antes de fazer as malas há que lembrar alguns (bons) livros que chegaram nas últimas semanas. Da Orfeu Negro veio O Escuro, com texto de Lemony Snicket (o mesmo de Uma Série de Desgraças) e ilustrações de Jon Klassen, admirável na sua arte de brincar com um dos nossos medos imortais. Da Kalandraka, chegou o vencedor do recente VII Prémio Internacional de Compostela para Álbuns Ilustrados, Ícaro, de Federico Delicado, narrativa de traço hiperrealista que mergulha no oniríco e na metaficção, com ecos de Franz Kafka e de Edward Hopper pairando sobre uma família-pássaro. Também próximo da temática familiar, O Regresso, da Bruaá, um álbum sem texto em que a autora, Natalia Chernysheva, evoca o sentimento nostálgico da infância recorrendo apenas à exploração das perspectivas, formas, cores e indícios olfactivos. Três livros unidos pela mesma capacidade de evocar, questionar e sugerir, como é próprio da literatura, e que por isso se recomendam a todas as idades.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

III CONCURSO LA ATREVIDA



No número 136 da revista LER, recém-chegado às bancas, escrevo sobre um projecto de amor em tempos de cólera: um concurso literário destinado a crianças e adolescentes entre os 8 e os 14 anos, sem condescendências nem pantominas, a julgar pela qualidade do júri e dos textos seleccionados. Já foram publicadas duas antologias e espera-se uma terceira. O prazo para a recepção dos originais em língua portuguesa foi prolongado até 30 de Janeiro (ver regulamento completo aqui). Excerto do meu artigo e de um texto sem paninhos quentes:

(...)

«Nesta segunda antologia, de 2014, a palavra «crise» continua presente. Outras: «escola», «trabalho», «bullying», «liberdade» e «LOL». As privações sociais e económicas atravessam muitos textos («Vida difícil», «Desapareceu o verbo trabalhar», «Uma moeda importante»), mas há abordagens mais lúdicas e fantasiosas, dotadas de humor surreal («Mundo ao contrário», «Os três porquinhos em Marte»). Há textos que impressionam pela brutalidade intrínseca dos temas («Sozinha», sobre a automutilação); e outros pela maturidade psicológica e literária, como o merecedor do segundo prémio, de amplas ressonâncias tchekovianas («A solução»). Os russos também não andam longe deste desassombrado retrato geracional («Ensaio sobre a maternidade»), de vocação contestatária e – porque não dizê-lo? – atrevida. A autora tinha então 14 anos:  

"Crescemos, uns de forma mais natural que outros, e chegamos àquela idade insuportável de cada projeto de vida, mais conhecido (sic) como a temível fase da ADOLESCÊNCIA (vale a pena salientar que sou uma dessas pestes em desenvolvimento...). Ficamos mais altos, mais sebosos, emanamos um imprestável odor pubescente, comemos que nem porcos, dormimos demais, ficamos mais idiotas do que nunca. Aqui, é a mãe que quer atirar o filho pela janela. E aqui surgem os maiores problemas: somos mais ou menos como os cães, “são mais giros quando são pequeninos”. Começamos a questionar e a ripostar tudo e algo mais, incluindo o trabalho a full-time das nossas queridas progenitoras. “Quando fores mãe, saberás”. Esperemos que isso não aconteça tão cedo."»

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

UM LOBO NA ARCÁDIA


«Poucas vezes a derrocada familiar é tratada com ternura», diz a crítica literária da revista Arcadia, que considerou Hermano Lobo um dos melhores livros editados na Colômbia em 2014. E lá está ele, incluído numa lista muitíssimo respeitável, apenas acompanhado pelo senhor Oliver Jeffers na categoria «Infantil» (leia-se «Infanto-Juvenil»). Grata ao meu tradutor para espanhol, Jerónimo Pizarro, à agência Bookoffice e aos pacientes editores Luis Rocca e Isabel Minhós Martins. Quem quiser ler o texto completo pode ver aqui, no blogue do Planeta Tangerina.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

ONDE MORAM AS CARLAS


A convite da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, de Torres Novas, fiz uma breve incursão a três escolas do Agrupamento Artur Gonçalves e do Agrupamento Manuel de Figueiredo, para rematar a leitura em sala de aula do Onde Moram as Casas. Tratando-se de alunos do 5º ano, era inevitável que o livro lhe parecesse «infantil», o que não impediu diálogos bastante animados a propósito de ideias transversais ao tema da «habitação recíproca»; e, sobretudo, de uma questão que actualmente me ocupa o espírito: mudar de casa. Do levantamento de opiniões efectuado, registei, no meu caderninho preto:

Coisas que levam a mudar de casa: 

- Estarmos fartos
- Ter vizinhos chatos
- Falta de ideias para novos livros
- Mudar de personalidade
- Conhecer alguém
- Falta de espaço
- Muito difícil de limpar
- Pouco dinheiro
- Ter mais um gato

... e coisas a ter em conta quando se muda de casa:

- Saber para onde vamos e o preço da casa
- Boa localização (por exemplo, ao pé de um supermercado)
- Um sítio onde nos sentimos bem
- Casa bonita e acolhedora
- Casa grande
- Ter um escritório para escrever
- Ter um quintal ou um jardim para nos inspirarmos
- Casa ao pé da praia
- Casa ao pé da floresta
- Casa longe da floresta, por causa dos fogos
- Casa ao pé de uma biblioteca
- Lugar tranquilo e sossegado, mas com pessoas ao pé, para o caso de desmaiar e ser preciso chamar o INEM

(Muito grata. Mais alguma sugestão?) 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

NÃO PISEM OS VULCÕES


Em 2015, a obra mais lida e traduzida da literatura francesa entra em domínio público numa série de países, incluindo Portugal. Prevê-se uma avalanche de traduções, versões e adaptações. Quantas maneiras haverá de desenhar uma ovelha?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

BONS VÍCIOS


Aí estão os primeiros títulos de uma colecção dedicada aos clássicos, apropriadamente designada por Vício dos Livros, cuja imagem gráfica (da autoria do designer Pedro Aires Pinto) os torna, desde já, muitíssimo apetecíveis. Desconhecendo ainda as traduções, agora revistas pela editora Civilização, não é possível adiantar muito mais, a não ser isto: no mercado, encontram-se várias edições de A Ilha do Tesouro, As Aventuras de Tom Sawyer e O Apelo da Selva, mas o mesmo não se pode dizer de Anne of Green Gables (Anne dos Cabelos Ruivos), um clássico de 1908 escrito por Lucy Maud Montgomery que remete para o imaginário vitoriano dos «órfãos resilientes» como Oliver Twist ou Sara Crewe. A edição anterior de Anne of Green Gables, de 1972, foi então pacificamente traduzida por Anne e a Sua Aldeia (ver no catálogo da Biblioteca Nacional), em alusão à casa e à ilha do Canadá onde se situa a história, hoje transformado em atracção turística. Além disso, como é sabido, no imaginário tradicional os ruivos não são de confiança. Vamos ler.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

ELA TAMBÉM NÃO QUER USAR ÓCULOS


O francês Patrick Modiano, Prémio Nobel da Literatura 2014, tem pelo menos mais dois livros «para crianças», todos publicados entre 1986 e 1988. Desconhecendo-os, aplico as aspas por uma questão de cautela, já que muitos livros ditos «para crianças» encontram eco mais facilmente no leitor adulto, podendo agradar a ambos (ou não) e sem que daí advenha algum prejuízo da sua qualidade literária e artística. A ambiguidade do destinatário é uma questão complexa e nunca resolvida, portanto, passemos adiante. Serve este post para assinalar a tradução de Catherine Certitude (em português, A História de Catherine), nome invulgar para uma menina que tem o sonho bastante comum de tornar-se bailarina, mas precisa de tirar os óculos quando dança. Cria-se assim uma espécie de visão dividida da realidade, em que o mundo parece mais suave e perfeito num dos casos. Com ou sem os óculos? Não o vamos revelar aqui. O livro chega depois de amanhã às livrarias e será facilmente reconhecido pelas ilustrações de Jean-Jacques Sempé (esse mesmo, o do Menino Nicolau).

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O DUENDE IMAGINÁRIO


Desde os 13 ou 14 anos, idade em que comecei a poder comprar livros, mantive o bom hábito de rubricá-los e acrescentar a data e o local, no ensejo adolescente de afirmar uma identidade fortuita. Pergunto-me, agora, ao reencontrar essas folhas de rosto calcinadas pelo tempo: Onde estava? Com quem estava? Que emoções me acompanhavam? Que queriam dizer de mim aqueles sublinhados trémulos? Experimento uma hipótese de itinerário, de pertença, de memória pessoal, de constelações de interesses e de afinidades. Salvo-me do desaparecimento, da invisibilidade, da aterradora fragmentação do ser. Um dia, deixei de assinar os livros, acreditando que, mais tarde ou mais cedo, iria mudar de país; e talvez a minha modestíssima biblioteca fosse mais fácil de vender sem o meu nome aposto. Oh, estupidez das coisas começadas e interrompidas em nome de outras coisas que nunca acontecem! Afinal, continuo aqui. Os livros comigo, sempre fiéis, à espera. Entre nós perfilam-se anos perdidos em que não tive a coragem de os chamar meus nem de os libertar para outras mãos e outros nomes.