sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

BRINCAR É UMA COISA MUITO SÉRIA


Uma versão vegetariana da Arca de Noé? Nem mais. Crianças e adultos, todos cabem na A Arca do É. Com texto de Ana Margarida de Carvalho e ilustrações de Sérgio Marques, foi recentemente editado pela Teorema. Na última edição da LER, fizemos três perguntas à escritora que venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, no registo meio-a-sério-meio-a-brincar das minientrevistas para o Scrapbook: 

Como foi a experiência de escrever para crianças?
Óptima. Sobretudo trabalhar com o ilustrador Sérgio Marques, que é excelente e soube ler tão bem as minhas palavras e desenhá-las do outro lado do espelho, que é o do absurdo e do bizarro, do nonsense, do anacronismo, do disparate... É um livro para crianças e para adultos muito infantis; o que é obviamente um elogio. Porque eu nunca digo só um disparate ou «apenas» uma brincadeira. Brincar é uma coisa muito séria. Além disso, mesmo sem qualquer pretensão, é possível dizer-se que as histórias, até as bíblicas ou mitológicas, podem ter as versões que a gente quiser. 

Conhece alguma receita de sopa que faça bem ao cérebro do leitor?
Bem, depois de atirar uma pedra para dentro do panelão, lançar também os grãos da imaginação de Carlos Queirós e rezar com ele, livrai-me também de quem me detém e graça não tem.

Três coisas a que diga «não» e três coisas a que diga «sim».
Não: Aníbal, Cavaco e Silva (bolas, já gastei as três). Sim: os meus filhos, os meus cães, os meus livros e amêijoas da Ria Formosa (fiz batota).

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

HANSEL E GRETEL: A COOPERAÇÃO INTELIGENTE



(...) Até hoje, não faltam versões truncadas, de remate feliz e singelo, em que os dois irmãos são acolhidos de braços abertos pelos progenitores, no retorno a casa. Nada mais falso. À parte o lado negro da história, provável reflexo da História com «agá» maiúsculo, quando a fome e o desespero podem conduzir ao impensável, Hansel e Gretel é também um caso em que os papéis tradicionais do masculino e do feminino se invertem, mudando o curso dos acontecimentos. Se Hansel é o pensador, o cérebro que congemina a estratégia de regresso a casa, primeiro com pedrinhas brancas e depois com migalhas de pão, Gretel é a executora da ação, protagonista do gesto decisivo de empurrar a bruxa para o forno em chamas. Aqui, a cooperação inteligente e astuciosa leva vantagem sobre a rivalidade bíblica entre irmãos. Morre a megera, libertam-se as crianças e enchem-se os bolsos de pedras preciosas e demais riquezas. A conquista da maturidade e uma carta de alforria, de uma só penada.  

(Excerto do texto que escrevi para a LER nº 140, secção «Wendy no divã», desta vez com os irmãos Hansel e Gretel - um mais populares contos recolhidos pelos Grimm - como objecto de estudo psicológico.)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE INVESTIGADORES


De um dos núcleos de investigação mais activos na área do livro infantojuvenil, o Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, chega uma proposta a não perder, desde logo por ser de entrada livre e aberta ao público não especializado. Durante uma tarde, estarão em debate esses  livros-que-não-são-bem-livros-mas-também-não-deixam-de-ser-livros, com comunicações várias, vindas de nomes amplamente creditados em Portugal e Espanha. «O livro-objecto no universo infantojuvenil: potencialidades criativas e propostas de leitura» decorre no dia 9 de Março e começa às 14h00, no Auditório Aldónio Gomes (sala 2.1.10). Cliquem na imagem para ler melhor. 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CONTOTERAPIA


«O poder terapêutico e performativo da palavra, a sua capacidade implícita de deslocar o leitor/ouvinte de um lugar interior para outro lugar (sempre no sentido ascendente, como bem notou Bruno Bettelheim na sua Psicanálise dos Contos de Fadas), depende muito da autenticidade e da adesão simbólica desse mesmo leitor/ouvinte, no momento e nas circunstâncias artificialmente recriadas onde a palavra do conto é retomada.» Escrevi este comentário depois de uma das mais importantes formações que já fiz, cujos efeitos ainda se repercutem: An International Seminar on Fairy-Tale Therapy, traduzido por Seminário Internacional sobre Contoterapia. Aconteceu em Março de 2015, no Hotel Tivoli, em Sintra, e se quiserem ter uma ideia do que foi podem ver aqui mais comentários, programa e fotografias. O êxito foi tão grande que seria estranho não se repetir, agora ainda com mais participantes e workshops. Eis a lista dos confirmados:

Rosie Strain, Arte-Psicoterapeuta & Contadora de Histórias, Reino Unido
Boaz and Vered Zur, Artes Expressivas da Irlanda
Susan McCullough, Conselheira Escolar & Contadora de Histórias, Alemanha
Olga Lipadatova, Psicoterapueta, Canadá
Michał Malinowski, Museu de Contos e Histórias, Polónia
Shai Karta Schwartz, Terapeuta de grupos e individuais e professor, Centro Baobab para Jovens Sobreviventes Exilados em Londres, Israel
Beatrice Bowles, Mestre em Artes Plásticas, Contadora de Histórias, Estados Unidos da América
Jill McWilliam and Gill Morton, Psicoterapeutas Educacionais, Londres, Reino Unido
Jacqueline Silva, Ludoterapeuta, Conselheira em Terapia Centrada na Pessoa, Instrutora e Supervisora para Terapia pelo Brincar e pelas Artes Criativas na LudoClínica, Portugal
Laura Simms, Contadora de Histórias, Escritora, Estados Unidos da América
Monica Carpendale, Diretora Executiva, Instituto de Arteterapia Kutenai, Canada
John L. Plews, Phd, Professor Associado de Línguas Modernas, Universidade de Saint Mary's, Halifax, Canada

O ideal é mesmo ficar em Sintra e usufruir de uma atmosfera única; mas, porque o ideal nem sempre é possível, podem só inscrever-se nos workshops do seminário, acrescentando (ou não) as sessões de storytelling. Todas as modalidades de inscrição e respectivos preços estão no site da Moonluza. Atenção: os lugares são limitados e já estão a acabar. Se puderem, não percam mesmo.
   

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ATELIER DE ILUSTRAÇÃO NA FJS

 
«A Fundação José Saramago, com a colaboração do Instituto Cervantes, do Museu de História Natural da Universidade de Lisboa, da Faculdade de Belas Artes de Lisboa e da Oficina do Cego, organiza no mês de fevereiro um atelier de ilustração e edição, com a participação de Elena Odriozola, Prémio Nacional de Iustração de Espanha 2015, e de Alejandro García Schnetzer, editor e director de colecções na Libros del Zorro Rojo. O atelier decorrerá entre os dias 24 e 26 de fevereiro e é composto por três sessões, num total de dez horas.» 

O atelier custa 35 € e é limitado a 15 participantes. Todas as informações na página da Fundação José Saramago. Aqui.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 3


Ontem, Linha Verde do Metropolitano de Lisboa. Carruagens semi-vazias, o ar ainda leve da manhã. Há uma senhora com um cão enrolado aos pés, lugares a toda a volta. Sento-me à frente dela, abro a mala, abro o livro.
- Está a gostar?, pergunta-me.
- Muito.
- Eu já vou no quarto volume, mas o terceiro é diferente de todos.
- Porquê? (pergunto por amabilidade, no fundo não quero saber a resposta)
- Não sei, é diferente...
A senhora tem olhos claros, cabelo alourado, veste-se para não impressionar. Não parece portuguesa. Ao lado dela, senta-se agora uma mulher mais nova, dos seus trinta e poucos. Diz:
- Ah, é a Ferrante. Também ando a ler.
O cão, um épagneul breton ainda cachorro (percebo pelas orelhas, sou zero quanto a caninos), mexe-se irrequieto, pede festas, atenção, sente-se aconchegado. Parece um cão feliz. Chama-se Luca.
- Todos os meus outros cães tinham nomes de pintores, mas este não, diz a senhora. As minhas sobrinhas começaram a chamar-lhe "Luc, Luc..". E ficou Luca.
- E teve mais?, pergunto.
- Sempre. Quando morreu o último, um labrador, disse para o meu marido que não queria mais cães... Aquilo dói. Dali a um mês já tínhamos este.
- Fez bem, há cães como nós. E como se chamava o outro?
- Dali. Como o Salvador Dali.
Esquecemos a Ferrante, as famílias a ferro e fogo, a violência doméstica, a escrita que põe o leitor a correr por cima das linhas como se estas fossem cordas esticadas até ao limite do insuportável. Falamos antes de animais.
Chegamos à estação do Martim Moniz. Desejo um bom dia às minhas companheiras de viagem e despeço-me:
- Vou sair aqui.
Quando a porta do metro se abre, ainda ouço a senhora perguntar à mulher mais nova:
- E está a gostar da Ferrante?
Não ouço a resposta. Saio como se entrasse numa qualquer irmandade. Saio acompanhada. Pressinto que vai ser um bom dia. E foi.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 2


Hoje, ao final da tarde, na Linha Vermelha do Metropolitano de Lisboa. Um senhor bem vestido, mas com um aspecto muito cansado e, talvez por isso, parecendo mais velho do que na realidade seria, sentou-se no lugar vago ao meu lado:

- Saldanha?! Então, mas eu acabei de entrar no Saldanha!...
- Não se preocupe, é a voz que não está a bater certo com as estações, também já tinha reparado...
- Ah, pronto! Uma pessoa já lhe falha a memória, e eles ainda tornam isto pior. Olhe, minha senhora, não sei para que lemos tantos livros... Eu li tanta coisa e não me serve para nada.
- Oh... Então porque é que diz isso? Os livros...
- Porque, se calhar, o único objectivo disto tudo é segurar a bola...
- A bola?... Ah, quer dizer, a Terra.
- Pois, a Terra, o globo...
- Então, mas os livros fazem a civilização...
- Se calhar! Mas foram eles que nos puseram cá, para segurarmos a bola.
- Eles, quem?
- Os extraterrestres, os alienígenas...
- Ah... talvez...
- Isto é tudo muito cansativo. Uma pessoa nasce e morre, e depois acabou-se. Uns atrás dos outros. Para que servem os livros?
- Servem para as pessoas que ficam depois de nós...
- Essas depois também morrem. Se começamos a pensar nisso, ficamos doentes. Isto não faz sentido nenhum. Somos todos robots nas mãos deles, estamos aqui só para segurar a bola!
- Não diga isso.... Então e a arte? Para que serve a arte?
- Olhe, serve para provar que eles já cá estiveram. Deixaram desenhos nas grutas para provar que já cá estiveram. E um dia talvez voltem para salvar a bola, porque nós não conseguimos tomar conta dela.
- ..... (silêncio)
- Há cada vez mais máquinas e robots para nos substituir. Qualquer dia inventam robots para limpar a casa, já pensou?
- Eu acho que já inventaram robots para limpar a casa...
- Ai sim? Olhe, então talvez eu seja um robot e esteja a aqui a ser controlado por alguém. Quem me diz a mim que eu não sou um robot? Adeus, minha senhora, muito gosto em falar consigo. Feliz Natal!
- Para o senhor também, Feliz Natal!


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 1


À porta do Vasco da Gama, em Lisboa, dois jornalistas interpelam quem passa, armados de microfone e câmera. Param uma senhora dos seus 60 anos, mala de rodinhas e ar apressado. Fica uns segundos a falar com eles e segue adiante, resmungando.

- Que queriam saber? – pergunto-lhe, na passadeira.
- O que é que eu achava de não sei quem ter saído da quinta!
- Ah... aqueles programas tipo...
- Se me perguntassem o que é que eu acho dos atentados de Paris e das pessoas que trabalham, eu sabia o que dizer, agora a quinta! Quero lá saber da quinta! Francamente! Que nojo de país, este!

Foi assim o encontro com a minha alma gémea de hoje. Amanhã há mais.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

ESCRITA E VULNERABILIDADE


O acto de escrever também reescreve o escritor e a sua vida. Numa palavra: transforma-o. A menos que a escrita seja coisa anódina, exercício de estilo ou construção artificial, é impossível escrever com sinceridade sem nos tornarmos cada vez mais vulneráveis. Não quero dizer «sensíveis», porque todos somos mais ou menos sensíveis. Mas nem todos temos a intenção de nos tornarmos vulneráveis, com tudo o que de assombroso e assustador implica esse estado de porosidade ao mundo. É muito difícil separar as águas e dizer «isto é a vida e isto é a literatura», porque a contaminação é inevitável, mesmo insidiosa. Escrever pode baixar tremendamente o sistema imunitário e, com isso, originar livros sublimes: livros belos, terríveis e profundos. Livros que nos atravessam como um nevoeiro e nos fazem chegar à última página com as mãos molhadas e um arrepio no corpo todo. Ler também pede que nos tornemos vulneráveis, mas podemos sair airosamente. A vulnerabilidade que a escrita exige não é algo a que se possa escapar com o mesmo grau de conforto e desprendimento. No entanto, é ao tornar-se vulnerável que o escritor pode chegar a curar pela palavra. Para mim, esse é que é o Graal.

(Na imagem: Flannery O'Connor. Retirada daqui.)