Há sempre um português com azar bastante para ser encontrado por outro português, mesmo no lado oposto do mundo. Por causa de uma personagem atormentada pelo passado, atravessei O Mar em Casablanca a pensar em G. e no nosso improvável encontro na Nova Zelândia, há precisamente cinco anos.
Num alfarrabista de boas e más memórias, alguém falou de um português razoavelmente conhecido, que já tinha aparecido na imprensa local. Logo ali imaginei matéria para um artigo. Devia ter pousado o telefone quando ele respondeu “I beg your pardon?”, sem sinal de interesse ou curiosidade, só o enfado natural de quem acaba de ser interrompido no seu trabalho por uma arenga de vogais e consoantes numa língua remota – 25 mil quilómetros de distância é muito tempo. Respondi em inglês, queria conhecê-lo, ele disse “let me see” e ficámos assim, cada um com o seu cubo de gelo na boca, o telefone calado durante uma semana e tal.
Rumei a sul das planícies verdes e ocres de Canterbury, com a lembrança de G. no meu encalço. Teimosa, insisti. Ele providenciou o encontro com eficácia britânica, mas sem entusiasmo. Encontrámo-nos no seu local de trabalho, um departamento do estado nos limites da cidade, onde, para disfarçar a timidez, G. iniciou um périplo explicativo e abusivamente pormenorizado. Tudo o que eu queria era ouvir uma boa história. Um português nos antípodas de Portugal, o mais longe possível, o mais sozinho possível, foge de quê? G. não enganava: baixo, moreno, semicalvo, de idade incerta. As rugas acumulavam-se na testa e desenhavam um mapa erguido sobre melancolias e obsessões sólidas. Mais de vinte anos na Nova Zelândia não tinham chegado para o tornar num homem tranquilo, alegre, easy going – e desse destino é difícil fugir.
A língua-mãe já representava para ele um continente intransponível, de modo que acordámos em conversar em inglês. Fiz-lhe uma pergunta, a pergunta mais óbvia, imediata: como veio parar aqui? G. começou a chorar, todo o corpo chorava e tremia como um animal que acabasse de ser atropelado. Ao contrário do inspector Jaime Ramos, G. não era um exemplo do strong and silent type. Não fazia parte do género de pessoas “que preferem a sombra, as que atravessam a noite pelas estradas secundárias”. Pediu desculpa por estar a chorar; e não se pode ser mais português do que isso. Depois contou como tinha ido de país em país, tentando escapar ao passado, até parar na Nova Zelândia, o único lugar que.
Casou-se e teve filhos. Divorciou-se. A mulher nunca soube daquela história dos tempos da ditadura, envolvendo perseguições políticas, pides e lutas estudantis. O mais estranho era que G. também já não sabia quase nada de si próprio, nem sequer de que lado estava, se dos bons ou dos maus. Pelo menos, foi isso que me garantiu. “I don't remember, I don't remember”, continuava a dizer. Houve um ponto, ninguém sabe exactamente quando, em que G. começou a ser devorado pelo seu segredo, em vez de se alimentar dele para sobreviver.
Despedimo-nos duas horas depois com um cumprimento cordial e um embaraço impossível de disfarçar. Sabia que não nos voltaríamos a ver, que não ia haver convites para jantar em casa – é certo que a gastronomia do país é desgostante – nem passeios de carro pela península de Banks. No regresso, telefonei-lhe do aeroporto de Auckland, ele desejou boa sorte e boa viagem. Recomendou uns comprimidos homeopáticos para o enjoo que não funcionaram. Em Lisboa, dias depois, enviei-lhe dois e-mails a que ele nunca respondeu, como é óbvio. Se vivesse na Nova Zelândia, também eu gostaria que me deixassem em paz.
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