sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

SOMOS IMPERFEITOS DE PALAVRAS


Tenho pena de só ter conseguido assistir a dois painéis do XVIII Encontro de Literatura para Crianças na Fundação Calouste Gulbenkian, mas trabalho oblige. Para lembrar durante muito tempo, a conferência de abertura proferida por Manuel António Pina, de uma delicadeza e profundidade tocantes. Não é propriamente uma novidade, eu sei. Alguém que conhece o pensamento tauista só pode tratar as palavras com rigor, e por isso não surpreendeu ouvi-lo dizer que tem “cada vez menos coisas para dizer” – porque “falar raramente é conforme à natureza”, como se lê no Tao Te King. “Se os fenómenos do céu e da terra não são duráveis/Porque o seriam as acções humanas?” (Editorial Estampa, página 35).

“Somos imperfeitos de palavras”, disse Pina. Evocou Maurice Blanchot para lembrar que “a literatura é a arte de fazer de conta” e que toda a literatura “persegue a linguagem da linguagem”, devendo ser interrogada “na sua forma, na sua sonoridade, na sua significação”. Falou no “anitismo” dos livros para crianças, nesse atrofiamento do mundo à medida da pequenez da Anita, e pôs o dedo na ferida quando afirmou que “o principal problema da literatura para crianças é o de os livros serem escolhidos por pais ou por adultos que não percebem nada de literatura nem de crianças”. Confessou a desilusão de nunca ter conseguido convencer as filhas a gostarem de Winnie-The-Pooh quando eram pequenas; e explicou por que razão há tantos adultos a escrever “para” crianças (sublinhando as aspas) que, às vezes, não entendem o que eles escrevem. Como Alan Alexander Milne, eventualmente. Não cito ipsis verbis, porque não usei gravador, mas o sentido é este: “A melancólica forma que a infância assume em nós, adultos, é a perda da infância. As crianças ainda não têm a linguagem perdida da infância, estão demasiado próximas dela, por isso não a entendem.” Acho que Manuel António Pina tem toda a razão, mas fica a ressalva, feita pelo próprio: “Nada é decerto tão perigoso como a certeza de que se tem razão.” E como é bom ouvir pessoas que têm cada vez menos coisas para dizer.

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