sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

ENID BLYTON VS. PHILIP PULLMAN


Casa cheia para o Congresso Internacional de Promoção da Leitura, organizado pela Gulbenkian/Casa da Leitura. Mais de 700 pessoas foram ontem ouvir o que significa “Formar Leitores Para Ler o Mundo”; isto é, entender a leitura como uma actividade completa (e complexa) que ultrapassa em muito as necessidades da mera literacia funcional. Recorrendo a uma das citações dos textos facultados: “Adquirir o hábito da leitura é construir um refúgio para quase todos os males do mundo.” (Somerset Maugham)

Depois da inauguração oficial, o dia começou da melhor forma com a conferência de abertura de Peter Hunt, um dos mais conceituados estudiosos da literatura infantil, habilíssimo na arte de comunicar. Assumindo-se como “um especialista em livros e não em leitura”, Peter Hunt avaliou os resultados do Ano Nacional da Leitura (2008) no Reino Unido, onde se constatou que uma em cada quatro pessoas não tinha lido um livro no ano anterior. Apesar do declarado aumento da frequência das bibliotecas, da distribuição de “livros simplificados” e da profusão de iniciativas relacionadas com a leitura, Hunt questiona a boa vontade das autoridades, perguntando: “Sim, mas que livros é que as pessoas andaram a ler?”

A constatação do professor da Universidade de Cardiff não é nova, mas foi bem sintetizada e melhor explicada. Pelo menos no Reino Unido, “a natureza da leitura mudou nos últimos 40 anos”, em função da mudança nos media em favor do audiovisual. Por sua vez, “as mudanças nos livros reflectem uma mudança no conceito de infância e na forma como as crianças interagem”. Ressalva: “Não é bom nem mau, é o que está a acontecer e temos de nos adaptar.” Segundo Hunt, as crianças de há cem anos “eram treinadas para fazer leituras mais complexas”, capacidade que tem sido progressivamente perdida com a invasão do mercado editorial por obras de qualidade menor. “O que chamamos ‘mainstream fiction’ está a mudar para ‘popular fiction’”, afirmou, apontando as falhas da actual escrita para crianças e adolescentes: é menos subtil, menos sugestiva, menos original e – o pior dos defeitos – menos recorrente de técnicas estilísticas literárias. “Mostrar em vez de contar tornou-se demasiado comum. E quando se mostra em vez de contar, roubam-se também as técnicas de leitura às pessoas.”

Arrancando gargalhadas ao auditório, Peter Hunt foi buscar o caso de dois clássicos do início do século XX, The Phoenix and the Carpet (E. Nesbit) e The Tale of Peter Rabbit (Beatrix Potter), comparando-os com as actuais versões adaptadas (também para televisão). As conclusões foram claramente enunciadas: perda real de vocabulário, empobrecimento do estilo de escrita, substituição dos conteúdos mais evocativos por descrições literais, aumento do discurso directo… A pergunta de Hunt parece-me absolutamente pertinente: “Será esta uma nova maneira de escrever? O que é que as crianças ganham com estes novos textos?”.

Questões que ficaram também à vista com a comparação de dois textos do género de aventura, um do anterior paradigma e outro recente – e mais fraco, no seu entender. Os nomes dos autores e respectivos títulos estavam escondidos e o auditório rendeu-se quando Hunt os revelou: a “velhinha” Enid Blyton e um dos livros de "Os Cinco", de 1953; e o premiadíssimo Philip Pullman e As Luzes do Norte, de 1996. Blyton venceu por larga vantagem.

É claro que há alguma “batota” (como o próprio admitiu) quando se escolhe determinada página em detrimento de outra. Certamente que haverá passagens no livro de Pullman muito superiores à que foi mostrada; e que Enid Blyton não mantém a mesma subtileza ao longo das páginas de Five Go Down to the Sea. Mas, essencialmente, os exemplos serviram para ilustrar a tendência que Peter Hunt tem observado e estudado, e que aponta para um decréscimo da qualidade versus aumento da produção de livros. Conclusão: “Tem havido uma regressão na escrita para crianças. Há uma falta de conhecimento do que foi publicado anteriormente, por parte das editoras; e há uma falta de vocabulário crítico para falar dos livros actuais.”

Como se situam os autores – escritores e ilustradores – perante este quadro pouco favorável, é o que me interessa perceber melhor. A organização do congresso não abriu tempo para perguntas a seguir às conferências, preferindo criar fóruns de debate para cada um dos painéis, hoje à tarde. Parece-me uma boa opção e lá estarei, para saber mais sobre “Literatura para a Infância e Formação de Leitores”, designação do painel que acolheu Peter Hunt e outros experts, moderados por José António Gomes.

Ontem, o segundo painel ocupou-se do tema “Estratégias de Leitura e Compreensão Leitora”, começando com a comunicação de outro nome de referência: Teresa Colomer, da Universidade Autónoma de Barcelona. Foram discursos mais densos e mais técnicos, que interessam sobretudo aos mediadores da leitura; em especial, professores e bibliotecários. A manhã de hoje segue a mesma linha, com o tema “Projectos de Promoção da Leitura”. A fechar, logo à tarde, o auditório ficará mais uma vez repleto para ouvir Fernando Savater, José Barata-Moura e Eduardo Marçal Grilo. “A Leitura em Debate” é o tema de encerramento. Não se iniba quem não se inscreveu, porque o congresso está a ser transmitido em várias salas da Gulbenkian em regime de videoconferência. E vale a pena.

3 comentários:

Pan disse...

Ler vale sempre a pena! Como vale passar por este seu sitio, onde leio "coisas" que me agradam muito.
Obrigado por escrever.
Francisco Sousa

(estou na Terra do Nunca - www.naterra.blogspot.com) Será muito bem vinda!

magnuspetrus disse...

Pena que a comunicação de Marçal Grilo tenha servido de verdadeiro anti-climax ao brilhantismo de Savater e à forma apaixonante de comunicação de Barata-Moura.

dora disse...

Excelente
este guardar (acrescentado) do que foi.