quarta-feira, 22 de julho de 2009

MUNDOS INCOMUNICANTES


Há uns anos, uma amiga rogou-me trinta mil pragas por lhe ter recomendado o último Cronenberg que estava então em cartaz: Spider. O mal-estar físico e psicológico que o filme lhe provocou – eventualmente potenciado pelo facto de ela estar grávida –, é algo que até hoje tenho dificuldade em compreender, talvez pelo facto de o cinema raramente me deixar estados de alma a posteriori, ao contrário dos livros. Na transição da sala escura para a rua, desaparece toda “a suspensão da descrença” e poucos dias depois já esqueci o final. Excepção feita para Casablanca e alguns mais, trago na cabeça uma colecção de filmes espantosos que nunca me lembro como acabam; não sei porquê, nem tento perceber. Vem isto a propósito de um livro que tenho recomendado a dezenas de pessoas nos últimos tempos: O Mundo, de Juan José Millás (Planeta). Não é para crianças, nem sequer é um “livro sobre” a infância do autor, tout court. Talvez a personagem principal, aqui, seja mesmo a escrita e as suas sete cabeças, umas abrindo feridas e outras cuspindo fogo e cauterizando-as ao mesmo tempo, parafraseando uma imagem belíssima do autor. De cada vez que abro uma página – e algumas páginas em particular, onde releio os sublinhados – volto a comover-me como na primeira vez. Isto não se consegue partilhar. Alguém me disse ontem que tinha achado o livro “muito triste”, razão suficiente para não ter gostado assim tanto de o ler. Recomendar um livro é sempre um acto solitário e por vezes perigoso, sobretudo quando não fazemos uma boa leitura do outro. Sobre aquilo de que gostamos demasiado, será melhor calarmo-nos? Às vezes acho mais sensato.

3 comentários:

Vicious disse...

Ando para escrever algo no meu blog sobre este livro, achei-o simplesmente fantástico. Não acho que seja triste, é um pouco melancólico talvez, mas é lindo!

Quanto a recomendar livros penso que seja sempre perigoso, porque não só criamos uma expectativa nas pessoas a quem recomendamos (expectativas que podem sair goradas), como também ficamos ansiosos em relação às reacções dessas pessoas e ficamos tristes quando elas não gostam...

Como livreira devo dizer que é um choque quando me pedem para recomendar um livro e não sei se estou sozinha nisto... Mas acontece frequentemente pedirem-me livros para oferecer e quando pergunto quais são os gostos das pessoas a quem querem oferecer o livro, muitas vezes a resposta é um "não faço ideia!". Só me apetece fugir!

Um beijinho para ti e sucesso para o novo livro!

Carla Romualdo disse...

A metáfora da escrita como o bisturi que cauteriza é extraordinária. Gostei muito do equilíbrio que ele consegue manter entre os delírios oníricos e as descrições com a precisão do repórter.
É uma excelente recomendação, para quem quiser recebê-la.

redonda disse...

Eu sou completamente a favor de se recomendarem livros. Se nem que seja só uma vez se corresponder às expectativas criadas compensará qualquer ocasião em que tal não tenha sucedido e foi assim que descobri muitos dos meus livros favoritos e passei momentos únicos (por exemplo, um dos meus livros favoritos, O Monte dos Ventos Uivantes, foi-me recomendado e adorei o livro e estar a lê-lo).