Não há muito tempo, tive o desprazer de ouvir uma conhecida autora e ilustradora referindo-se em público a «esses livros com pouco texto» com um desdém notável. «Livros com pouco texto» são aqueles que se escrevem «enquanto se lava a louça», para dar o seu próprio exemplo – a não seguir. Em bom rigor, teremos de lhes chamar picture books ou álbuns, consoante se prefira a terminologia da escola anglófona ou francófona. Opto pela primeira, por razões geracionais e não só.
É verdade que os picture books, ou picture story books, têm pouco texto ou até nenhum texto. A brevidade faz parte da sua natureza, à semelhança dos aforismos e ao contrário das epopeias. Nada a fazer a esse respeito. Com muito texto, é provável que entrem na categoria de livros ilustrados, mas não de picture books. Não sendo as fronteiras entre uns e outros totalmente estanques nem isentas de controvérsia, há um critério fundador a ter em conta: os picture books distinguem-se pela relação sempre indissociável entre texto e ilustração, assentando normalmente num esquema de leitura de página dupla (double-page spread), marcado pela tensão dramática e pela expectativa em relação ao que vem a seguir.
Um bom picture book não mostra tudo; antes sugere e provoca inferências de significado, estimulando a capacidade de interpretação da criança e de qualquer leitor. Mais do que uma relação forte, palavras e imagens desenvolvem uma relação de forças, no sentido em que se gera uma tensão criativa entre as duas linguagens, longe da mera função complementar do livro ilustrado tradicional. Em vez de se limitar a reproduzir em imagens o que já é dito por palavras, um bom picture book acrescenta informação ao texto, podendo mesmo subvertê-lo com a inclusão de efeitos irónicos, ambíguos ou incongruentes. Quando escritor e ilustrador se libertam do ego e do complexo competitivo, esta tensão criativa costuma dar origem a livros admiráveis. O mesmo vale quando escritor e ilustrador são um só, sendo neste caso a competição mais fácil de gerir. Last but not least, o design, o grafismo e a concepção editorial contribuem para o enriquecimento do que pode ser uma obra de arte global, talvez a primeira a que a criança tem acesso fácil.
Peter Hunt, professor da Universidade de Cardiff e um nome de referência nestas matérias, considera que o picture book será o único contributo – genuíno e original – da literatura infantil para o campo literário em geral. Seria bom ver mais editores portugueses a interessarem-se por este amplo mercado, ainda muito preenchido por traduções de qualidade oscilante. E também escritores, ilustradores e designers gráficos ou directores de arte, já que todos têm um papel determinante no conjunto do processo criativo. Ainda há um juízo de valor implícito na apreciação dos picture books, como se os livros ilustrados não pudessem ser também literatura. Como se um escritor de livros para crianças provasse o seu talento seguindo o ritmo do contador de caracteres. Convenhamos: se escrever pouco e bem fosse fácil, os melhores publicitários não seriam tão generosamente remunerados. Grandes ideias podem surgir «enquanto se lava a louça», mas fazer um bom picture book dá mais trabalho do que parece.
(Texto publicado ontem na secção de «Opinião» do Blogtailors.)
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1 comentário:
.. grandes ideias surgem normalmente de coisas ditas simples e lavar a louça pode bem ser uma delas :)
Assombra-me sempre o "desdém" com que por vezes se fala do que não se sabe fazer.
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