quinta-feira, 3 de junho de 2010

O ESCRITOR DAS COISAS SELVAGENS


Apesar de uma obra relativamente curta, o inglês David Almond foi recentemente distinguido com o Prémio Hans Christian Andersen, o mais prestigiado galardão da literatura para crianças e adolescentes. Nas suas histórias não há elfos guerreiros nem vampiros sexy. Bom, para variar.

Não é exacto dizer que David Almond é um escritor realista, mesmo quando descreve com rigor os bairros cor de tijolo das classes trabalhadoras, cercados por baldios e minas abandonadas – uma evocação da sua infância na antiga localidade industrial de Feeling-on-Tyne. Se Hemingway e Raymond Carver são influências visíveis nesta escrita límpida e desafectada, o tema da queda e redenção coloca-o mais próximo do imaginário incandescente de Flannery O’Connor ou William Blake. Forjadas em lugares subterrâneos, a meio caminho entre o real e o sobrenatural, as suas histórias são povoadas por presenças nunca totalmente decifradas pela lógica. Skellig, o sem-abrigo com asas de anjo que se esconde numa garagem em ruínas, sobrevivendo com a ajuda de duas crianças, cerveja e aspirina, inaugurou uma galeria de personagens misteriosas, quase sempre representativas da protecção dos adultos, nunca reduzidos a caricaturas pelo autor. A morte das figuras familiares, a inquietação de crescer e a conquista da autonomia impulsionam as vidas das crianças e adolescentes que se perdem nestes emocionantes enredos. Mas não para sempre.

Skellig é também o título do primeiro romance juvenil de David Almond (O Segredo do Senhor Ninguém, em português), publicado em 1998 e vencedor dos prémios Whitbread e Carnegie. Seguiram-se Kit’s Wilderness (O Grande Jogo) e Heaven Eyes (Um Cantinho no Paraíso), também editados em Portugal. O quarto título, O Meu Pai é um Homem-Pássaro, destinado a um público mais infantil, é uma relativa decepção para quem leu os anteriores. Depois do Prémio Andersen 2010, espera-se que a Presença conclua a publicação da obra de David Almond, em particular de Secret Heart, The Fire Eaters (novamente vencedor do Whitbread) e Clay. As traduções de Fernanda Pinto Rodrigues e Ana Corrêa da Silva souberam preservar a exigência de um escritor cujo trabalho sobre a palavra foi também uma das razões óbvias da atribuição deste cobiçado prémio.

(Texto publicado na LER nº 92. Fotografia de Sara Jane Palmer.)

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