segunda-feira, 19 de julho de 2010
A ARTE DE ESCREVER CASSETES
"«Para mim, gravar uma cassete é como escrever uma carta», diz Bob Flemming, o protagonista de Alta Fidelidade, primeiro romance de Nick Hornby e um must para os que passaram as últimas décadas do século XX a comprar discos de vinil e a gravar cassetes em casa.
Lembram-se dessa espécie que tratava a música como uma religião e a aparelhagem como um altar? Gente para quem uma TDK não era o mesmo que uma BASF. Que sabia as diferenças entre cassetes de «tipo I» e «tipo IV». Que só escolhia a «posição normal» se não tivesse dinheiro para mais no bolso. Que nunca juntaria na mesma fita o Phil Collins com os Durutti Column, a Samantha Fox com a Marianne Faithfull, os Wham! com os Red House Painters. Gente que levou muito a sério o conselho de Nick Hornby («… e não vale a pena fingir que qualquer relação pode ter futuro se as vossas colecções de discos são violentamente discordantes»), pelo menos até ao momento em que o celibato se tornou demasiado penoso. Que música escolheríamos para dizer isto? Hum… Que tal Holding Back the Years, dos Simply Red?
Gravar uma cassete em casa é como escrever uma carta, sim. Podia dizer-se tudo. Ambas representam um acto criativo, artesanal, individualista. Gravavam-se cassetes para ouvir na auto-estrada, cassetes para as férias, cassetes para dias cinzentos, cassetes para noites especiais (Brian Ferry + Grace Jones + Prince = sucesso garantido). Se escolher os temas era um gozo, atentar na ligação entre eles, ponderando cada minuto de fita disponível, exigia rigor e atenção. Uma cassete gravada de forma displicente, com raccords mal feitos e faixas cortadas, é como uma carta mal pontuada. A questão é saber se já ninguém escreve cartas porque deixou de gravar cassetes ou ao contrário.
Hoje mandamos e-mails e descarregamos música. Que diferença."
(Texto publicado na edição de 18 de Julho da Notícias Magazine, revista de domingo no DN e JN, na secção "Nostalgia". Na mesma página, há uma legenda que diz "Lembram-se dessa gente para quem uma TDK não era o mesmo que uma BASF?". Não assinei e não gosto. Nunca trataria "a minha gente" por "essa gente".)
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