domingo, 23 de janeiro de 2011

SAUDADES DO ESCUDO


Em cada português há um insurrecto que deseja secretamente ser expulso do clube do euro, mesmo sem acreditar nas vantagens dessa renúncia. Entrámos para o euro como quem ingressa num ginásio caro, ufanos e cheios de expectativas, para descobrir que não conseguimos pagar a mensalidade e somos obrigados a comprar fatos de treino no chinês. No fundo, os portugueses têm saudades do escudo porque têm saudades da estabilidade e do crescimento que lhes prometeram há dez anos, pouco importando se trazia a cara de Bartolomeu Dias ou de um pórtico românico que ninguém sabe onde fica. As notas de euro são chatas, mas pior do que isso é não circularem com abastança pela maioria das carteiras. À permanente flutuação dos mercados e ao défice financeiro juntou-se o défice de identidade nacional, comum aos 17 países afectos à moeda única. É uma perda sentimental que nada consegue colmatar. Nunca mais nos passou pelas mãos o olhar feroz de Vasco da Gama nas notas de 5.000$00, a farta bigodaça de Camilo Castelo Branco e a pose melancólica de Bocage estampadas nas notas de 100$00. Ou o garbo de D. Pedro V, com aquele queixo que se dobrava ao meio e fazia de um conto de réis uma anedota indecente. Com o escudo, tratávamos o dinheiro por tu: dizíamos «são vinte paus», da mesma maneira que os espanhóis falavam em «pelas», referindo-se à peseta, e os franceses chamavam «balles» aos francos. Com o escudo, tínhamos mais presente a noção do valor do dinheiro. Nos anos 1980, um LP custava cerca de 400 paus, uma moeda de dois euros. O que é isso, agora? Trocos. E ninguém dá valor a trocos.

(Crónica publicada na edição de 23 de Janeiro da Notícias Magazine, revista de domingo do Diário de Notícias e Jornal de Notícias, na secção "Nostalgia".)

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