O que é que a Anita tem? Tudo. Se não tem, mais cedo ou mais tarde, vai ter. Um baile de flores, uma bicicleta nova, uma volta no carrocel, uma aula de ballet, um bilhete para o circo, uns patins de esqui, uma viagem de avião. A Anita vai ter tudo, sem medo algum. É assim desde 1954, quando dois autores belgas, Marcel Marlier e Gilbert Delahaye, lhe determinaram um destino fulgurante junto de milhões de leitores. Chamaram-lhe Martine – e Martine chamou-se Martita em espanhol, Cristina em italiano, Debbie em inglês e Anita em português. Se fosse de carne e osso, hoje, seria uma mulher empreendedora e elegante, bon chic, bon genre, usaria os melhores cosméticos e recorreria à cirurgia estética para se manter como é: não menos do que perfeita. Talvez orientasse workshops de desenvolvimento pessoal, explicando os sete passos infalíveis para o sucesso. Talvez tivesse uma empresa de packs de experiências – negócio de que foi percursora, sem o saber –, desses que vendem passeios de balão ou limousine, noites em «hotéis de sonho» e aventuras radicais a dois. Tudo de acordo com a moral e os bons costumes, como lhe ensinaram em pequena, num mundo cor-de-rosa onde as personagens adultas são meros figurantes da felicidade. Não reprimem, não criticam, não impõem limites e, a bem dizer, não educam. Uma espécie de Terra do Nunca, mas com dinheiro e sem piratas. Há, nesta fantasia de liberdade, um belo-horrível que ensombra os suaves tons pastéis de Marcel Marlier. Pode não se ver, mas está lá.
(Texto publicado na edição de 20 de Fevereiro da Notícias Magazine, revista de domingo no DN e JN, na secção "Nostalgia".)
(Texto publicado na edição de 20 de Fevereiro da Notícias Magazine, revista de domingo no DN e JN, na secção "Nostalgia".)
3 comentários:
Gostei muito deste texto, Carla.
Um beijo.
Obrigada, Inês. Outro.
Também gostei muito do texto.
Concordo que há algo de perverso em todo aquele sonho cor-de-rosa. Aliás, foi isso que prolongou o meu interesse por esta personagem para além do que ela foi para mim na infância.
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