quinta-feira, 28 de abril de 2011

AFONSO CRUZ E O IRMÃO INSEPARÁVEL


Lembramo-nos mais de Afonso Cruz como escritor ou como ilustrador? Nascido em 1971, na Figueira da Foz, o autor de A Contradição Humana (Caminho) é também músico e realizador de filmes de animação. Ganhou o prémio Maria Rosa Colaço 2009, na modalidade juvenil, com Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho). Ao vencer o prémio SPA/RTP para melhor livro infanto-juvenil de 2010, demonstrou que escritor e ilustrador podem ser irmãos inseparáveis. «Foi o primeiro trabalho do género que fizemos em conjunto e acho que correu bastante bem», contou à LER.

Nota-se uma grande evolução no seu trabalho, desde os primeiros livros, muito próximos do registo do André Letria. Agora é mais fácil descolar do texto para apresentar a sua visão de autor?
Acho que essa proximidade ao André – um dos nossos melhores ilustradores – se deve ao modo como ambos tratamos as imagens, com pinceladas. Por curiosidade, os meus primeiros livros tinham umas ilustrações bastante diferentes, como é exemplo Elvis, O Rei do Rock. Depois, também me parece outra coisa: quando surge um autor novo, tenta-se sempre arrumá-lo na gaveta de alguma coisa conhecida. Passados uns anos, ele pode continuar a fazer exactamente a mesma coisa, mas já não é referenciado e colado a outros, tornando-se uma referência ele próprio. Espero que me aconteça a mim.

Com A Contradição Humana sentiu-se mais livre para fazer o que quisesse, por comparação com as dezenas de livros em que ilustrou o texto de outros autores?
Sim. Acho que pude conciliar melhor o texto e a imagem. O próprio texto é uma ilustração. Tentei que as letras chamassem a atenção para as contradições, quase de um modo panfletário. É que algumas das coisas estranhas à nossa volta escondem-se nas maiores trivialidades. A banalidade é o melhor esconderijo para as coisas extraordinárias.

Quando escreveu «com o devido espírito de contradição» na capa – um elemento peritextual raro nos picture books – qual era a intenção?
O ilustrador achou que dava uma nova dimensão à caça das contradições que andam à nossa volta. E lá dentro há alguma intertextualidade, como aliás acontece na maior parte dos meus livros. Por exemplo, a senhora Agnese, aquela que, apesar de estar grávida projectava apenas uma sombra, é uma personagem de Enciclopédia da Estória Universal, autora de três livros: A Borboleta Taoísta, Comédias Modernas e Filosofia Doméstica para Serviçais. Também aparece em A Boneca de Kokoshcka. Tem uma livraria em Paris e uns óculos com lentes sujas.

Acharia justo que os ilustradores dividissem com os escritores o prémio de Melhor Autor de Livro Infantil da SPA? Ou, pelo menos, que fossem nomeados?
Claro, acharia justo. A categoria é de literatura e deixa de lado as ilustrações, que são parte fundamental destes livros. Deveria ser, talvez, Melhor(es) Autor(es) de livro Infanto-juvenil, em vez de Melhor Literatura Infanto-juvenil. Isso permitiria que vencesse um conjunto escritor/ilustrador ou apenas o ilustrador, no caso de não ter texto, ou apenas o escritor, no caso de não haver imagens.

Que qualidades são necessárias a um bom picture book?
Acho que é muito importante ter uma boa ideia, daquelas que chegam a lugares onde nenhum homem pisou. Depois executá-la com eficiência, tanto com a ajuda das palavras como das ilustrações. Devemos saber deixar ambas respirarem e saber que a ilustração consegue, muitas vezes, descrever situações com mais eficiência do que as palavras e que em outras ocasiões é exactamente ao contrário.

Peter Hunt, uma das sumidades nesta matéria, diz que a
literatura infantil «define-se exclusivamente em termos de um
público que não pode ser definido com precisão.» Não sei se
subscreve, mas um livro como A Contradição Humana é um bom exemplo disso. Como foi trabalhar nessa linha indefinida?

Concordo, claro. A literatura infantil tem a particularidade de poder chegar aos avós tanto quanto aos netos. Mas, na verdade, quase tudo o que escrevi anda nessa linha indefinida. É onde me sinto melhor.



(Entrevista publicada na edição nº 101 da LER. Para recuperar alguma informação que se perdeu na paginação, a entrada foi modificada e aumentada. Ilustração do autor, retirada daqui.)

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