domingo, 29 de maio de 2011

CAFÉ E RESISTÊNCIA


Produzido em 1984, o anúncio da Nescafé passou repetidamente ao longo das décadas de 1980 e 90, deixando no ouvido o hit de Johhny Nash: I can see clearly now, the rain is gone/ I can see all obstacles in my way… Quem o viu, não esquece. É de madrugada, ouvem-se as gaivotas na praia, o rumor das ondas amassado com uma voz de rádio, imperceptível. Uma rapariga estaciona o Carocha branco nas dunas, desliga as luzes, cruza os braços sobre o volante, suspira fundo e fica ali a pensar na vida, e nós a pensarmos com ela. Pensamos num desgosto de amor, porque é isso que mais aflige aos 17 anos, mas pode ser outra coisa – nada assim tão grave que supere ter um Carocha e a liberdade de ir ver o mar enquanto a família dorme, pensamos nós, aos 12 anos. A rapariga é bonita, mas não excessivamente; é um tipo de beleza suave e instintiva que passou de moda, tal como o blusão de ganga e o corte de cabelo escadeado que se despenteia com o vento. O saco cheio de tralha com o Nescafé, o porta-luvas desarrumado onde remexe, à procura da resistência para aquecer a água, tudo compõe um desalinho que nos comove e consola, à luz do amanhecer. É evidente que ela vai fazer as pazes com o namorado; ou então vai mesmo dar-lhe com os pés, ao cafajeste. Não há mal que sempre dure enquanto houver uma resistência à mão, n’est-ce pas? Custa a crer que nem a rapariga nem a praia nem o anúncio sejam portugueses, mas isso só o sabemos agora e, de qualquer modo, ela já partiu para outra.

(Texto publicado na edição de 29 de Maio da Notícias Magazine, revista de domingo do Diário de Notícias e Jornal de Notícias, na secção "Nostalgia".)

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