domingo, 19 de junho de 2011
BRINCAR NA RUA
Não foram só os pássaros que começaram a cantar mais alto, no esforço de se sobreporem ao ruído da cidade, como há tempos alertou uma notícia. A asfixia da vida instintiva está também na evidência de as crianças terem deixado de brincar na rua, levadas por um qualquer Flautista de Hamelin que esvaziou o espaço público de vozes e algazarras. Lugares antes ocupados por tardes de brincadeira são agora metodicamente divididos e pagos em fracções de 15 minutos – a medida do nosso tempo espartilhado, apressado, sempre inquieto. Acabou o jogo da apanhada, das escondidas, do «mamã, dá licença?». Um carrinho de rolamentos é capaz de parar o trânsito, mais do que um Ferrari. Verbos como «correr», «saltar», «trepar» e «lutar» passaram a ser conjugados com culpa e receio parentais. A célebre frase «vai brincar lá para fora» já não é um imperativo categórico de adultos saturados, a necessitar também do seu espaço, mas uma declaração de inconsciência ou, no mínimo, de excentricidade. Paradoxalmente, quanto menos brincam na rua, mais irresponsáveis as crianças crescem. Quem é que hoje diz «vai ali fazer um recado à mãe», sem gerar tumultos ou bocejos enfastiados na sua prole? Deveríamos ir além das preocupações genéricas nesta matéria. Brincar é uma actividade inútil, tão inútil quanto essencial à conquista da identidade e da independência. Passamos do colo da mãe para o chão de casa; passamos da casa para a rua, e da rua para o mundo. Só assim chegamos a algum lado. Não precisamos de ter sempre um vidro ou um ecrã qualquer entre nós e o território que progressivamente conquistamos.
(Texto publicado na edição de 19 de Junho da Notícias Magazine, revista de domingo do Diário de Notícias e Jornal de Notícias, na secção "Nostalgia".)
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1 comentário:
eu nunca brinquei na rua, me trancavam em casa com vídeo game e brinquedos. ficava olhando com inveja os muleques na rua.
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