terça-feira, 1 de novembro de 2011

A VIDA ANTES DA NIGELLA LAWSON


Naquela altura estávamos longe de adivinhar que especialidades como cannelloni, strogonoff ou chop suey entrariam nos hábitos alimentares portugueses. Em 1977, quando o Círculo de Leitores publicou o best-seller de Roland Gööck, tudo nos parecia exótico, irresistível, voluptuoso. Comparando com o Livro de Pantagruel, que marcava presença sóbria e reverencial nas cozinhas portuguesas, As 100 Mais Famosas Receitas do Mundo eram como um concurso da Radiotelevisão Italiana irrompendo a meio de uma eucaristia dominical a preto e branco. Não se conseguia tirar os olhos daquilo, sobretudo se o almoço tinha sido faneca frita com batata. Revestidos por um manto espesso de vernizes e conservantes, os pratos refulgiam nas páginas. A carne tenra do chateaubriand ainda palpitava. O zabaione era digno de receber o último banho de Cleópatra. A charlotte russe parecia um castelo de contos de fadas defendido por palitos à la reine. No meio deste cortejo de volúpias, que o autor dividia entre «alta cozinha» e «especialidades de rústico encantador», Portugal incluía-se, como é óbvio, no segundo grupo. A hierarquia de poderes era visível na supremacia da cozinha francesa (16 pratos), enquanto todo o continente africano se resumia a uma travessa de cuscus. «Especialidades de rústico encantador» eram também as nossas fatias de Tomar, confeccionadas com umas proibitivas 24 gemas, e a carne de porco à alentejana, servida em prato lascado e mesa humilde. Tratava-se de duas escolhas felizes, mas reveladoras das tendências ciclotímicas da nação: ora afundada em açúcar ora a apertar o cinto. É preciso ter estômago.

(Texto publicado na edição de 30 de Outubro da Notícias Magazine, revista de domingo do DN e JN, na secção "Nostalgia".)

6 comentários:

margarida disse...

Fico contente que tenha escolhido essa voluptuosa e bela senhora, para separar "as gemas" (já que é de paparocas que se fala), pois de cozinheiros, perdão, Chefs, andamos já um nadinha enjoados.
As suas Nostalgias são absolutamente maravilhosas.
Cada frase é um primor, cada texto uma viajam ternurenta, deliciosa, fantástica.
Para quanto uma edição com todos os textos e ilustrações complementares?
Por favor!
:)))
São gerações e gerações que aplaudem, lacrimosas e felizes, estes seus belíssimos 'tapetes voadores' para antanho.

Carla Maia de Almeida disse...

Margarida, muito obrigada pelo seu elogio, que me deixa um tanto ou quanto sem jeito. É bom sermos apreciados pelo nosso trabalho. :-) Mas vou dar-lhe, talvez, um pequeno desgosto: as Nostalgias vão acabar em breve, só sairão durante mais duas semanas. A revista vai ser reformulada...

margarida disse...

Ó pá.., as 'reformulações', pois, os tempos e a estatística das vendas para aí empurram o bom e o assim-assim...
diachos...
Mas mais uma razão para a reunião dos textos num volume!
E a empresa que detém o DN publica tantas coisas, vende tanta coisa associada, por certo que seria uma boa sugestão (venda lá o seu «peixe'!!) editarem um volume dessa delícia agora para o Natal, no sistema "Livro das Nostalgias" (hã, bom nome ;) + "X", com o seu jornal... -'mantenha a tradição acesa no seu coração, recorde e dê a conhecer aos seus o que inundou a sua vida de alegria e o seu coração de júbilo..., agora concentrado num único volume, para aquecer amorosamente as celebrações natalícias'
Ou qualquer coisa nesse tom, a apelar ao 'snif, snif...'
Imagina a quantidade que se venderia só para presente?!
Eu cá eram paletes!
Vá lá...
Pleaaaaaaaase...
Faço uma forcinha com velinhas, rezas e tudo, daqui da Senhora da Hora!
Viva Matosinhos!
Viva o Porto!
Vivam as Nostalgias!
Xi-coração.
:)

angelina maria pereira disse...

Subscrevo, completamente, a Margarida: adoro estes textos nostálgicos e acho que bem merecem ser coligidos e publicados com as devidas e imprescindíveis fotos! Please!!

Carla Maia de Almeida disse...

Angelina, eu agradeço do fundo coração, mas sabem que isto não vai lá com "velinhas, rezas e tudo" (para citar a Margarida). Já uns emails para a revista ou para o DN eram capazes de ajudar. Mas para isso era preciso que houvesse mais "nostálgicos"(as). :-) Um abraço a ambas.

margarida disse...

Ora bem, o assunto não ficará por aqui, então...
;)
E como diz a minha mãe, não se deve perder tempo com santos e dirigirmo-nos logo a Deus...