“Pouco a pouco, os clássicos da literatura para crianças (ou literatura tout court) vão sendo objecto de novas edições mais arejadas. E, no caso em apreço, já tardava. Desde a década de 1970 que não se encontrava facilmente uma tradução da obra que deu origem à série emitida pela RTP, no tempo em que a televisão era a preto e branco. O texto agora vertido para português por Maria do Céu Mascarenhas segue a nova tradução ilustrada pela inglesa Lauren Child, autora de personagens igualmente irrequietas como Clarice Bean – com a qual se estreou em 1999 – e vencedora do prestigiado prémio de ilustração Kate Greenaway. Dificilmente se poderia ter escolhido um nome mais indicado para esta parceria.
Pippi das
Meias Altas (Pippi
Langstrump ou Longstocking) foi a
mais célebre criação da escritora sueca Astrid Lindgren (1907-2002) e,
provavelmente, uma projecção da sua personalidade contestatária e irreverente. «A
morte e o amor são os grandes acontecimentos que as pessoas experimentam»,
afirmou: «Não devemos assustar as crianças, mas elas continuam a necessitar de
serem chocalhadas pela arte, tal como os adultos.»
Quando o livro foi publicado na Suécia, em 1945,
houve receio de que tão livre espírito não fosse capaz de se tornar
suficientemente popular entre os leitores – receio que se revelou infundado, já
que as colecções de Pippi venderam
mais de 145 milhões de exemplares e foram traduzidas em 91 idiomas, segundo
informação da Booksmile, a editora que apostou no regresso desta miúda
excepcional. Em vários sentidos. À luz de certas correntes educativas actuais e
mesmo do senso comum, Pippi é um caso flagrante do «politicamente incorrecto»:
estende massa de biscoitos no chão da cozinha, contrariando as mais elementares
regras de higiene. Entra na escola a trote de cavalo, faz orelhas moucas quando
a professora lhe pede para não a tratar por «tu» e acaba por desestabilizar a
aula com as suas respostas desconcertantes. Quando os bem-intencionados
cidadãos da pequena cidade sueca onde vive decidem que o melhor será interná-la
num lar para crianças, Pippi mostra a sua força hercúlea e pega nos polícias
como se fossem caixas de fósforos.
E, depois, há essa questão incómoda relativa à
ordem familiar: Pippi é órfã e vive sozinha, acompanhada por um cavalo e um
macaquinho, o famoso Senhor Nelson. E acha uma maravilha, «porque assim não
havia ninguém que a mandasse para a cama quando estava a meio de um jogo
fascinante, nem que a impedisse de comer todos os chocolates que lhe
apetecesse» (já estamos a ver várias testas franzidas…). Sardenta, de cabelos
ruivos espetados, um par de meias altas às riscas e de cores diferentes, Pippi
sobreviveu à normalização. Sorte dela. E nossa.”
(Texto integral publicado na edição de Maio da
revista LER, sobre o clássico da escritora sueca Astrid Lindgren, que acaba de
chegar numa nova tradução da Booksmile, ilustrada por Lauren Child.)
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