GATO DAS BOTAS Aldrabão, trapaceiro, mentiroso, sem escrúpulos... Mesmo? A moralidade apensa ao conto de Charles Perrault não diaboliza a esperteza de «mestre-gato.
Um case
study para as modernas neurociências, o Gato das Botas pode ser descrito
como um psicopata funcional, cuja única culpa é ter nascido mais inteligente do
que os outros. Séculos de perseguição e glória, do Antigo Egito à Idade Média,
treinaram-no para a finura de uma mente superior, capaz de manter o sangue-frio
até no momento em que escuta a sua sentença de morte. Imperturbável como um sat guru indiano, responde: «Não vos
afligeis, meu dono. Só tendes que me dar um saco e um par de botas para poder
entrar pelo mato dentro, e haveis de ver que não fostes tão mal bafejado como
julgais.» Seguem-se as conhecidas peripécias que transformam o moleiro labrego
– mas «formoso e bem apessoado» – no Marquês de Carabás, apenas com o
sacrifício de alguns coelhos e perdizes para ofertar a um rei embasbacado com o
poder. Dotado de suprema confiança, killer
instinct e um par de botas (símbolo de autoridade e de afirmação social), o
encantador felino, se nos permitem o pleonasmo, vai contando as mentiras que
todos querem ouvir, ameaçando quando é preciso e bajulando quando se impõe. Tudo somado, convenhamos que o preço a pagar por salvar a
pele e ainda garantir a harmonia do reino não é elevado. «Mestre-gato»,
como lhe chama Perrault, sabe que tudo nesta vida muda de forma, a começar
pelos juízos e opiniões. De resto, está-se marimbando para o que pensam dele.
(Texto publicado na LER nº 135. Outros da série «Wendy no Divã»: Capitão Gancho, Lobo Mau, O Chapeleiro Louco.)
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