sábado, 26 de março de 2016

DE PROFUNDIS


No conjunto da obra de David Almond que tem sido vertida para português, Uma Criatura Feita de Mar está mais tematicamente próximo de Que Monstros Fabricamos? (Livros Horizonte) do que O Rapaz que Nadava com as Piranhas (Presença), mas destaca-se por dois motivos: é um livro de contos, género no qual se estreou, em 1985, dirigindo-se ao público adulto; cada conto é antecedido por um texto evocativo das experiências de infância que estão subjacentes à ficção. Para os leitores habituais de Almond, algumas coisas ficarão explicadas; para quem nunca o leu, poderá ser o princípio de uma surpreendente dependência. 

Dizer que Almond escreve como ninguém é uma banalidade (mal estamos quando as imitações são evidentes), tratando-se de um autor que acumulou prémios e louvores da crítica até chegar, em 2010, ao ambicionado Prémio Hans Christian Andersen, o «Nobel da escrita para os mais novos». Contrariaram-se as vozes de Cassandra que, um dia, o advertiram: «Mas tu não passas de um miúdo vulgar. E vens da pequena e vulgar cidade de Felling. Sobre que raio irás tu escrever?» 

Precisamente: escrever sobre a pequena e vulgar cidade de Felling, no norte de Inglaterra; sobre as suas casas de tijolo vulgares, os seus habitantes vulgares, os seus dramas vulgares. No primeiro conto, «O pai do Slog», há um miúdo que vê o pai morto num visitante ocasional, um provável sem-abrigo. «A May Malone», de quem se dizia ter um filho-monstro escondido, explora o tema do preconceito e do medo das diferenças, abrindo «as portas da percepção» ao protagonista (as alusões a William Blake são assumidas). «O poltergeist do Joe Quinn» trava-se no encontro de uma mãe hippie com um padre pouco convencido do etéreo. Nunca temos a certeza do verdadeiro e do falso.

O que faz de David Almond um autor genial não é só a elegância da linguagem, profunda e fluída como um rio subterrâneo, mas a demonstração implacável de uma certa verdade que só existe na literatura: «É o que tem de estranho esta coisa de escrever histórias – inclui-se algo imaginário para tornar a coisa mais real.»   

Uma Criatura Feita de Mar
David Almond
Presença

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