No conjunto da obra de David Almond que tem
sido vertida para português, Uma Criatura
Feita de Mar está mais tematicamente próximo de Que Monstros Fabricamos? (Livros Horizonte) do que O Rapaz que Nadava com as Piranhas
(Presença), mas destaca-se por dois motivos: é um livro de contos, género no
qual se estreou, em 1985, dirigindo-se ao público adulto; cada conto é
antecedido por um texto evocativo das experiências de infância que estão
subjacentes à ficção. Para os leitores habituais de Almond, algumas coisas
ficarão explicadas; para quem nunca o leu, poderá ser o princípio de uma surpreendente
dependência.
Dizer que Almond escreve como ninguém é uma
banalidade (mal estamos quando as imitações são evidentes), tratando-se de um
autor que acumulou prémios e louvores da crítica até chegar, em 2010, ao
ambicionado Prémio Hans Christian Andersen, o «Nobel da escrita para os mais
novos». Contrariaram-se as vozes de Cassandra que, um dia, o advertiram: «Mas
tu não passas de um miúdo vulgar. E vens da pequena e vulgar cidade de Felling.
Sobre que raio irás tu escrever?»
Precisamente: escrever sobre a pequena e vulgar
cidade de Felling, no norte de Inglaterra; sobre as suas casas de tijolo
vulgares, os seus habitantes vulgares, os seus dramas vulgares. No primeiro
conto, «O pai do Slog», há um miúdo que vê o pai morto num visitante ocasional,
um provável sem-abrigo. «A May Malone», de quem se dizia ter um filho-monstro
escondido, explora o tema do preconceito e do medo das diferenças, abrindo «as
portas da percepção» ao protagonista (as alusões a William Blake são assumidas).
«O poltergeist do Joe Quinn» trava-se no encontro de uma mãe hippie com um padre pouco convencido do
etéreo. Nunca temos a certeza do verdadeiro e do falso.
O que faz de David Almond um autor genial não
é só a elegância da linguagem, profunda e fluída como um rio subterrâneo, mas a
demonstração implacável de uma certa verdade que só existe na literatura: «É o
que tem de estranho esta coisa de escrever histórias – inclui-se algo
imaginário para tornar a coisa mais real.»
Uma
Criatura Feita de Mar
David Almond
Presença
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