Quando viajamos, levamos connosco os nossos valores. Não me refiro ao relógio ou ao ipod, mas àquele património imaterial que logo faria soar o alarme da suspeita, se detectado nas máquinas de raio X. Género: “O senhor é um bocado intolerante, para não dizer xenófobo. Tem a certeza de que quer viajar para o país A, B ou C?” Ou então: “A senhora revela uma tendência gritante para o comodismo. Será boa ideia viajar em grupo? Pense lá bem.” Não sendo a favor de mais vigilância sobre a liberdade dos cidadãos, tout court, creio que muito trabalho se pouparia se houvesse nos aeroportos um detector de valores imateriais. Por outro lado, imaginem a balbúrdia durante o voo. “Eu não me sento ao lado desse individualista.” “Ai, é? E eu não como ao lado de defensores de touradas.”
É impossível viajar sem pôr à prova os nossos valores. Se calhar, uma das razões por que saímos de casa, sozinhos ou acompanhados, é justamente essa. Como muita gente, também acredito que o teste de um relacionamento próximo, amoroso ou não, passa pelo crivo de uma viagem com algum grau de dificuldade. A distância, a mudança de hora, de clima, de hábitos e de idioma, entre muitas outras coisas, arrancam-nos da nossa zona de conforto e fazem-nos ganhar a chamada “personalidade de viagem”, que pode ser muito diferente da personalidade de trazer por casa. Leia-se A Arte de Viajar, de Alain de Botton, para ver este assunto amplamente debatido com graça e propriedade.
Cada vez mais, gosto de viajar para conhecer outras pessoas. Gosto de portugueses em Portugal, quando é caso disso, mas se os encontro numa cidade estrangeira, aos pares ou em família, sou capaz de fazer conta que falo urdu, só para evitar aquela troca de nacionalismos confrangedora: “Ah, também é portuguesa?!”. “Sim, mas só porque não pude escolher primeiro”, apetece-me logo dizer.
Em viagem, gosto de conhecer pessoas que não conheço habitualmente. Não aquela experiência fugaz que advém da partilha de uma carruagem de comboio ou da mesa de um Bed & Breakfast, mas algo que está além disso, e que resulta da possibilidade de entrar na vida real dessas pessoas, ainda que por pouco tempo. Embora as catedrais góticas e os grandes mestres da pintura continuem a ser fascinantes, o planeta já não se oferece à facilidade da descoberta; a não ser, talvez, no capítulo das aventuras humanas. A Internet abriu portas para caminhos perigosos, mas também permitiu aceder a vastos mundos comunicantes: a rede CouchSurfing é um bom exemplo. Em poucas palavras, trata-se de oferecer um quarto – ou apenas um sofá-cama – a alguém que está de passagem, segundo um princípio de alojamento informal e gratuito. Não é obrigatório que essa pessoa faça o mesmo, embora haja uma certa lógica de reciprocidade em todo o projecto.
As razões que levam alguém a partilhar a sua casa com um desconhecido são muitas, mas na base desta rede social tem de estar um valor comum a ambas as partes: confiança. Haverá outros – curiosidade, solidariedade, cosmopolitismo, generosidade, etc – mas sem a confiança, à partida, penso que ninguém é capaz de emprestar a um estranho a chave da sua própria casa e convidá-lo a partilhar o seu espaço de intimidade. Isto nada tem a ver com optimismo ou pessimismo, a meu ver. Sou pessimista quanto à extinção das espécies ou à idoneidade da classe política portuguesa, mas isso não me impede de olhar para cada pessoa como um indivíduo e de tentar conhecê-la sem esperar sempre o pior. Não sou optimista, sou confiante. Se o CouchSurfing parece um disparate ou uma insensatez para muita gente, talvez isso queira apenas dizer que os valores que subscrevem – em viagem, pelo menos – são diferentes dos meus. So what?
(Fotografia de Inês Gonçalves.)
1 comentário:
Não podia estar mais de acordo. Adorei o texto. Parabéns.
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