segunda-feira, 13 de abril de 2009

FIRMIN: VOLÚPIA E MELANCOLIA


“Volúpia e melancolia” foi um dos títulos possíveis para a crítica de Firmin, de Sam Savage (Planeta), publicada na última LER. Acabou por ficar “Um terno naufrágio”, outra maneira de resumir o sentimento de queda enlanguescente que atravessa todo o livro, cujo final demonstra que nem sempre os ratos são os primeiros a abandonar o navio.

Firmin é uma fábula extraordinária que a princípio julguei mais adequada a adolescentes e pensei incluir na secção “Leituras Miúdas”. Não se entenda aqui qualquer menorização literária, como é óbvio, mas apenas uma má interpretação da minha parte em relação ao destinatário principal da obra. À segunda leitura, percebi que Firmin não é (sem deixar de poder ser) um livro para adolescentes. Não por causa das muitas referências literárias que contém, mas apenas porque a impressão do fracasso não deve – ou não deveria – fazer parte do mal-estar adolescente. O sentimento de inadaptação das personagens poderá calar fundo em quem tem 16 anos, ou perto disso, mas a sensação de que existe todo o tempo do mundo para o resolver deverá ser total e avassaladora. Só mais tarde, na chamada idade adulta, conseguimos perceber como estávamos enganados quanto à reversibilidade das coisas – e persistir adequadamente nesse engano, porque na verdade não há muito mais a fazer. É por isso, e apenas por isso, que Firmin não é um livro para adolescentes.

Aqui fica o último parágrafo do texto publicado na LER (com a “ternura felliniana” que sofreu um corte na edição, hélas!):

“Estavam a imaginar mais um desses ratos espertos e engraçadinhos? Para que conste: «I piss down the throats of Mickey Mouse and Stuart Little» (ou, na virtuosa tradução portuguesa, «abomino o Rato Mickey e Stuart Little»). Firmin, «ocupante ilegal, vagabundo, desempregado, pedante, voyeur, destruidor de livros, sonhador ridículo, mentiroso, vigarista e pervertido», é mais um náufrago num bairro com morte anunciada. Scollay Square demoliu-se entre 1960 e 1963, dando lugar à tenebrosa praça cimentada de Government Center. Sam Savage, que conviveu com a beat generation e acumulou empregos incertos antes de concluir o doutoramento em filosofia por Yale, faz a arqueologia desse desaparecimento, num estilo sensorial e cinematográfico de puro contador de histórias. A devoção literária e a ternura felliniana pelos personagens não iludem o sabor amargo da poeira. Um livro para adolescentes? Não exactamente. Apenas pela simples razão de que aos quinze, vinte ou mesmo trinta anos a possibilidade de um grandioso fracasso é uma noção demasiado estranha.”

(Ilustração de Fernando Krahn para um dos postais a preto e branco que acompanham a edição portuguesa.)

2 comentários:

Pan disse...

Também li e gostei do Firmin, entendi-o assim:
«Creio que todos nós, uns mais outros menos, uns fantasiando, outros levando muito a sério, já nos sentimos como que prisioneiros nos nossos invólucros corporais. Acontece-nos não acharmos correspondência entre aquilo que a nossa imagem mostra e o que o nosso corpo demonstra. Como que fechados, presos, encarcerados em vidas que não queremos conhecer, em histórias que não gostaríamos de partilhar. Enquanto, no outro lado, vivemos em sonhos e fantasias que, em boa verdade, se tornam realidade efectiva, mesmo que nunca cheguem a acontecer.
Como que, por exemplo, uma imaginação delirante nos dissesse que uma ratazana não era apenas uma ratazana, mas um espírito imenso, imerso em contradições humanas, em desejos, dúvidas e alegrias que nunca reconheceríamos num roedor com aspecto repugnante.
Uma ratazana mais Humana que qualquer pessoa. Uma ratazana, suprema fantasia, que conseguisse ler, observar, absorver e viver, todas as milhares de páginas que bebeu avidamente.
É, no fundo, um ser humano sensível, crente na bondade dos outros e do mundo, que, apercebendo-se que a desilusão também faz parte desse mundo, acaba por não se render e num último momento, devorando, literalmente, uma derradeira página do primeiro livro que foi seu, o converte, definitivamente, em seu, materializando uma velha suspeita: « (…) toda a gente tem dois lados, um escuro e um claro(…)»

Francisco Sousa

Carla Maia de Almeida disse...

É uma boa leitura, Pan...