terça-feira, 30 de junho de 2009

COMER OS LIVROS, 1


Quando a Casa da Leitura me pediu a lista de “Os Livros da Minha Infância”, estive vai-não-vai para incluir As 100 Mais Famosas Receitas do Mundo, uma edição do Círculo de Leitores datada de 1977 que moldou para sempre a minha consciência do paladar. Nas primeiras vezes a que me abalancei a fazer um Irish Stew ou um Ratatouille guiei-me pelas indicações do autor, Roland Gööck. Houve até uma fase em que pensei dedicar-me à crítica gastronómica, mas razões de cobardia estética travaram-me o impulso e sucumbi aos augúrios da balança. Ainda hoje esta decisão me pesa na consciência, de vez em quando.


Isso aconteceu muito mais tarde, claro. Aos oito ou nove anos, apenas achava estranho que uma parte do mundo se alimentasse exclusivamente de “milho, painço e sorgo”, como resumia O Atlas do Nosso Tempo, outro livro transformado em companheiro de brincadeiras (nessa altura, os livros eram tão raros e estimados que as leituras, de tão repetidas, lhes davam uma existência paralela à nossa). As 100 Mais Famosas Receitas do Mundo constituiu o contraponto a essa desolada trilogia alimentícia em que apenas um dos ingredientes, o milho, me era familiar. Ainda hoje, “painço e sorgo” remetem-me para um continente desconhecido onde creio que dificilmente sobreviveria à fome, real ou simbólica.


Devo a Roland Gööck a primeira introdução ao Caril de Galinha, ao Chili com Carne, ao Risotto, ao Chop Suey, ao Nasi Goreng, à Paella, ao Zabaione, ao Ossobuco, ao Cuscus, ao Chateaubriand e a outros pratos a que me entregava com uma gula contemplativa que deixaria as suas marcas (algumas delas bem visíveis, hélas!). Havia injustiças, é certo. Agora que penso nisso, interrogo-me sobre a ausência de qualquer representação gastronómica da Grécia, do Brasil ou da Tailândia, só para dar três exemplos notórios. Que qualquer prato de peixe figurasse entre estas 100 maravilhas do mundo culinário, parecia-me, à época, ainda mais revoltante. Idem para os sombrios pimentos recheados da Turquia, a esquálida salada de endívias da Bélgica ou o monocromático molho verde italiano, que a meu ver não merecia ocupar um lugar entre os eleitos (era só um molho, caramba!).


Porém, a ordem do mundo compunha-se perante a visão das elegantíssimas Peras Belle Hélène ou da voluptuosa Moussaka, a que as pinceladas de verniz indispensáveis à fotografia davam ainda mais graça; e a realidade ganhava consistência perante a simples possibilidade de imaginar o sabor dos Boston Baked Beans, o prato aventureiro do “pioneiros” e dos “lenhadores da fronteira canadiana” em que imediatamente me transformava, frente à lareira acesa. Não sei se pela curiosidade de se apresentarem em potes de louça em vez de pratos, se por causa daquelas fatias redondas de “pão de aveia” que me faziam lembrar as deliciosas belouras fritas, os Boston Baked Beans ocupavam o meu top de preferências. Com eles soube o que era a vontade de comer os livros, um gosto que me ficou para sempre.

3 comentários:

vera disse...

ahaah tambem se come com a vista, pois pois ... ;-)
pois esses cereais de que falas sao de facto a base da alimentaçao em Africa e olha que da para fzer pratos deliciosos, desconhecidos do paladar gastronomico literario !
mas a moussaka nao e grega ?

Carla Maia de Almeida disse...

Pois, creio que sim, mas aqui no livro a mussaká (ou moussaká) vem como receita do "Oriente". Mais concretamente, adstrita a "todos os países que estiveram sob o domínio turco". A Grécia não tem direito a referência própria...
Fico à espera de receitas com "painço e sorgo"! :-) Onde encontrar em Lisboa essas delícias?

vera disse...

www.recettes-cuisine-afrique.info/

a minha preferida e uma sobremesa : o "degue de petit mil", pode-se fazer com iogurte

em lisboa nao sei talvez numa loja macrobiotica ou nas mercearias da rua do poço dos negros

gosto de ler o teu blog