segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 28


Há pelo menos três viagens dentro da mesma viagem. Há a viagem da predisposição mental e emocional, feita de expectativas, projecções, planos e decisões práticas sobre que roupa e livros levar. Há, depois, a viagem propriamente dita, raras vezes correspondente ao que havíamos imaginado. Desenrola-se num estado de quase irrealidade, como um filme ou um sonho em que nos observamos à distância, incapazes de reconhecer o eco dos nossos passos em solo estrangeiro. É quando a viagem nos faz a nós, ao contrário da primeira. E há, por fim, a terceira viagem, síntese das anteriores e, de longe, a mais imprevisível. É a viagem do regresso a casa, do desfasamento das rotinas, da estranheza dos lugares e ruídos que antes nos eram familiares (as travagens bruscas dos automóveis na nossa rua, a chamada do editor a lembrar o texto para entregar, a campainha da loja de ferragens que sempre toca à passagem de um cliente…). Para exorcizar o medo do desconhecido, pousamos a bagagem e percorremos a casa e os objectos numa mistura de ansiedade e conforto, a fim de nos certificarmos de que tudo está, afinal, nos seus lugares. Mas essa é apenas uma mentira conveniente que contamos a nós próprios, porque nunca regressamos iguais ao que éramos, nem tão pouco o mundo permaneceu intacto à nossa espera. As verdadeiras viagens são as que nos trocam as voltas, as palavras e as evidências que tomamos por garantidas. Só passado o tempo justo e necessário é que conseguimos, eventualmente, abarcar a inteireza das três viagens a que tivemos direito.

1 comentário:

Guto disse...

Sossega: A mesa continua a ter pernas, os gatos continuam a ter pêlo e os livros continuam a ter páginas...:-)