quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O ESCRITOR SEM VIRTUDES


Há quem não perdoe a Roald Dahl por ter vivido. Sejamos mais precisos: há quem não lhe perdoe as tentações donjuanescas, especialmente junto de mulheres casadas, nem o facto de se ter divorciado da actriz Patricia Neal depois de trinta anos conturbados, assumindo o affair com uma mulher mais nova chamada Felicity (os escritores nunca escolhem os nomes por acaso), com quem viveu até ao dia 23 de Novembro de 1990, talvez quase feliz. Roald Dahl, de quem falámos na edição anterior da LER, vinte anos volvidos sobre a sua morte, nunca foi uma figura pacífica, como pessoa e como escritor. Proferiu declarações que lhe valeram a acusação de anti-semitismo; e as feministas dos anos 1970 deleitaram-se a procurar sintomas de misoginia nas entrelinhas dos livros. Se os editores necessitaram de uma paciência de Job para lhe atender as exigências e caprichos, os ilustradores com quem trabalhou – incluindo Quentin Blake, com quem estabeleceu a mais sólida parceria – confrontaram-se com o seu calculismo financeiro, a faceta de homem de negócios que se revelou desde o tempo em que era funcionário da Shell. Chamaram-lhe arrogante, competitivo, narcisista, interesseiro e manipulador – só para citarmos alguns dos epítetos levantados na biografia assinada por Jeremy Treglown. E o que tem isso a ver com a literatura? Rigorosamente nada. A boa literatura dispensa a suposta virtude dos seus autores. Só a dependência histórica entre o sistema educativo e o sistema literário parece criar em algumas mentes vigilantes a ideia de que os escritores de livros para crianças e adolescentes tenham de circular numa espécie de recreio almofadado, onde possam cultivar amorosamente a sua «criança interior» sem correr o risco de amar, destruir e duvidar. Roald Dahl escolheu viver. Quem não vive, acaba a escrever sobre sentimentos de coelhinhos cor-de-rosa, acreditando que está a contar a melhor história do mundo.


(Texto publicado na edição nº 96 da LER, na coluna de opinião "Boca do Lobo", secção "Leituras Miúdas". Na foto, Roald Dahl aquando do seu casamento com a actriz norte-americana Patricia Neal.)

2 comentários:

leonor disse...

Obrigada, Carla, por esta crónica! Aqui por casa com os meus filhos e desde há muitos anos na minha lide de ensinar, tenho visto o Roald Dahl a ter lugar de escritor de culto. Pouco complacente com morais balofas, faz as delícias de muitos miúdos. Ele e o Lemony Snicket (infelizmente, Uma Série de Desgraças, nunca chegou a ser integralmente traduzida por cá)foram os escritores-herói de um dos meus filhos!

Carla Maia de Almeida disse...

Obrigada, Leonor. É bom saber que temos heróis em comum. O Lemony Snicket só foi publicado até ao número 7, que eu saiba.