domingo, 19 de dezembro de 2010

OS CORDÉIS ESTÃO POR UM FIO


Há coisas que desaparecem e outras que vão desaparecendo. As primeiras podem doer mais, mas é uma dor que passa depressa. Um dia vamos à procura da nossa revista ou da agenda anual do costume – e pronto, kaput, já lá não está, desapareceu. Foi «descontinuada», como se diz agora. Ficamos tristes, irritados, conformados – e dali a algum tempo já esquecemos. As coisas que vão desaparecendo, pelo contrário, roubam-nos a consciência aguda da perda, o que significa perder duas vezes. É uma perda em movimento que vai doendo e moendo, na forma verbal mais melancólica de todas, o gerúndio. Só reparamos nas coisas que vão desaparecendo quando precisamos mesmo delas, e isso também causa algum desconforto. Os cordéis, por exemplo. Devíamos ter continuado a guardá-los como faziam os nossos pais e avós, confiantes no provérbio «guarda o que não presta e terás o que precisas»? Os cordéis vão desaparecendo à nossa volta, é verdade. Substituíram-se por fita-cola, aberturas fáceis, fechos reutilizáveis, velcros, molas coloridas, película aderente e outros recursos. Já ninguém se lembra deles para atar os sacos de arroz, nem para um conserto de improviso, nem para fazer o jogo da cama-do-gato. A gaveta das «coisas-sem-arrumação», onde dantes se encontrava de tudo – cordéis, rolhas, parafusos, lápis a meio, fichas triplas, pedaços de arame, escovas de dentes usadas e sabe-se lá o que mais – também já quase não existe nos apartamentos modernos. Mas virá o dia em que vamos precisar de ter um cordel à mão, para desatar o nó do problema. Pelo sim pelo não, talvez valha a pena guardar o próximo cordel que nos calhe em sorte.

(Texto publicado na edição de 19 de Dezembro da Notícias Magazine, revista de domingo do DN e JN, na secção "Nostalgia".)

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