(na continuação do post anterior, aqui fica a última parte da entrevista de Álvaro Magalhães que saiu em versão ultra-condensada na LER 119.)
CMA: Tratando-se de obras no mesmo género, o que é que o Lucas Mascarpone vai acrescentar ao Vampiro Valentim? Ou seja, o que vai fazer para não repetir a fórmula?
ÁLVARO MAGALHÃES: Só a fórmula gráfica se repete. A série das crónicas do Vampiro Valentim foi tão bem recebida que decidi reincidir. Foi uma espécie de bis de teatro. Mas há muitas diferenças: passando-se a história de Lucas Scarpone num mundo de gatos, tenho menos constrangimentos na exploração da fantasia e da dimensão sobrenatural. Além disso, no Valentim não há propriamente um personagem central; esse é a família. O grande herói da série é, na verdade, negativo: Adolfo-Mil Homens, o caçador (odeio caçadores!) que representa o homem moderno, desumanizado e solitário, que fala com o retrato do pai e foge das duas vizinhas que o namoram. Por sua vez, no Lucas tenho mais espaço para a construção do herói. Além das aventuras que vive, ele também busca a sua identidade e o teor do seu destino, e passa pelas angústias e pelos júbilos do enamoramento… Ou seja, não é construído pela esfera da acção, mas a partir do seu mundo interno. Também foi feito a pensar no mercado internacional. O Valentim é algo especificamente português, até portuense, e mesmo assim já chegou à Espanha, ao Brasil, até à Coreia do Sul. O Lucas tem um carácter mais universal e talvez ajude a acrescentar a lista dos meus publicados no estrangeiro, que vai em dezasseis
CMA: Acha que o Vampiro Valentim levou muitas crianças a ler mais regularmente? Quando vai às escolas (não sei se ainda vai…), sente que o seu público mudou?
ÁLVARO MAGALHÃES: O formato, em que quase tudo o que é narrado é visualizado, é perfeito para a geração das imagens, que chega à leitura com alguma resistência à mancha negra de texto, por melhor que esse texto seja. Porém, mais do que saber que estou a iniciar e a criar futuros leitores, agrada-me a ideia de ter leitores, muitos leitores. O que é um livro? Apenas um conjunto de símbolos mortos. Então chega o leitor, abre-o e as palavras ganham vida, erguendo mundos imensos, inesperados. E também elas encontram o leitor e nele se afundam, por vezes para sempre, como aquelas pedras que as crianças lançam aos poços. Quanto às visitas escolares, já não as faço há uns bons anos. Nem uma. De resto, essas visitas tornaram-se em meras estratégias de venda de livros, mesmo quando querem fazer passar aquilo por outra coisa. Nalguns casos, são mesmo as escolas os únicos sítios onde esses livros se vendem. E ainda há escritores que se gabam de fazer mais de cem visitas escolares por ano. É quase um emprego. Assemelham-se aos antigos vendedores de enciclopédias. Certa vez, uma professora de Bragança anunciou aos alunos a minha visita, no dia seguinte, e um deles ergueu um dedo no ar e perguntou: «Vem cá, como? Ele não está morto?» Tinha razão, o rapaz: escritor bom é escritor morto. Assim, e como tenho a sorte de ainda estar vivo, passei a comportar-me como se estivesse morto. Quando me telefonam de uma escola, a fazer o convite, e perguntam: «Estou a falar com o Álvaro Magalhães?», apetece-me responder: «Sim, daqui fala o morto». Levo a coisa tão a sério que também não me lembro de fazer uma sessão de apresentação de um livro, ou outra coisa qualquer. O único compromisso regular que tenho é com a minha imaginação. E chega.
CMA: A pergunta dá pano para mangas, mas como é que vê o actual panorama da literatura infanto-juvenil actualmente, em relação a tudo o que já observou?
ÁLVARO MAGALHÃES: Vista de longe, parece mais pujante do que nunca, dada a multiplicação incessante de títulos, mas não é verdade. O que predomina são os textos rasos, planos ou pedagógicos, ou os que nem isso são, tudo de uma mediania mais confrangedora do que o silêncio. São os livros dos «inhos» (usam muito os diminutivos, já que eles mesmos são diminutivos), dos lugares-comuns, das adjectivações solenes, das poetizações primárias, ou seja, das «estrelas tremeluzindo nas superfícies dos lagos» e, sobretudo, das «asas do sonho», que tudo resolvem, encobrindo a incapacidade argumental. Felizmente, há também alguns bons livros, frequentemente perdidos na confusão geral ou arredados das prateleiras mais vistas, e felizmente também esses livros já não só da malta do costume, mas também de novos autores, que, finalmente, se dão a ver. Nunca nos faltaram bons ilustradores (e então agora...), mas houve uma altura em que a espécie «escritores» parecia ameaçada. Agora não.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário