terça-feira, 28 de junho de 2016
LEITURAS DE FÉRIAS, 5: FINALMENTE O VERÃO
Finalmente o Verão, de Mariko Tamaki (texto) e Jillian Tamaki (ilustração), duas primas de ascendência japonesa nascidas no Canadá, é o quarto título publicado na colecção Dois Passos e um Salto, «para adolescentes e outros leitores mais crescidos», como desde o início foi apresentada pela editora Planeta Tangerina. Nada de equívocos, portanto. A linguagem explícita que aqui aparece é até bastante soft, se comparada com alguns «diálogos» avulsos que captamos na rua ou perto de qualquer escola secundária. Se há pais, professores, livreiros e adultos em geral que preferem olhar para os adolescentes como se os pudessem conservar num frasco de formol delicodoce, talvez seja porque se esqueceram dessa época bruta, incerta, confusa e sempre angustiante que se sucede à relativa previsibilidade da infância. Finalmente o Verão tem tudo a ver com isso e muito mais.
A maternidade é um dos temas que atravessam o livro de uma ponta à outra - e esta noção de «travessia» é, em si mesma, estruturante do ponto de vista narrativo. Primeiro, a travessia da família Wallace para a zona dos grandes lagos, um lugar idílico chamado Awago Beach onde desde há muitos anos passam as férias de Verão. Rose Wallace, adolescente magra e aérea como um galho, reencontra ali a amiga de infância, Windy, cujo corpo redondo contrasta com o seu e oferece já outra visão do feminino, menos agreste e mais maternal. Mas perceberemos rapidamente algumas das razões da crispação de Rose: um aborto espontâneo da mãe às seis semanas, ainda por curar, transporta o mal-estar e as discussões do casal Wallace para o desejado retiro no seu éden privado.
Interligando-se com o cenário familiar, o quotidiano rude dos adolescentes e jovens adultos da localidade de Awago Beach - e o impacto de uma gravidez não desejada entre duas personagens - adensam o clima sufocante da teia de relações humanas. Surgem alguns presságios: as referências aos feiticeiros da tribo Huron, ancestrais habitantes daquela região do Canadá, agora convertidos em atracção turística; ou a fantasmática figura do homem que aparece a Rose quando ela foge para o lago, avisando-a do perigo dos relâmpagos. No entanto, nada nos prepara a iminência da tragédia nem para o final redentor do livro. E essa surpresa é um dos deslumbramentos desta novela gráfica em tons de azul, por isso não a estraguemos aqui.
Mas esta é, esssencialmente, uma travessia dos lugares cristalizados da infância, ainda com cheiro a gomas e refrigerantes e festas de pijama, para outros lugares insondáveis onde se fala (muito) de sexo, rapazes, casamento, filhos... Personagens que são, sobretudo, seres em transição: raparigas que gostariam de ser mulheres para serem desejadas; mulheres que gostariam de voltar a ser crianças só «para poder gritar e espernear», mulheres que não querem ter filhos porque elas próprias se sentem ainda crianças. A maternidade, fortemente simbolizada nas águas uterinas do lago, recorda que «a mãe natureza nem sempre é a pessoa mais simpática do mundo». Por vezes, navegamos em águas turvas ou desconhecidas. Há perdas de sangue e de filhos; há conversas cortadas a meio e mensagens não respondidas no telemóvel. Há a eterna incomunicabilidade das coisas brutais, e também o esforço que fazemos para lhes dar um nome. Onde faltam as palavras, exorbitam as onomatopeias, traduzindo emoções, cheiros, sabores, sensações, gestos, movimentos, sons. Do muito grande ao muito pequeno, o espaço de página faz convergir espaços antagónicos e tempos paralelos com absoluta mestria.
Muito mais poderia ser dito sobre Finalmente o Verão, livro que mereceu, com bastante polémica (ver aqui), o prestigiado Caldecott Honour, atribuído pela American Library Association, em 2015. É um daqueles livros que não hesitamos em classificar como obra-prima, por muito batida que esteja a palavra. E ainda bem que agora se escrevem tantas obras-primas na literatura infanto-juvenil. Mas nada de equívocos, novamente: este é um livro «para adolescentes e outros leitores mais crescidos», que muitos adultos deviam ler pelo menos duas vezes. Terminamos com a fala do homem do lago, que com o seu cão magro aparece junto de Rose, deixando-lhe um sábio conselho: «Algumas lições só se aprendem a doer, miúda. Não precisas armar ao pingarelho.»
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