terça-feira, 25 de outubro de 2016

RUDYARD KIPLING: ELEGÂNCIA E SABEDORIA


Publicada em 1902, pela Macmillan, a colectânea de contos Histórias Assim vai beber às narrativas mitológicas de explicação do mundo («Como apareceram os tatus», «Como se escreveu a primeira carta», «Como o leopardo arranjou as suas pintas»...), transmitidas oralmente por todas as culturas. Kipling encarna aqui a figura patriarcal do contador de histórias, deixando sobressair marcas de oralidade com forte cariz afetivo. Pelo recurso à repetição, ao comentário e ao vocativo «ó-Mais-que-tudo» («O my Best Beloved», no original), os contos ganham uma aura presencial íntima que influencia o pacto narrativo com o leitor.

Há uma razão para que tal aconteça. As primeiras três fábulas de Histórias Assim foram inventadas para a filha primogénita do casal Kipling, Josephine (Effie), que a cada reconto «exigia» ao pai a mais rigorosa reprodução da narrativa anterior, sem que uma vírgula fosse alterada. A menina morreu aos seis anos, vítima de pneumonia, e Rudyard Kipling recriou a magia do contador de histórias nos nove contos posteriores – doze, no total, um número perfeito e simbolicamente carregado. Essa típica exigência infantil da repetição explica o título do livro, Just So Stories, mais certeiro na tradução de Ana Saldanha (Histórias Assim Mesmo, Caminho, 1999), onde o uso adverbial de «mesmo» enfatiza a procura de exatidão e de fidelidade. 

Dito isto, há que elogiar a força da tradução literária desta nova edição ilustrada, um trabalho de Ana Mafalda Tello/João Quina Edições que preserva a elegância minuciosa da escrita de Kipling, a sua musicalidade e sua extraordinária riqueza vocabular. Não é todos os dias que um livro para crianças nos obriga a consultar o dicionário, mas talvez este não seja bem um livro para crianças. Não existe uma retórica moralista e universalizante nestas histórias, e os seus desfechos inesperados são prova disso. Situadas nos quatro cantos do mundo, da Austrália à Amazónia; atravessando os mares, os desertos e as savanas, transportam-nos para um tempo mítico em que tudo era possível – nem sempre a contento de todos, mas sempre explicável. 

Histórias Assim
Rudyard Kipling
Sébastien Pelon (ilust.)
Bertrand/Círculo de Leitores


(Texto publicado na revista LER nº 143, secção Leituras Miúdas. Sobre Os Livros da Selva, recentemente reeditados num só volume pela Relógio d'Água, ler aqui.)

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