Noite
Estrelada, de Jimmy Liao (n. 1958, Formosa), abre com
uma dedicatória dirigida aos leitores: «Para as crianças que não se sentem em
sintonia com o mundo.» Mas Jimmy Liao não é «apenas» um autor de livros para
crianças, e por isso esta dedicatória tem um valor metonímico, capaz de tocar
adultos que também não se sentem em sintonia com o mundo. Ou seja, uma
imensidão de leitores.
Sem prescindir da palavra, mas concentrando-se
no seu enorme talento enquanto ilustrador, os três livros já traduzidos pela
Kalandraka (Desencontros, Segredos na Floresta e O Peixe que Sorria) são portadores de
temas universais não circunscritos ao destinatário infantil: a identidade, a
solidão, o amor, a amizade, a estranheza do ser humano dentro de si próprio e
perante um mundo que por vezes é hostil e, outras vezes, representa a
possibilidade da serenidade individual e da união com o outro.
Sempre numa linha ambígua onde a sugestão
onírica se funde com as fronteiras do real, Noite
Estrelada (The Starry Starry Night,
no original) aprofunda esses temas e leva mais longe as intertextualidades
plásticas; desde logo presentes no título e na belíssima imagem de capa, uma referência
direta ao quadro de Van Gogh, Noite
Estrelada (The Starry Night). Os
protagonistas são dois pré-adolescentes, uma rapariga e um rapaz que a
princípio se desconhecem, e cuja aproximação decorre da sua condição de seres inadaptados.
Nem a escola nem a casa familiar equivalem a lugares seguros, e as barreiras da
comunicação entre adultos e crianças revelam-se a cada passo: «Adoro a minha
mãe e ela adora-me. Mas ela não me compreende, e também não me parece que eu a
compreenda.» A deriva da adolescência pode ser sintetizada nesta bela frase:
«Era como uma planta a crescer num labirinto, sem se preocupar com o lado da
saída.»
Sobre este fundo de inquietação e desajuste,
Jimmy Liao elabora o acaso feliz de um encontro que eleva os protagonistas
acima da superfície mundana, emprestando-lhe o dom dos flâneurs sem tempo nem idade. Juntos, empreendem uma viagem que
reflete o contraste entre a cidade e o campo, em direção à casa de um avô já
desaparecido, mas cuja memória ecoa na escuridão da noite interior. A
descoberta mútua não se faz sem iludir a perda; ainda que, mais à frente, o
fundamental seja recuperado. Como sempre se deseja.
Noite
Estrelada
Jimmy Liao
Kalandraka
(in LER nº 145)
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