sexta-feira, 12 de maio de 2017

RADIOGRAFIA DO ESPÍRITO


Entre as possíveis interpretações do título, inspirado nos jogos de oralidade das crianças de Luanda, arriscamos esta: se o corpo é a nossa primeira casa, dizer que A Minha Casa Não Tem Dentro sugere uma perda de alicerces e de falta de chão, a lembrar as cidades devastadas pela guerra e os seus prédios esboroados, sem nada lá dentro, submetidos à mais crua exposição. Porque é disso que trata esta novela gráfica e autobiográfica: o corpo exposto à doença e à sua mais fiel companheira, a morte. «No dia 22 de fevereiro de 2016 – por causa de uma veia que rebentou no meu estômago – morri e regressei à vida (...)», escreve António Jorge Gonçalves, em nota introdutória, e essa explicação é importante para compreender a narrativa sequencial destas imagens fortíssimas. Surgem-nos como gravuras retiradas de um banho químico, sempre entre o azul e o vermelho, evocando a circulação do sangue, e falam-nos da descida, real e simbólica, ao inframundo da doença, a esse palco onde nos sentimos desmembrados, disformes, assustados, vulneráveis e sós. O autor quase desaparece sob as cortinas do gabinete médico – e será o personagem da criança, sua filha, que fará a ligação entre o lado de quem parte e o de quem espera. O final, sem janelas, gráficas ou de qualquer tipo, coloca-nos de novo perante o sol. 


A Minha Casa Não Tem Dentro 
António Jorge Gonçalves
Abysmo

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