quarta-feira, 27 de setembro de 2017

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 4



RELIGAÇÕES

Tenho um cinto de couro que comprei há anos, e tenciono usá-lo até que se gaste e morra de morte natural. Tenho um único cinto; tal como só tenho um par de óculos de sol, um relógio (que não uso), uma gabardine, um guarda-chuva, uma carteira, uma mochila, umas havaianas, um cartão de telemóvel e um carregador de bateria. Não vejo necessidade de acumular acessórios de difícil arrumação e utilidade duvidosa. A ideia de «ir às compras» aborrece-me. Se quiserem torturar-me, convidem-me a passear num centro comercial, em demanda de roupas ou sapatos, e peçam-me opinião sobre a matéria. Em menos de cinco minutos, simularei um ataque de hipoglicemia e sairei da terceira loja com ar desvairado.

No último inverno, a presilha soltou-se. Deixei a coisa andar, até que o cinto se começou a parecer com a orelha caída de um basset hound, e achei por bem impor limites à minha preguiça. Procurei um sapateiro e perguntei-lhe se o paciente tinha conserto. O homem, já velhote, disse que sim, que não era grave. Pegou em agulha e linha e pôs-se a coser a presilha, cheio de paciência e vagar.

Fazia frio. Começámos a falar sobre comida, para aquecer a alma. Ele contou-me do bife que dava para quatro pessoas, e que a mãe dele desfiava num arroz malandrinho, apaladado com salsa picada e cenoura às rodelas. Eu contei-lhe do rancho que se fazia em casa da minha avó materna, um rancho como nunca mais provei, com bofes e tudo. Então, ele levantou os olhos e perguntou: 

— A menina é do norte?
— Sou. Como é que sabe? Não tenho sotaque.
— É que só lá é que se diz «bofes»...
— ... e se tratam as senhoras por «menina».

Continuámos a conversa, agora estreitada por laços geográficos. Ao nosso lado, as pessoas entravam e saíam, na voracidade das manhãs urbanas, inquirindo os preços das palmilhas, duplicados de chaves, tacões e meias-solas. Aconcheguei-me no conforto de uma certa invisibilidade temporária.

Quando acabou o trabalho, entregou-me o cinto: «Está pronto.» Não aceitou dinheiro. Insisti, sem sucesso. Despedimo-nos com um sorriso, desejei-lhe um bom dia e agradeci-lhe outra vez.

Saí para a rua e atirei-me ao frio como gato a bofe, corajosamente. Tenho a certeza de que o resto do dia me correu bem. Sentia-me animada, grata, ligada ao mundo por um encontro generoso. Registei tudo no meu caderninho preto, cujo título é: «Primeiro a bota, depois a meia» (um dia, também vos conto esta história).

O cinto ainda vai durar mais uns anos, aposto. A memória deste encontro durará muito mais. Não é uma opinião, é um sentimento. 


(Texto publicado em 15/9/2017 no blogue Delito de Opinião, a convite de Pedro Correia. Mais crónicas da série «Encontros com a minha alma gémea aqui, aqui e aqui.)

terça-feira, 19 de setembro de 2017

BEST OF OSCAR WILDE



«O atual tratamento das crianças é terrível, sobretudo por pessoas que não compreendem a psicologia peculiar da natureza da criança. A criança pode entender um castigo infligido por um indivíduo, como um pai ou um educador, mas não consegue entender um castigo imposto pela sociedade. Não consegue perceber o que é a sociedade.» (Oscar Wilde)



Num mundo onde as crianças já não têm só medo do escuro, de aranhas ou de fantasmas, mas passaram também a recear a guerra e os ataques terroristas, estas palavras são de uma profunda atualidade. Estamos todos – e não só as crianças – com dificuldade em «perceber o que é a sociedade». Ler estes contos talvez ajude os leitores mais jovens a compreender valores essenciais que os adultos não sabem ou não têm tempo para explicar. Valores como a amizade, a solidariedade, a coragem, a justiça e a bondade. Depois, há o lado lúdico da leitura que nos remete para o humor inimitável de Wilde – e nos recorda que os grandes leitores raramente são pessoas aborrecidas. Mais: que podem tornar-se grandes contadores de histórias. Para ajudar uma criança a não ser um adulto aborrecido, é importante dar-lhe bons livros a ler e encorajá-la a contar histórias que tragam significado para si e para os outros. Não é uma receita, é um projeto de vida. Plenos de sabedoria e graça, os contos de Oscar Wilde são indispensáveis na construção desse projeto. 

(Contos Escolhidos, Oscar Wilde, ed. Fábula, Setembro de 2017. Tradução e prefácio de Carla Maia de Almeida.)

terça-feira, 12 de setembro de 2017

OS LIVROS, OS LOBOS E OS MEDOS



Há algum livro, entre os doze que já editou, pelo qual sinta uma predileção especial? Parece-me que estou a perguntar à mãe qual o filho de que mais gosta, mas pronto… Fale-nos de três.
Mas há, claro que há. O livro do qual ainda não me desvinculei é o Irmão Lobo. Continua a viver em mim, tanto que me pede uma continuação. E vai acontecer. Eu nunca forço nada na escrita; não ando à procura de ideias mas mantenho-me atenta e disponível. E se as ideias ficam lá, durante algum tempo, dou-lhes atenção. Se elas se evaporam, deixo de pensar nisso. O Irmão Lobo foi importante porque me fez sair de uma zona de conforto; pode ser uma banalidade dizer isto, mas foi assim. Ao escrever, pela primeira vez, um livro para adolescentes e adultos, desviei-me do meu registo habitual, o álbum para crianças. O Irmão Lobo está dentro de mim e continuará a correr ao meu lado.
E sente esse retorno?
Um dos maiores retornos é saber que o livro foi traduzido na Colômbia, no México, na Alemanha, na Sérvia, em Itália. Este circular de um livro pelo mundo é muito bom, muito gratificante. Tal como dar conta de que a sua autenticidade atingiu o leitor.
E o segundo?
Também gosto muito do Onde Moram as Casas. Dos meus álbuns, é um dos mais arriscados. Apesar de a ilustração ser bastante figurativa, entendo ser uma proposta diferente.
Por não ter personagens?
Sim. As casas são as personagens e isso, só por si, torna-o original, creio eu. Mas recordo sempre o momento em que o terminei e o entreguei ao meu antigo editor na Caminho – o José Oliveira, uma pessoa marcante no meu percurso inicial – e notei que a primeira reação dele ao texto foi de estranheza. Eu estava segura da minha originalidade e, quando o ouvi dizer que talvez não fosse para crianças, fiquei desolada! Porque ao lado do escritor caminha sempre esta sombra do fracasso, da dúvida, da possibilidade concreta de morrer na pobreza… (risos) Não se ria, é verdade…
É um riso incongruente, por entender que é uma possibilidade bem real…
É o nosso medo mais atávico. Temos muitos exemplos ao longo da história. Herman Melville morreu sem ser reconhecido, e, noutro extremo, Truman Capote foi esmagado pelo sucesso de A Sangue Frio. Escrever exige-nos uma grande exposição, um abrir de entranhas, um caminhar numa linha muito ténue entre o poder e a extrema vulnerabilidade. O poder de tocar os outros e a vulnerabilidade de nos derrotarmos. Esta profissão é de uma tremenda imprevisibilidade. E precisamos de lidar com isso todos os dias.

(Excerto da entrevista à revista Focus Social, conduzida por Marta Vaz. Fotografia de Egídio Santos, na praia de Matosinhos. Pode ser lida na íntegra aqui.)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

ONDE MORAM OS PESCADORES


«Aqui vive um pescador», lê-se, junto ao portão desta moradia que bem podia ter entrado no Onde Moram as Casas, desenhada pelo Alexandre Esgaio. Fica no Bairro da Encarnação, em Lisboa, e é mesmo uma delícia para os sentidos.

sábado, 9 de setembro de 2017

UMA CRIANÇA PERGUNTOU


Uma criança perguntou O que é a erva? trazendo-ma nas suas mãos cheias;
Como poderia responder-lhe? eu que não sei mais do que ela?

Talvez seja a bandeira da minha índole, de matéria verde tecida.

Ou talvez seja o lenço do Senhor,
Uma perfumada prenda, uma lembrança que intencionalmente cai,
Com o nome do seu dono num dos cantos, para que ao vê-lo perguntemos De quem é?

Ou talvez a própria erva seja uma criança, um filho da vegetação.

(...)

in Canto de Mim Mesmo, de Walt Whitman, ed. Assírio e Alvim, 1992. Tradução de José Agostinho Baptista. Na foto: W.W. com os dois filhos da família Johnston.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

A IMAGINAÇÃO É A LINGUAGEM DO ESPÍRITO


«As crianças vivem num mundo espiritual secreto e possuem capacidades e experiências espirituais, momentos profundos que moldam as suas vidas de maneira indelével. Essas experiências fortíssimas (e, com frequência, amorosas) evidenciam a existência de um importante domínio espiritual que, até à data, nos passou despercebido. Essas experiências - que vão do assombro até ao encontro com a sabedoria interior, da formulação das grandes perguntas sobre a vida até à expressão da compaixão e, inclusivamente, da busca além das aparências - constituem, em suma, os alicerces sobre os quais assenta a nossa vida, como seres espirituais deste planeta. Nas páginas seguintes, mostraremos algo desse mundo secreto que se esconde nas nossas casas, nas nossas aulas e, quem sabe, também na nossa própria infância.»

(Da introdução ao livro El Mundo Espiritual Secreto de los Niños, de Tobin Hart, psicólogo e professor de psicologia na State University of West Georgia. Originalmente publicado nos EUA, em 2003, e traduzido pela Edicciones La Llave. O excerto acima é uma tradução minha a partir do espanhol.)

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

LENDO, É TIPO MUITAS COISAS QUE 'TÁ SAINDO DA SUA CABEÇA, SEM PARAR



«"Para gostar de Ler" é o título de um documentário lindo de cerca de uma hora acerca da importância da leitura para o desenvolvimento da criança. Estreou no Brasil  há poucos dias integrado na campanha "Leia para uma criança", do Programa Itaú Criança  promovida pelo banco brasileiro desde 2010. Outra das iniciativas desta instituição bancária em prol da leitura tem sido a distribuição gratuita de livros, num total de 45 milhões até hoje.

Neste documentário, as histórias de cinco famílias leitoras são entrelaçadas com os comentários de especialistas, pedagogos e autores, demonstrando, na prática e na teoria, a importância dos vínculos familiares na criação de hábitos de leitura. Este é um dos aspetos fundamentais do meu trabalho enquanto mediadora da leitura e que tenho vindo a desenvolver desde 2012. Neste ano letivo estão já agendadas 3 sessões (para pais e profissionais do Pré-Escolar, 1º Ciclo e 2º CEB)  acerca da Importância da Leitura na BE da EB1 de Vila Nova de Santo André. Falaremos certamente deste documentário.»

Via Paula Jacinto Cusati, mediadora de leitura e formadora acreditada na área da Promoção da Leitura.