RELIGAÇÕES
Tenho um cinto de
couro que comprei há anos, e tenciono usá-lo até que se gaste e morra de morte
natural. Tenho um único cinto; tal como só tenho um par de óculos de sol, um
relógio (que não uso), uma gabardine, um guarda-chuva, uma carteira, uma
mochila, umas havaianas, um cartão de telemóvel e um carregador de bateria. Não
vejo necessidade de acumular acessórios de difícil arrumação e utilidade
duvidosa. A ideia de «ir às compras» aborrece-me. Se quiserem torturar-me,
convidem-me a passear num centro comercial, em demanda de roupas ou sapatos, e
peçam-me opinião sobre a matéria. Em menos de cinco minutos, simularei um
ataque de hipoglicemia e sairei da terceira loja com ar desvairado.
No último inverno, a
presilha soltou-se. Deixei a coisa andar, até que o cinto se começou a parecer
com a orelha caída de um basset hound,
e achei por bem impor limites à minha preguiça. Procurei um sapateiro e
perguntei-lhe se o paciente tinha conserto. O homem, já velhote, disse que sim,
que não era grave. Pegou em agulha e linha e pôs-se a coser a presilha, cheio
de paciência e vagar.
Fazia frio. Começámos
a falar sobre comida, para aquecer a alma. Ele contou-me do bife que dava para quatro
pessoas, e que a mãe dele desfiava num arroz malandrinho, apaladado com salsa picada
e cenoura às rodelas. Eu contei-lhe do rancho que se fazia em casa da minha avó
materna, um rancho como nunca mais provei, com bofes e tudo. Então, ele
levantou os olhos e perguntou:
— A menina é do norte?
— Sou. Como é que
sabe? Não tenho sotaque.
— É que só lá é que
se diz «bofes»...
— ... e se tratam as
senhoras por «menina».
Continuámos a
conversa, agora estreitada por laços geográficos. Ao nosso lado, as pessoas
entravam e saíam, na voracidade das manhãs urbanas, inquirindo os preços das
palmilhas, duplicados de chaves, tacões e meias-solas. Aconcheguei-me no
conforto de uma certa invisibilidade temporária.
Quando acabou o
trabalho, entregou-me o cinto: «Está pronto.» Não aceitou dinheiro. Insisti,
sem sucesso. Despedimo-nos com um sorriso, desejei-lhe um bom dia e
agradeci-lhe outra vez.
Saí para a rua e
atirei-me ao frio como gato a bofe, corajosamente. Tenho a certeza de que o
resto do dia me correu bem. Sentia-me animada, grata, ligada ao mundo por um
encontro generoso. Registei tudo no meu caderninho preto, cujo título é:
«Primeiro a bota, depois a meia» (um dia, também vos conto esta história).
O cinto ainda vai
durar mais uns anos, aposto. A memória deste encontro durará muito mais. Não é uma
opinião, é um sentimento.
(Texto publicado em 15/9/2017 no blogue Delito de Opinião, a convite de Pedro Correia. Mais crónicas da série «Encontros com a minha alma gémea aqui, aqui e aqui.)