segunda-feira, 31 de março de 2014

ARTE VS. PUBLICIDADE


Nunca me esquecerei dos dias em que o Irmão Lobo contactou com a civilização e lhes mostrou como o efémero pode ser útil e cheio de beleza. «Desenhos de Cordel - exposição de António Jorge Gonçalves» nos cais do Metropolitano de Lisboa. Estação final: Alameda. Termina hoje. Ah, poder limpar brevemente os olhos num mundo sem publicidade...

sexta-feira, 28 de março de 2014

THE KIDS ARE ALRIGHT: THE HOUSE THAT JACK BUILT



The House That Jack Built ou This is the House That Jack Built é uma das mais conhecidas nursery rhymes inglesas, remontando a meados do século XVIII. Um clássico das rimas de estrutura cumulativa, em que a primeira frase é o pretexto para o desencadear sucessivo de interligações nem sempre lógicas (por exemplo: «Minha mãe teve dez filhos,/ Todos dez dentro de um pote;/ Deu-lhe o tangro-mangro neles,/ Não ficaram senão nove.», etc., etc.), The House That Jack Built tem sido reformulada ao sabor das épocas e tendências, sendo provavelmente um dos títulos mais parodiados de sempre. Os australianos The Go-Betweens revestiram-na de melancolia ácida em The House That Jack Kerouac Built, mas a versão que fica para a história será a dos Metallica. É o terceiro tema do álbum Load, dos idos de 1996. Um prodígio.

quinta-feira, 27 de março de 2014

CATARINA, A GRANDE


Tanta coisa para fazer que O Jardim Assombrado arrisca-se a mudar o nome para O Jardim Assoberbado. Mas eis que uma grande notícia revolve os canteiros e faz estremecer as árvores de contentamento: Catarina Sobral, única representante de Portugal na exposição internacional da Feira do Livro Infantil de Bolonha, que termina hoje, foi considerada a melhor entre 41 ilustradores, com o livro O Meu Avô (Orfeu Negro). O Blogtailors fez um apanhado das notícias e o Hipopótamos na Lua mostra como é o livro por dentro. Foi destaque na LER de Fevereiro e o texto pode ser lido aqui. Parabéns, Catarina!

sábado, 22 de março de 2014

THE KIDS ARE ALRIGHT: O GRUFALÃO



Seguindo uma ideia do A Origem das Espécies, que coligiu há tempos uma série de videoclips juntando música (rock, essencialmente) e literatura, quero esticar um pouco mais a corda e fazer o mesmo com a literatura infanto-juvenil, começando com este tema do compositor e multi-instrumentista René Aubry (França, 1956) para a banda sonora do filme O Grufalão (sobre o livro, ler aqui). Vamos ver. Pode ser que isto dê mau resultado. Mas não haverá música para martelinhos Disney, isso garanto.

sexta-feira, 21 de março de 2014

NOVO LIVRO DE DAVID MACHADO


Desviei do Facebook este texto do David Machado, subscrevendo o segundo parágrafo e aplaudindo o resto:

«O conto infantil que escrevi para a colecção da APCC chegou esta semana. As ilustrações do Gonçalo Viana são mesmo bonitas e fico muito feliz por fazer parte deste projecto.
 

A APCC está a conseguir fazer uma coisa que muitas editoras portuguesas não conseguem nem estão interessadas em fazer: uma colecção original e eclética, com livros infantis escritos e ilustrados apenas por autores portugueses e um cuidado enorme com a qualidade (do texto, da ilustração, da paginação, do papel). É uma pena que só esteja à venda em duas livrarias do país (FNACs, uma Lisboa, outra no Porto).
 

Para além deste livro, será publicado ao mesmo tempo o livro que o Afonso Cruz escreveu e ilustrou para esta colecção, que, por uma enorme coincidência, também é sobre pássaros - juro que não combinámos. Haverá um lançamento para os dois livros, ainda não sei onde nem quando.»

quinta-feira, 20 de março de 2014

BLIMUNDA DA PRIMAVERA


Às vezes, uma pessoa tem de rir para não chorar. Com a recente passagem da revista LER a trimestral, a Blimunda passa a ser, creio, a única revista cultural e literária onde todos os meses a ilustração e a literatura infanto-juvenil são tratadas com bom gosto, paixão e conhecimento de causa. Não digo os nomes dos culpados; basta ver a ficha técnica. Sim, é uma revista que só se lê no ecrã - e esse é o seu único defeito, aos meus olhos... com 13 dioptrias. Sim, seria incomportável fazê-la em papel nestes tempos miseráveis, portanto celebremos o que temos e que não é nada pouco. O número de Março chega com a Primavera e traz como temas as Correntes D'Escritas, Valter Hugo Mãe, censura no cinema, Catarina Sobral, Maurice Sendak e as habituais secções. Na página 61, dou uma entrevista a Andreia Brites sobre esse privilégio insano que é estar a traduzir para português uma boa parte da obra de Maurice Sendak, um dos meus heróis literários. A Blimunda, revista da Fundação José Saramago, pode ser lida aqui ou aqui.

terça-feira, 18 de março de 2014

NA IDADE DOS PORQUÊS

 
Entrei numa retrosaria antiga, aqui na minha aldeia, à procura de um botão extraordinário. Queria um botão dourado, em forma de pássaro. Não encontrei, claro.... Mas quando ia a sair da loja, um bracinho puxou por mim e disse: 

«Não se lembra de mim?»

Era uma criatura de metro e dez, metro e vinte. Loura, de olhos muito cálidos. Reconheci os olhos imediatamente, mas o resto não encaixava. Tinha crescido. «Sou o João Paulo, andava na escola X» (a 100 km de distância). «Claro que me lembro de ti, meu aluninho!» E abracei-o imediatamente. É preciso dizer que o João Paulo era um daqueles miúdos que me martirizava a cabeça (ao ponto de tu acreditares que um tabefe bem dado naquele rabo era paliativo santo) em troca dos meus trezentos e cinquenta euros por mês como professora AEC.

«Então e o teu amigo, o Cabaceira, que é feito dele?» «Está para fora, os pais foram presos» («Ainda bem» - pensei para mim - «Assim ao menos terá uma chance».) «Estás mais gordinho, João Paulo». Ele encolheu os ombros e não disse nada. Foi um daqueles momentos em que acreditei nas ondas telepáticas, já que me pareceu ouvir exactamente na minha cabeça a voz dele: «Pudera... é que agora como.» 
 
O João Paulo não podia ter nota cinco; teve sempre quatros, porque o comportamento deixava mesmo muito a desejar. Sei que aquela nota foi uma revolução na vida dele, subindo inusitadamente a sua autoestima. O João Paulo era um miúdo que dançava maravilhosamente e de uma forma (como dizer?) intrínseca. Dançava assim, com a cabeça cheiinha de cicatrizes que se viam através do cabelo rapado. Era a mãe que lhas dava e pai não havia. Uma vez dei-lhe o meu lanche. Outra vez, foi uma professora que lhe trouxe um casaco no Inverno. Nós, no Facebook, nem sempre imaginamos uma realidade assim.

«Então, que fazes por aqui?» «Estou na obra na Nossa Senhora das Candeias». «Que bom! Assim posso ter-te debaixo de olho.» Fui embora e disse à educadora que o acompanhava: «Este menino é um artista». E ela, incrédula, a olhar para mim. O meu João Paulo a dançar, com a cabeça cheia de cicatrizes a verem-se através do cabelo rapado.

Foi assim que encontrei o meu botão extraordinário, em forma de pássaro dourado, numa retrosaria antiga, aqui na minha pequena aldeia.


[Este texto foi escrito pela minha irmã mais nova, Micaela Maia de Almeida, e publicado na sua página do Facebook. Pedi-lhe para o reproduzir aqui, a pensar em todos os professores e educadores que visitam o Jardim Assombrado, desejando que também eles tenham também o seu «botão extraordinário, em forma de pássaro dourado». Ou, melhor ainda, um bolso cheio deles.]

segunda-feira, 17 de março de 2014

CONTOS CLÁSSICOS


Não é arty nem nada que se pareça, mas pode ser o livro certo para quem procura no mesmo volume os mais conhecidos contos de Perrault, Andersen e Grimm, e ainda adaptações de Alice no País das Maravilhas, Pinóquio ou Aladino. Texto e ilustração em doses equilibradas (na terminologia, é um bom exemplo de livro «profusamente ilustrado»), numa edição exclusiva do Círculo de Leitores.

sexta-feira, 14 de março de 2014

PATAS NEGRAS


Caçadores da abundante rataria medieval, os gatos também deixaram marcas indesejadas nos manuscritos da época. Ver aqui.

[cortesia Alexandre Esgaio.]

ALEMANHA ASSOMBRADA


Os cenários dos contos dos Irmãos Grimm actualizados pela objectiva de um fotógrafo que tem a particularidade de ser daltónico. Ver mais imagens aqui.

[cortesia Angelina Pereira.]

quinta-feira, 13 de março de 2014

OS AMANTES


(...) Os Amantes poderiam, se o compreendessem, dizer coisas estranhas
no ar da noite. Olha, as árvores são; as casas,
que habitamos, existem ainda. Só nós
passamos por tudo como uma troca aérea.
E tudo está combinado para nos calar, meio talvez
como vergonha e meio como esperança indizível. (...)

Rainer Maria Rilke, in A Segunda Elegia, tradução de Paulo Quintela. ed. O Oiro do Dia. Pintura de Marc Chagall, Over the Town, 1918.

IRMÃOS SENDAKIANOS


Uma das recompensas de traduzir Maurice Sendak é seguir as pistas para a interpretação da sua obra. Se a cultura pop norte-americana e a banda desenhada de Winsor McCay são a rede gráfica e imagética que sustém a aventura onírica de In the Night Kitchen, onze anos depois o interesse de Sendak pelo Romantismo alemão plasmava-se em Outside Over There, originando um livro completamente diferente, denso e abrupto como as paisagens de Caspar David Friedrich. Na imagem, vemos Die Hulsenbeckschen Kinder (1805-1806), um quadro de Philipp Otto Runge, outro pintor da época que o influenciou muito na concepção de Outside Over There (basta ver a capa para detectar semelhanças). Adrian Ludwig Richte e os seus cenários grimmianos também andam por esta história de irmãos desavindos e pais ausentes; ou não fosse a protagonista, Ida, inspirada na irmã de Maurice Sendak. Que, por sua vez, admitiu que aquele bebé trocado por duendes (um changelling, palavra intraduzível) era ele próprio... Mas essa pista merece um outro post.

sábado, 8 de março de 2014

AS MULHERES DE SARAMAGO


«As minhas personagens verdadeiramente fortes, verdadeiramente sólidas são sempre figuras femininas. Não é porque eu tenha decidido, é porque sai-me assim. Não há nada de premeditado. Provavelmente isso resulta de que parte da humanidade em que eu ainda tenho esperança é a mulher. E estou à espera, já há demasiado tempo, que a mulher se decida a tomar no mundo o papel que não seja o de uma mera competidora do homem. Se é só para ocupar o lugar que o homem tem desempenhado ao longo da História, não vale a pena. O que a humanidade necessita é qualquer coisa de novo, que eu não sei definir, mas ainda tenho a convicção que pode vir da mulher.»

José Saramago, entrevista à Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 de outubro de 1995, in Saramago nas suas palavras. [Durante este mês, a página da internet da Fundação José Saramago publica textos do escritor sobre as mulheres, o que inclui as suas personagens literárias. Para seguir aqui.]

sexta-feira, 7 de março de 2014

MAURICE SENDAK: DA VIDA E DA MORTE



Estes cinco minutos dão para pensar uma vida inteira. No que perdemos sem querer, no que perdemos porque a estupidez humana nos impede de fazer melhor, no que recuperamos quando nos entregamos ao amor, à amizade ou à arte (sempre a mesma vontade de nos transcendermos, sempre), no que vale a companhia de um cão numa estrada secundária, no que resta quando percebemos que não valemos nada e valemos tudo ao mesmo tempo (seríamos deuses se antecipássemos o valor do tempo); e quando à vista uma furtiva pegada na neve tudo parece incomensurável, perfeito e inacabado. E depois destes cinco minutos, o que dizer? Absolutamente nada.

quinta-feira, 6 de março de 2014

NO REGRESSO DO ALTO MAR


Maurice Sendak descreveu Outside Over There (Harper Collins, 1981) como a sua obra «mais pessoal». Não só as personagens se reportam directamente à sua biografia (o rapto do bebé Lindbergh, que o traumatizou), como todo o processo de trabalho o deixou exausto e deprimido, não obstante este ser também reclamado como o «favorito» entre os seus livros. E compreende-se. Numa leitura rápida, Outside Over There consegue ser quase impenetrável. Apesar da aparente simplicidade do texto, a sintaxe é muito mais complexa (ou inventiva) do que no caso de Onde Vivem os Monstros e Na Cozinha da Noite, conservando ecos de arcaísmos e da cadência das nursery rhymes. A história é furtiva e enigmática. As ilustrações, de tendência hiper-realista, guardam numerosas referências sociais, culturais e artísticas; esclarecendo o texto, umas vezes, e confundindo-o, outras. Traduzi-lo foi um prazer e uma dor de cabeça. Acabei ontem. Mas, na verdade, parece-me impossível de acabar. Querem saber como traduzi o título? Não digo.

quarta-feira, 5 de março de 2014

ERROS QUE DÃO CERTO



Mais vezes do que pensamos, os erros são um caminho enviesado para lograrmos o que realmente está à nossa espera. Ao ouvir uma das entrevistas de Maurice Sendak, fiquei a saber que Where the Wild Things Are esteve para se chamar Where the Wild Horses Are, tudo porque a editora da Harper Collins, Ursula Nordstrom, a primeira pessoa a detectar o génio latente de Sendak (uma mulher, sublinhado meu), adorou a sonoridade poética do título e «comprou-o» sem hesitar. Mas havia um problema: ao deitar mãos ao trabalho, Sendak percebeu que não sabia desenhar cavalos... Resolveu então mudar o título para Where the Wild Things Are (em português, Onde Vivem os Monstros). Assim nasceu um clássico que revolucionou a maneira de fazer e pensar os livros para crianças, com mais de vinte milhões de exemplares vendidos desde 1963.

segunda-feira, 3 de março de 2014

HORAS DA INFÂNCIA



(...) Nada
é aqui o que realmente é. Ó horas da infância,
quando atrás das figuras havia mais do que apenas
passado, e o futuro não estava à nossa frente.
Crescíamos, na verdade, impacientes por vezes
por sermos depressa grandes, meio por amor daqueles
que nada mais tinham senão o serem grandes.
E contudo, no nosso caminhar solitário,
alegrávamo-nos com o que dura e estávamos ali
no espaço intermédio entre mundo e brinquedo,
num lugar que desde o início
se fundara para um puro acontecimento. (...)


Rainer Maria Rilke, in A Quarta Elegia, tradução de Paulo Quintela. ed. O Oiro do Dia

sábado, 1 de março de 2014

O MEU AVÔ: DIAS DE FESTA



Depois de Greve e Achimpa, Catarina Sobral confirma o seu talento com um livro em (quase) tudo diferente dos anteriores. Conheçam um avô excêntrico e de bem com o tempo.

Com O Meu Avô, Catarina Sobral demarcou-se da linha conceptual explorada nas duas obras anteriores – centradas na linguagem e nas variantes linguísticas – e passou para um registo humanizado que adopta um personagem de forte ligação afectiva às crianças. Quer o título do livro quer a figura adulta e esguia desenhada na capa, de guarda-chuva e meias às riscas, remetem de imediato para O Meu Tio, de Jacques Tati; homenagem inequívoca de uma autora que concilia a ilustração com a escrita e o cinema de animação.

Não há dúvida de que este avô, um flâneur atento e sabedor das pequenas grandes coisas, pertence à mesma família de Monsieur Hulot, quer na sua relação com o neto quer com a vida. Ficamos a conhecê-lo pelas descrições textuais («o meu avô nunca se lembra de ler as notícias», «acorda todos os dias à 6 da manhã», «tem aulas de alemão e aulas de Pilates»), mas sobretudo pelo contraste com outro personagem paralelo na narrativa, o Dr. Sebastião, cujo dia-a-dia também acompanhamos.

No esquema de página dupla, Catarina Sobral estabelece raccords brilhantes entre as ilustrações, criando efeitos de continuidade visual e, ao mesmo tempo, de total divergência significante. Assim, enquanto o Dr. Sebastião faz equilíbrio com pilhas de papéis e dossiês, o Avô exercita um movimento idêntico na aula de Pilates. Enquanto um aquece o almoço no micro-ondas, o outro faz piqueniques durante a semana, acompanhado pelo neto e por amigos. Esta imagem é uma recriação da paz bucólica de Le déjeuner sur l’herbre, de Manet, uma das referências artísticas que Catarina Sobral gosta de trazer para os seus livros. Mas há outras: Chaplin, Almada, Pessoa. Descobri-las faz parte do passeio.

Catarina Sobral
O Meu Avô
Orfeu Negro

(Texto publicado na secção «Leituras Miúdas» da revista LER nº 132.)