terça-feira, 10 de maio de 2016

CLARA FERREIRA ALVES, 1



No livro é muito crítica das elites.
Sou.

Dessas elites que parecem não ter consciência dessas vidas de que falava.
Não têm consciência nenhuma. Já não tinham no tempo do Eça de Queirós. N’O Primo Basílio, quando faz o retrato daquela família, do Jorge, da Luísa e depois da Juliana das botinas, a melhor parte é quando ele descreve a vida da Juliana. A explicar um pouco o rancor, o ódio, a velhacaria, mostrando o que foi a vida da Juliana que evidentemente as elites portuguesas ignoravam e sempre ignoraram e continuam a ignorar. Só que nós agora temos uma nova elite que é a elite dos grandes assalariados: vão esquiar, têm uma vida muito confortável nas grandes empresas ou na banca, e muitos deles tomaram o aparelho de Estado, têm negociatas... Essa nova elite, que não se parece com as antigas (que eram as do nome de família, de nascimento, os aristocratas, mas que eram quase sempre descendentes de um merceeiro que tinha feito fortuna), essa nova elite é a da democracia – mas não é melhor, só leem as revistas do coração, lixo, e consomem exatamente os mesmos produtos que o lumpen. Consomem a mesma televisão, as mesmas revistas e os mesmos jornais. Já fui a casa de pessoas com muito dinheiro, que têm uma casa maravilhosa, com arte – agora toda a gente tem arte –, objetos de design extraordinários e depois apercebemo-nos de que não há um livro.

Acha que esse défice cultural resulta num défice de empatia? O que transparece do seu livro é que essas elites não vivem preocupadas com o que se está a passar com os outros.
Não, estão preocupadas com os seus próprios bens. Tirando os que têm uma consciência católica e sentem um dever moral da sua própria religião (e há muita gente assim, é justo que se diga, que age por um imperativo religioso ou familiar), tirando isso estão muito pouco preocupados com a vida das pessoas. Não fazem ideia de como vive uma pessoa que tem a mãe paralisada, ou o filho que não é bom aluno, que moram na periferia, que têm de vir para a cidade, que têm muito pouco dinheiro. Acha que essas elites têm alguma ideia do que é ir para a bicha com o cartão da segurança social às seis da manhã, esperar que aquilo abra, tirar uma senha e esperar até às duas da tarde para ser atendido? Uma vez escrevi uma crónica sobre isso. Nunca as elites portuguesas foram tratar pessoalmente do cartão do cidadão. O cartão foi ter com eles. Acha que um grande banqueiro português alguma vez foi tratar do cartão do cidadão ou do passaporte? Claro que não. Não ajudam ninguém, não dão dinheiro a ninguém, não dão dinheiro para uma ala do hospital, não patrocinam. No outro dia estava no supermercado e ouvi qualquer coisa para ajudar o Sequeira a ficar em Portugal. Até pensei que fosse um drama humano. Afinal era o quadro do Domingos Sequeira. Mas não há um desgraçado de um milionário em Portugal que permita que o quadro fique em Portugal? Acho isto incrível.

[Clara Ferreira Alves, in LER nº 141. Entrevista conduzida por Bruno Vieira Amaral. Fotografias de Pedro Loureiro.]

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