domingo, 30 de outubro de 2016

CHESTERTON, O MEDO E OS CONTOS DE FADAS


«Dei-me conta de que existem realmente seres humanos que acham que os contos de fadas fazem mal às crianças. Não estou a falar do homem da gravata verde, até porque nunca poderei considerá-lo como um verdadeiro ser humano. A verdade é que uma senhora escreveu-me uma carta muito sentida a dizer que os contos de fadas não deviam ser ensinados às crianças, mesmo que sejam verdadeiros. Ela diz-me que é cruel ler contos de fadas às crianças visto que os mesmos as aterrorizam. Pela mesma lógica, poderemos então dizer que é cruel oferecer romances sentimentais às raparigas porque estes as fazem chorar. Este género de conversa baseia-se num total esquecimento do que é uma criança, esquecimento esse que tem sido o fundamento incontornável de tantos programas pedagógicos. Se mantivermos as crianças longe dos bichos-papões e dos duendes, elas acabarão por inventá-los na mesma. Uma criancinha a sós e rodeada de escuro é capaz de desvendar mais infernos do que Swedenborg. Uma criancinha é capaz de imaginar monstros tão gigantes e negros que uma só imagem não os conseguirá capturar, ao mesmo tempo que lhes atribui nomes demasiado irreais e cacofónicos para figurarem sequer nos gritos de um qualquer lunático. Em primeiro lugar, a criança sente-se naturalmente inclinada para os vários horrores, e mesmo que não goste deles não deixará de os alimentar. A dificuldade de dizer com propriedade onde é que o puro tormento começa neste caso é tão grande quanto a de dizer onde começa o nosso tormento quando decidimos encaminharmo-nos de livre vontade para a câmara de tortura de uma grande tragédia. O medo não nasce dos contos de fadas; o medo nasce do universo da alma.»

G.K. Chesterton, «O Anjo Vermelho», in Ficar na Cama e Outros Ensaios, tradução de Frederico Pedreira, ed. Relógio d'Água, 2016. 

sábado, 29 de outubro de 2016

HOJE, NA LIVRARIA ALMEDINA


«Recordar os Esquecidos» é um encontro para falar de livros que não andam nos tops das livrarias. Dois convidados escolhem quatro ou cinco títulos que justificam um segundo olhar; mas só o moderador, João Morales, tem conhecimento prévio das escolhas. Logo à tarde, vou estar com o jornalista Paulo Moura no espaço da Livraria Almedina (Atrium Saldanha, em Lisboa), para uma conversa aberta ao público que se deseja amena e prazenteira. O tempo está bom para isso. Começa às 18h00. Apareçam!

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

VAMOS COMPRAR UM POETA? VAMOS!



Imagine-se um mundo onde poetas e artistas inspirassem medo. Novela para todas as idades ou retrato do poeta enquanto jovem cão, nada se exclui. Afonso Cruz assinou o Scrapbook da LER de Verão, uma coluna onde se pretende cruzar o trivial com o essencial, sem nunca ultrapassar os 1200 caracteres. Ora (re)leiam:

CMA: Vamos Comprar um Poeta é uma novela distópica ou realista?
AC: Não são sinónimos?

CMA: Gostaria que este livro fosse lido por quem?
AC: Por toda a gente, claro. Há sempre a legítima esperança de chegar a pessoas que sabem ler, mas que (ainda) não são leitoras. Por vezes faz-se alguma confusão entre uma coisa e outra. Aprender a ler é um trabalho mais ou menos confinado no tempo, mas ser leitor é um trabalho eterno. É sempre possível interpretar melhor, é um processo inesgotável.
A cultura tem um papel muito importante a todos os níveis, ontologicamente e teleologicamente, por isso espero que nunca seja demais sublinhar isso. Tenho pena de que, por vezes, os próprios agentes culturais desprezem a profundidade que lhe é inerente e digam coisas como «a ficção é um escape para uma realidade difícil». Acho que é muito mais do que isso. A ficção constrói toda a realidade. Todo o futuro humano depende dela.

CMA: Quando usou a palavra «debalde», imaginou-a meio cheia ou meio vazia?
AC: No contexto, vazia. Mas acredito que terá a sua ressurreição, enquanto vocábulo em desuso, em relação a direitos humanos, democracia, justiça social.

(Mais sobre Vamos Comprar um Poeta aqui.) 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

RUDYARD KIPLING: ELEGÂNCIA E SABEDORIA


Publicada em 1902, pela Macmillan, a colectânea de contos Histórias Assim vai beber às narrativas mitológicas de explicação do mundo («Como apareceram os tatus», «Como se escreveu a primeira carta», «Como o leopardo arranjou as suas pintas»...), transmitidas oralmente por todas as culturas. Kipling encarna aqui a figura patriarcal do contador de histórias, deixando sobressair marcas de oralidade com forte cariz afetivo. Pelo recurso à repetição, ao comentário e ao vocativo «ó-Mais-que-tudo» («O my Best Beloved», no original), os contos ganham uma aura presencial íntima que influencia o pacto narrativo com o leitor.

Há uma razão para que tal aconteça. As primeiras três fábulas de Histórias Assim foram inventadas para a filha primogénita do casal Kipling, Josephine (Effie), que a cada reconto «exigia» ao pai a mais rigorosa reprodução da narrativa anterior, sem que uma vírgula fosse alterada. A menina morreu aos seis anos, vítima de pneumonia, e Rudyard Kipling recriou a magia do contador de histórias nos nove contos posteriores – doze, no total, um número perfeito e simbolicamente carregado. Essa típica exigência infantil da repetição explica o título do livro, Just So Stories, mais certeiro na tradução de Ana Saldanha (Histórias Assim Mesmo, Caminho, 1999), onde o uso adverbial de «mesmo» enfatiza a procura de exatidão e de fidelidade. 

Dito isto, há que elogiar a força da tradução literária desta nova edição ilustrada, um trabalho de Ana Mafalda Tello/João Quina Edições que preserva a elegância minuciosa da escrita de Kipling, a sua musicalidade e sua extraordinária riqueza vocabular. Não é todos os dias que um livro para crianças nos obriga a consultar o dicionário, mas talvez este não seja bem um livro para crianças. Não existe uma retórica moralista e universalizante nestas histórias, e os seus desfechos inesperados são prova disso. Situadas nos quatro cantos do mundo, da Austrália à Amazónia; atravessando os mares, os desertos e as savanas, transportam-nos para um tempo mítico em que tudo era possível – nem sempre a contento de todos, mas sempre explicável. 

Histórias Assim
Rudyard Kipling
Sébastien Pelon (ilust.)
Bertrand/Círculo de Leitores


(Texto publicado na revista LER nº 143, secção Leituras Miúdas. Sobre Os Livros da Selva, recentemente reeditados num só volume pela Relógio d'Água, ler aqui.)