quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

EM NOME DA FILHA: DIA D



O último relatório da Organização Mundial de Saúde (2014) reflecte a proporção desmedida que a violência doméstica atingiu no mundo inteiro: uma em cada três mulheres será vítima de agressões físicas, psicológicas e sexuais, pelo simples facto de ser mulher. Está a acontecer, neste momento. O jornal El País chamou-lhe «uma pandemia devastadora», num artigo publicado a 25 de Novembro, Dia Internacional contra a Violência de Género.

Quase um quarto dos países ainda não possui legislação própria que permita combater este drama humano, mas não é o caso de Portugal. Sobretudo desde a aplicação do I Plano Nacional contra a Violência Doméstica, lançado em 1999 e renovado até à presente data, com sucessivos melhoramentos, têm sido enormes os progressos em matéria de legislação e meios de intervenção específicos. Falta o mais difícil: mudar mentalidades, formar a consciência das novas gerações. Desde logo, questionar a existência de uma hierarquia entre homens e mulheres, atribuindo aos primeiros o privilégio e a primazia do poder. O caminho a seguir parece ser inquestionável: educar, educar, educar.

Da autora da jornalista Carla Maia de Almeida, a reportagem Em Nome da Filha - Retratos de Violência na Intimidade, é maioritariamente composta por testemunhos de mulheres vítimas de violência doméstica. Entrevistadas em vários pontos do país, acederam a contar as suas histórias sob anonimato, por razões compreensíveis. Essa condição não lhes retira a força nem a pertinência, porque a essa urgência de partilha correspondeu a vontade de contribuir para a mesma causa: lutar contra um problema que não é «doméstico», mas de toda a sociedade. Nas palavras da mais jovem entrevistada, que finaliza a segunda parte do livro, ficou bem expressa essa intenção: «Quero dizer a todas a raparigas que façam como eu. Foi só à primeira.»

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

EM NOME DA FILHA



(...) Violência doméstica, violência relacional, violência entre parceiros íntimos, violência em contexto de intimidade: nas páginas que se seguem usei as várias expressões num sentido equivalente. Na primeira parte, conta-se a história de uma adolescente, hoje com 39 anos, que no início da década de 1990 presenciou o assassinato da mãe às mãos do pai. Desde então, muito se progrediu no afrontar de um drama que deixou de ser «doméstico» e se assumiu como uma responsabilidade político-social, dotada de legislação e de intervenção específicas. Na segunda parte, podem ler-se nove testemunhos recolhidos em casas de abrigo (com uma excepção), intercalados com contributos de vários especialistas nesta área, com conhecimentos teóricos e «de terreno». Por fim, na terceira parte, e porque acredito que as histórias têm o poder de curar, proponho a adaptação de um conto dos irmãos Grimm, A Rapariga das Mãos Cortadas, uma metáfora da condição agredida das mulheres; mas também da possibilidade de aceitarmos, corajosamente, as nossas feridas emocionais e seguirmos em frente. Homens e mulheres, juntos, num caminho de absoluta igualdade.
A violência, doméstica ou não, nunca vai acabar, mas não podemos remeter-nos ao silêncio dos não-inocentes. Este é o tempo que nos foi dado a viver. Temos de estar à altura dele. 

(da introdução à reportagem Em Nome da Filha - Retratos de Violência na Intimidade, o meu 12º livro, recém-publicado na colecção «Retratos» da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Fotografia de capa de Valter Vinagre) 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

MIGRAÇÕES



Estou a traduzir um livro em que os protagonistas são cisnes selvagens de uma espécie endémica da América do Norte, os magníficos cisnes-trombeteiros, cujo canto soa como um trompete. No meio das minhas pesquisas, tropecei neste videoclip que integra a banda sonora de um documentário francês (Le Peuple Migrateur), com assinatura desse romântico incurável chamado Nick Cave. Vem isto a propósito do Dia dos Namorados? Não. Adoro namorar e adoro o número 14, por motivos que nada têm a ver com estas convenções. Mas a música é lindíssima e a letra, idem: uma formulação poética do amor sem fronteiras e sem limites, não como pulsão egoísta de quem tudo quer (e tudo perde), mas do amor como movimento perpétuo entre a impermanência e a verdadeira entrega. O nosso querido Nicholas Edward Cave tem razão: «Love comes on a wing». O amor chega num golpe de asa, feito clarão e sobressalto, mas cresce num trabalho diário de filigrana, com «disciplina», «concentração» e «paciência», porque o amor é essencialmente «uma força activa» e não um segredo mitificado. Disse-o Erich Fromm, psicanalista, sociólogo e filósofo da Escola de Frankfurt, num livro que recomendo, The Art of Loving, traduzido em português por A Arte de Amar (não se deixem desmotivar pela capa), originalmente publicado em 1956 e perfeitamente atual. Um excerto:

«Ter fé requer coragem, a capacidade de correr riscos e de aceitar a dor e a desilusão. Quem insiste na segurança e na cautela como condições primárias para viver, é incapaz de ter fé; quem se isola num sistema de defesa, na segurança da possessividade e da distância, transforma-se num prisioneiro. Amar e ser amado requer coragem, a coragem de acreditar em certos valores - e de arriscar e apostar tudo nesses valores.»

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

MANEIRAS DE SER MENINO


   «Meninos da rua. Bulhentos, sujos, execrados. Escorregam nas escadinhas do bairro em tábuas roubadas a vedações, pondo à roda a cabeça das vizinhas velhas. Urinam nos portais. Viram caixotes do lixo. Vendem pentes. São presos às vezes.
   Meninos da serra. Acanhados, desconfiados, lentos. Têm dez, doze irmãos. Não gostam de doces. Estudam na escola a nascente e a foz dos rios, e nunca viram o mar.
   Meninos pastores. Solitários. Sabem histórias medonhas de lobos e de bruxas. Guiam-se pelo Sol. Guardam no bolso o Universo num ovo de pisco, num seixo vidrento, num saltão todo verde.
   Meninos filhos de pescadores. Olhos de alga, corpo de onda, voz de vento. Embalados em canastras ou ao colo de velhas redes, seus sonhos cabem num barco. E como nada os espanta e nada os amedronta, nem chegam a ter infância.
   Meninos ciganos. Nascidos e criados à borda dos caminhos. Alimentam-se de bagas silvestres e de rábanos como os cavalos. De pele da cor da terra, têm gestos fugidios de cobra e olhos de noite e de mistério. E a sua alma é antiga como a própria raça.»

(...)

Maria Ondina Braga, «Maneiras de ser menino», crónica incluída no livro A Revolta das Palavras, ed. Livraria Bertrand, 1975.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 27


   «Arminda era alta, esbelta, tinha cabelos ondeados e gordurosos de cigana e uma expressão sensual nos lábios feridos do cieiro que se entreabriam num sorriso doce e púdico, de virgem. Isabel Montalvão nunca fora muito bonita mas, ao ir perdendo a frescura, os traços tinham-se-lhe depurado e ganhara em distinção a tal ponto que a sua fotografia preferida, a que devia representá-la para a posteridade, havia de ser tirada por um fotógrafo profissional, contratado para ir a casa no dia em que fez cinquenta anos. No dia a dia, sobretudo se não tencionava sair, arranjada com simplicidade e de cara lavada, podia passar por criada de uma casa rica, mas bastava-lhe calçar as luvas, prender o cabelo no chapéu e empoar-se, para ficar o nec plus ultra da elegância. Havia ainda Leni, morena e espalhafatosa, que usava boina, fazia caretas de palhaço e tinha sempre um cigarro suspenso entre dois dedos ou provocadoramente entalado nos lábios.
   O meu pai gostava das três e toda a sua infelicidade estava em que nenhuma o consolava da ausência das outras.»

Teresa Veiga, A Paz Doméstica, ed. Cotovia, 1999.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

POEMAS QUE SALVAM O DIA


GANSOS SELVAGENS
Não tens que ser bom.
Não tens que caminhar ajoelhado
durante quilómetros através do deserto, em sinal de arrependimento.
Só tens que deixar o afável animal do teu corpo amar aquilo que ama.
Fala-me do teu desespero e eu falar-te-ei do meu.
Entretanto o mundo não pára.
Entretanto o sol e os seixos transparentes da chuva
movem-se através da paisagem
sobre as pradarias e as árvores mais altas,
as montanhas e os rios.
Entretanto os gansos selvagens, lá no alto de um límpido azul,
dirigem-se para casa de novo.
Quem quer que tu sejas, por mais solitário que estejas,
o mundo oferece-te à tua imaginação,
chama-te como os gansos selvagens, de uma forma áspera e emocionante -
repetidamente anunciando o teu lugar
na família das coisas.»


(«Gansos Selvagens», de Mary Oliver, in ANIMAL ANIMAL - um bestiário poético, ed. Assírio & Alvim, 2005. Tradução de Jorge Sousa Braga.)