quarta-feira, 31 de maio de 2017
CORVOS BRANCOS E SAUDADES DE MUNIQUE
4. White Ravens Festival: Carla Maia de Almeida, Portugal from Internationale Jugendbibliothek on Vimeo.
Quase um ano depois, recordo uma das semanas mais felizes da minha vida: representar a língua portuguesa pela primeira vez no Festival White Ravens 2016, uma iniciativa do IBBY/Biblioteca Internacional da Juventude (Munique), graças à tradução do Irmão Lobo (Bruder Wolf, ed. Sauerländer) para alemão. Obrigada à DGLAB, ao Planeta Tangerina, aos meus agentes da Bookoffice e a todas as pessoas que tornaram isto possível. Decididamente, não me interessa nada escrever "muito lá para casa". Um lobo deve correr mundo!
quarta-feira, 24 de maio de 2017
A MÃE É A MÃE É A MÃE
As distâncias deixam tombar os cabelos
das mães, despojadas formigas
cegas recolhem-nos metodicamente
como velhas raízes de memórias,
um corpo cortado, um corte surdo,
borboletas níveas, primaveras níveas
(como será a incisão, a garganta aberta?)
em que se desvanecem as flores da noite,
o silêncio é um corpo-a-corpo com a sorte
e o verbo um corpo-a-corpo com Deus.
(...)
João Rasteiro, in A rose is a rose is a rose et coetera, Edições Sem Nome, 2017.
segunda-feira, 22 de maio de 2017
OS MONSTROS MUDAM DE CASA
Uma releitura de Onde
Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, com ilustrações de Maria Bouza Pinto,
é o risco assumido de Monterroso (ed.
Máquina de Voar). Segue-se a minientrevista a João Ferreira Oliveira, jornalista e escritor, publicada na última edição da LER, secção «Scrapbook», onde escritores, ilustradores, editores, livreiros e outros intervenientes do circuito da LIJ (literatura infantojuvenil) falam, meio a sério, meio a brincar, do seu processo criativo:
JFO: Literatura sem risco é uma redação. Há autores que parecem ter escrito tudo e não deixam espaço para mais nada, outros há (os grandes) que colocam todo um novo mundo à disposição de quem vem a seguir. Monterroso escreveu aquele que é considerado o mais pequeno conto de sempre: «Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá». Sendak ilustrou como ninguém os monstros que vivem na cabeça de uma criança. Achei que se dariam bem no mesmo livro.
CMA: Os pais de Monterrosso andam à procura do filho. O tempo está mau para a navegação familiar?
JFO: Os tempos nunca são fáceis para a navegação familiar. Em todas as épocas e em todas as casas há tempestade. Mas enquanto há vida, há bonança.
CMA: «O teu filho desapareceu e tu vais ler?», diz o pai. Costuma tomar nota de frases estranhas?
JFO: Se não forem estranhas para quê tomar nota? «Na Selva viveu uma vez um Macaco que queria ser um escritor satírico.» É o começo de um conto de Augusto Monterroso. Nem sequer é para crianças, mas faz-nos querer brincar com as palavras.
(Fotografia tirada do site do CCB, onde Monterroso foi tema para uma oficina para crianças.)
sexta-feira, 19 de maio de 2017
segunda-feira, 15 de maio de 2017
sexta-feira, 12 de maio de 2017
RADIOGRAFIA DO ESPÍRITO
Entre as possíveis interpretações do título, inspirado nos jogos de oralidade das crianças de Luanda, arriscamos esta: se o corpo é a nossa primeira casa, dizer que A Minha Casa Não Tem Dentro sugere uma perda de alicerces e de falta de chão, a lembrar as cidades devastadas pela guerra e os seus prédios esboroados, sem nada lá dentro, submetidos à mais crua exposição. Porque é disso que trata esta novela gráfica e autobiográfica: o corpo exposto à doença e à sua mais fiel companheira, a morte. «No dia 22 de fevereiro de 2016 – por causa de uma veia que rebentou no meu estômago – morri e regressei à vida (...)», escreve António Jorge Gonçalves, em nota introdutória, e essa explicação é importante para compreender a narrativa sequencial destas imagens fortíssimas. Surgem-nos como gravuras retiradas de um banho químico, sempre entre o azul e o vermelho, evocando a circulação do sangue, e falam-nos da descida, real e simbólica, ao inframundo da doença, a esse palco onde nos sentimos desmembrados, disformes, assustados, vulneráveis e sós. O autor quase desaparece sob as cortinas do gabinete médico – e será o personagem da criança, sua filha, que fará a ligação entre o lado de quem parte e o de quem espera. O final, sem janelas, gráficas ou de qualquer tipo, coloca-nos de novo perante o sol.
A Minha
Casa Não Tem Dentro
António Jorge Gonçalves
Abysmo
António Jorge Gonçalves
Abysmo
sexta-feira, 5 de maio de 2017
NOCTURNO EM SOL MAIOR
Noite
Estrelada, de Jimmy Liao (n. 1958, Formosa), abre com
uma dedicatória dirigida aos leitores: «Para as crianças que não se sentem em
sintonia com o mundo.» Mas Jimmy Liao não é «apenas» um autor de livros para
crianças, e por isso esta dedicatória tem um valor metonímico, capaz de tocar
adultos que também não se sentem em sintonia com o mundo. Ou seja, uma
imensidão de leitores.
Sem prescindir da palavra, mas concentrando-se
no seu enorme talento enquanto ilustrador, os três livros já traduzidos pela
Kalandraka (Desencontros, Segredos na Floresta e O Peixe que Sorria) são portadores de
temas universais não circunscritos ao destinatário infantil: a identidade, a
solidão, o amor, a amizade, a estranheza do ser humano dentro de si próprio e
perante um mundo que por vezes é hostil e, outras vezes, representa a
possibilidade da serenidade individual e da união com o outro.
Sempre numa linha ambígua onde a sugestão
onírica se funde com as fronteiras do real, Noite
Estrelada (The Starry Starry Night,
no original) aprofunda esses temas e leva mais longe as intertextualidades
plásticas; desde logo presentes no título e na belíssima imagem de capa, uma referência
direta ao quadro de Van Gogh, Noite
Estrelada (The Starry Night). Os
protagonistas são dois pré-adolescentes, uma rapariga e um rapaz que a
princípio se desconhecem, e cuja aproximação decorre da sua condição de seres inadaptados.
Nem a escola nem a casa familiar equivalem a lugares seguros, e as barreiras da
comunicação entre adultos e crianças revelam-se a cada passo: «Adoro a minha
mãe e ela adora-me. Mas ela não me compreende, e também não me parece que eu a
compreenda.» A deriva da adolescência pode ser sintetizada nesta bela frase:
«Era como uma planta a crescer num labirinto, sem se preocupar com o lado da
saída.»
Sobre este fundo de inquietação e desajuste,
Jimmy Liao elabora o acaso feliz de um encontro que eleva os protagonistas
acima da superfície mundana, emprestando-lhe o dom dos flâneurs sem tempo nem idade. Juntos, empreendem uma viagem que
reflete o contraste entre a cidade e o campo, em direção à casa de um avô já
desaparecido, mas cuja memória ecoa na escuridão da noite interior. A
descoberta mútua não se faz sem iludir a perda; ainda que, mais à frente, o
fundamental seja recuperado. Como sempre se deseja.
Noite
Estrelada
Jimmy Liao
Kalandraka
(in LER nº 145)
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