domingo, 31 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 27



Regresso a Lisboa amanhã. Trinta dias passaram muito depressa, mas há que aproveitar o sol de Can Serrat até ao fim. (Miss Haunted Garden agradece à Cynthia as fotos de há pouco e, já agora, todas as boas conversas pela noite fora.)

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 26


Foto de grupo tirada ontem à noite, na véspera da partida de M. Ramalingam para a Índia. Por que razão estamos todos a fazer gestos estranhos? Não, não foi nada que tivéssemos bebido... A ideia foi identificar o país de origem de cada um na linguagem dos surdos-mudos, uma das formas de comunicar com o “Rama”, além do recurso adicional ao papel e caneta.

Assim, da esquerda para a direita, vemos a australiana Nicole em pose de canguru, seguida do Gilbert, fazendo o “C” de Canadá, e da Desirée, que puxa o pico de uma montanha suíça a partir do braço esquerdo. A Cynthia, de lenço verde ao pescoço, faz o signo dos Estados Unidos – as mãos cruzadas em forma de águia –, no que é imitada pela Jessica, de inconfundível casaco cor-de-rosa, em baixo. A mim coube-me um prosaico “P” de Portugal, e dou graças a deus por não me terem mandado pôr as mãos em forma de bola de futebol. Atrás de nós está a Eva, a fazer o que lhe deu na gana, porque ninguém sabia como se dizia “Noruega”. Podia ter sido pior. A Carmen, espanhola, não se vê muito bem, mas faz o mesmo gesto no braço que o Marcel, que está de boina axadrezada, já na fileira de baixo. Do lado direito dele (esquerdo, na fotografia), “Rama” aponta para a própria testa com o indicador e Otto desenha com as duas mãos as Américas do Norte, Sul e Central – tudo isto para dizer que veio das Honduras. Por fim, no outro extremo, de boina preta, Karine, francesa, compõe uma estilização da Torre Eiffel. Felizmente não tínhamos cá ninguém da Alemanha, porque o gesto ia ficar um bocado feio na fotografia.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 25





Uma pequeníssima mas expressiva amostra dos óculos desenhados pelos 190 miúdos da Escola de El Bruc, como já se falou aqui e aqui. De cima para baixo: óculos multiserviços (ulleres multiserveis, em catalão); óculos para condutores da Hispano Igualadina (a empresa rodoviária que faz a ligação entre El Bruc e Barcelona); óculos para “dar a imortalidade e alguns poderes” (itálico meu); e óculos para ajudar a pensar e a ter ideias (notem o pormenor do cérebro na ligação entre as lentes). Todos uma delícia!

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 24

Das três apresentações do Não Quero Usar Óculos junto das crianças da Escola de El Bruc – cerca de 190 miúdos entre os três e os 12 anos – retirei duas conclusões que, não sendo propriamente novidade, adquirem outros contornos pelo facto de a experiência ter ocorrido fora de Portugal, numa pequena terra a 40 quilómetros de Barcelona. Primeiro, que é um livro capaz de ser facilmente entendido, mesmo sem a ajuda da palavra escrita. Segundo, que o empenho – pessoal e profissional – dos professores em iniciativas desta natureza influencia, para o melhor e para o pior, o envolvimento e as respostas das crianças ao que lhes é pedido – no caso, desenharem os seus próprios óculos imaginários. Professores sem alma nem estamina (ou, resumido de outra maneira, pouco motivados para a leitura e para a interpretação do mundo que os rodeia), dificilmente serão capazes de motivar as crianças que têm à sua responsabilidade, o que me parece um fenómeno deprimente e de consequências dramáticas. É, também, um sintoma socialmente transversal, pelo que pude constatar aqui. Desgraciadamente.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 23


Num mapa em forma de puzzle, recomendado para crianças maiores de cinco anos, Espanha e os seus muitos clichés (a catedral de Burgos, os moinhos da Mancha, o arroz à valenciana, o vinho Rioja…) são ladeados por França e Portugal. O autocolante esconde parte da vergonha. Mas ela aí está, a bola vermelha e verde, símbolo maior do desígnio nacional, critério de aferição da nossa actual importância no mundo. Um país de futeboleiros. Ao menos podiam ter mantido o galo de Barcelos.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 22


Geronimo Stilton e Diário de um Banana também a dominar os escaparates da Casa Del Llibre, na Rambla Sant Josep. Arquivar em "fenómenos transversais".

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 21


Não dá para perceber pela fotografia, mas esta é uma edição em "formato gigante" para o livro de Sam McBratney e Anita Jeram, Guess How Much I Love You, um best-seller publicado pela Caminho (Adivinha Quanto Gosto de Ti). Seria megalómano esperar ver algo semelhante nas nossas livrarias?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 20


Nos últimos dias, a residência de Can Serrat ficou bastante mais composta. Depois de Cynthia Grow (EUA) e de M. Ramalingan (Índia), vieram Gilbert LeBlanc, escultor (Canadá), e Otto Castillo (Honduras) com Jessica Hirst (EUA), ambos dedicados às artes visuais e performativas. Também pelo pelouro das artes, directamente dos antípodas, via Singapura, chegou ontem a Nicole, de Melbourne (Austrália), com quem ainda só consegui trocar umas breves palavras, à conta do jet-lag. Não, nenhum escritor, não. Estou sozinha neste campeonato.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 19


Lane Smith, o mesmo autor de It’s a Book! (a publicar em breve pela Presença), de quem já falámos aqui, também tem um livro sobre o drama de usar óculos quando se é pequeno. Há algumas semelhanças com o Não Quero Usar Óculos – a ida ao oftalmologista, por exemplo, que neste caso se parece mais com um cientista louco, e o final que remete para a evidência de um “mal necessário”: é melhor usar óculos do que passar ao lado de tudo o que há para ver no mundo. “Es sorprendente lo que uno se pierde cuando no se pone los lentes, eh?”. Lentes, quién los necesita? é uma edição do Fondo de Cultura Económica (México), publicado originalmente em inglês com o título Glasses (who needs'em?), em 1991.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 18



Boas compras na Casa Anita: Una Caperucita Roja, de Marjolaine Leray, uma paródia deliciosamente cáustica à história do Capuchinho Vermelho, não especialmente dirigida a crianças; e El gato (o como perdí la eternidad), extraordinária novela da alemã Jutta Richter sobre a perda da infância e a sobreposição dos valores morais e culturais que vão a par do crescimento. Foi editado na Alemanha em 2006. Seria um consolo vê-lo publicado em Portugal.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 17



Guiada por conselho sábio e avisado (obrigada, Miguel), consegui finalmente encontrar a Casa Anita, mau grado as penas e tormentos infligidas pelo mapa indigente e pela nabice dos informadores turísticos. Mas valeu a pena o esforço. A Casa Anita é uma livraria especializada em literatura infantil e juvenil com um atendimento ao público superlativo. Senti falta de algumas “novidades”, mas saí satisfeita. Não, não julguem pela segunda fotografia que vai fechar; apenas mudará para uma rua próxima, daqui a poucas semanas. Tomem nota: Carrer Vic, 14. E boa sorte com os mapas de Barcelona.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 16


Dizem-me que há pelo menos dois fantasmas em Can Serrat, nada de estranhar numa casa com duzentos anos – ou quatrocentos, se contarmos a partir das primeiras fundações. Um é amistoso, o outro nem por isso. A certas horas da noite, quando atravesso o corredor, faço um esforço para controlar a visão periférica e manter-me focada numa linha recta em direcção à falsa segurança do meu quarto. Falsa porque, contaram-me hoje, é justamente daqui que os fantasmas partem, não sei porquê. Imagino que lhes agrade a penumbra do espaço; ou talvez a estranha disposição dos três espelhos, sempre arquitectando reflexos entre si.

Seja como for, estou a salvo, porque é deste lado que vive o fantasma tranquilo, uma figura feminina e luminosa a quem tratam por A Dama de Branco. Do outro lado da casa, junto à porta principal, encontra-se O Homem Zangado, que parece não dar muito bom dormir a quem fica no chamado Quarto Azul. Terá morrido ali enforcado, dizem, coisa que sempre causa algum incómodo. Para mim, o problema reside mais nesta separação entre as duas partes da casa, tão visível que impede os fantasmas de se encontrarem durante a noite. Aparentemente, nenhum deles tem ânimo suficiente para atravessar paredes, como é próprio da sua natureza.

Não sei como, mas, no dia em que esta história de amor acontecer, o Homem Zangado fará as pazes com o mundo, e a Dama de Branco dançará vestida de azul, a cor do infinito. Só é preciso que alguém lhes explique como atravessar paredes.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 15


“Ayer descubrí una cosa.
Tendré que usar gafas.
Fue lo que dijo mamá.
Yo siempre creo en ella, pero por esta vez no quiero.
No quiero usar gafas. Para nada!”

Numa tradução “muy hogareña”, feita graciosamente pela minha irmã (também graciosa, há que dizê-lo), este é o início da versão em espanhol do Não Quero Usar Óculos – ou, se preferirem, No Quiero Usar Gafas. Graças a uma joint-venture repentina entre a residência de Can Serrat, a biblioteca municipal e a escola de El Bruc, vou apresentá-lo para a semana que vem a cerca de 190 miúdos que não sabem falar português. Depois, eles desenharão os seus próprios óculos imaginários, à semelhança do que já foi feito em escolas portuguesas (alguns exemplos aqui). Estou curiosa para ver os resultados, muito curiosa…

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 14


À saída do Museu del Rey de la Magia, o visitante ou comprador é convidado a preencher uma ficha, caso deseje receber informação sobre as actividades da casa, que organiza cursos e workshops para adultos e crianças. Uma das questões – e não é preciso entender catalão para a decifrar – é esta: “Per quina via ens has conegut?” (“Por que via chegaste aqui?”, ou algo muito parecido). O visitante responde com uma cruz no quadradinho que lhe interessa: “Sou cliente do Rei de la Màgia”, 1; “Por um amigo/a”, 2; “Meios de comunicação”, 3; “Por intuição parapsicológica”, 4.

Não preenchi a ficha, mas a última hipótese parece-me, de longe, a mais empolgante.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 13


Cá está o "desaparecido". Ela também teria morrido às mãos do Barba Azul de Carrer Princesa. Parece-me mulher para isso.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 12



Gosto de ilusionistas, não gosto de ilusionismo. Não me interessam os espectáculos de magia e de truques com cartas, coelhos, sabonetes ou seja lá o que for; e quanto mais Las Vegas, pior.

Mas gosto da memória dos ilusionistas na transição dos séculos XIX e XX; dessas figuras excessivas e excêntricas, sempre entre a realidade e a mentira (Houdini, Alexander, David Devant, Chung Ling Soo, etc), que levavam multidões aos teatros de vaudeville e, não raras vezes, morriam em palco pelas suas próprias mãos.

Serve isto para lembrar o Museu del Rey de la Magia, casa fundada em 1881, que, não sendo propriamente um museu, é uma loja que guarda um pouco da memorabilia e da aura desse mundo perdido. Fica numa das ruas mais interessantes de Barcelona, Carrer Princesa, a mesma onde encontrei uma daquelas drogarias-perfumarias que vendem tudo, ou quase tudo. Não resisti a entrar e a perguntar se por acaso ainda tinham o perfume da minha vida, de seu nome Havana, iniciado em 1995 e que em má hora a casa Aramis resolveu acabar (ou “descontinuar a produção”, como se diz agora). O dono, um senhor dos seus 60 e tal anos, respondeu que não, sem hesitar, acrescentando o comentário capcioso: “Es usted de las antiguas, no?”

Insisti: “Era uma embalagem assim e assado, com uma espécie de folha azul a fingir de tampa, ainda tenho um bocadinho, se quiser posso trazer-lhe amanhã…”.

O homem encanitou-se. Que não, que não e que não. Que tinha a loja há 50 anos e a conhecia de trás para a frente, e para além disso casara com 25 mulheres e todas tinham morrido nos seus braços, felicíssimas. “Ah, então o senhor é uma espécie de Barba Azul, certo?”, disse eu, já a fixar estrategicamente a porta. “Exactamente, sou um Barba Azul”, e fez o gesto de quem torce o pescoço, mas com meiguice.

Gostava de vos contar o resto da história, mas o homem começou a olhar-me de uma maneira estranha e achei por bem sair rapidamente. Sou “das antigas”, mas não tanto, caramba.

domingo, 17 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 11






Para quem tem miúdos, o parque de atracções de Tibidabo pode ser o programa ideal de um domingo cheio de sol em Barcelona. Para quem não tem, idem aspas. Carrosséis, montanha-russa, comboio-fantasma, carrinhos de choque (em versão soft) e outros entretenimentos com um certo charme retro justificam bem a ida e o preço da entrada: 25.20 euros e pode experimentar-se tudo. Também vale pela vista total sobre a cidade, com o mar ao fundo. O que é que lá estive a fazer toda a tarde? Pesquisa. Pesquisa pura.

sábado, 16 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 10

Logo à tarde, na Antena 2, algures entre as 17h40 e as 18h00, no final do programa do Luís Caetano ("A Força das Coisas"), passa a rubrica habitual da Sandy Gageiro sobre livros para crianças, "Liliput", comigo ao telefone desde Can Serrat. Pode-se ouvir em directo a partir do site (http://www.rtp.pt/wportal/popups/player.php?canal=2). Acho que a minha voz está com pouco tónus - excessos da noite anterior - e que não disse nada de jeito, mas a Sandy tem muita paciência. Quem não tiver melhor programa...

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 9


O mau tempo que se fez sentir em Portugal também chegou cá, forte e feio. No sábado à noite, pouco tempo depois de ter colocado os últimos posts, um temporal desabou sobre Barcelona e tudo à volta, fazendo de Can Serrat uma variante de “o monte dos vendavais”. Formou-se uma cascata a poucos metros de casa, que arrastou lama e detritos vindos da montanha, tornando os acessos muito difíceis. Um dos carros quase ia por água abaixo, não fora o travão providencial de um tronco de árvore, também arrastado pela corrente. Uma casa com duzentos anos (as partes mais antigas têm quatrocentos…) não fica indiferente à passagem de uma tempestade destas, mas palavra que nunca tinha sentido as paredes e o chão a tremerem com o ribombar dos trovões. As luzes foram abaixo a meio da noite e o modem “rebentou”, mantendo-nos desligados do mundo até ontem, a tempo de saber da notícia dos mineiros resgatados no Chile. Não têm sido uns dias fáceis, garanto, e pode dizer-se que, por aqui, os humores também andaram bastante nublados. Mas no domingo à tarde, no meio da desolação geral, o Marcel e a Karine apareceram de surpresa, contrariando o que é habitual num dia da semana regido pela regra do “um por todos e cada um por si”, no que toca à alimentação. “Para compensar”, disseram, uma magnífica tortilha de batata veio para a mesa, fazendo-me recuar até Braga e ao final dos anos 1970, época em que me lembro de comer as melhores tortilhas da minha vida, graças a uma vizinha galega que morava no apartamento ao lado. Foi um reencontro inesquecível.

sábado, 9 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 8





No dia em que cheguei, tinha acabado de partir de Can Serrat um grupo de vinte pessoas. Bom para o negócio, mau para quem não aprecia multidões à mesa do pequeno-almoço, sobretudo antes do combustível cafeínico, como é o meu caso. Além da Karine e do Marcel, que gerem a residência como se fosse a sua segunda casa (ou mesmo a primeira, a julgar pela dedicação), nesta altura só cá estão dois artistas plásticos: M. Ramalingam, de quem já falei neste post, e Cynthia Grow, uma norte-americana introvertida, cujo site-blogue pode ser visto aqui. Cynthia viajou de uma pequena cidade no estado da Carolina do Norte com Pablo Neruda e Octavio Paz na bagagem, debaixo de um voo cheio de turbulências e avisos de fasten your seatbelts, uma chatice. Depois de dois dias de “aterragem”, hoje vestiu uma sweat-shirt muito Pablo Picasso e instalou-se no atelier, ao lado dos seus livros e de um bule com uma infusão para as constipações. Dá para perceber que está a trabalhar numa colagem, com imagens de revistas e recortes de títulos de jornais espanhóis, mas não falámos sobre o assunto. Conhecer uma pessoa através da eleição dos seus jogos de palavras pode ser muito mais interessante. Espero para ler.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 7


Este era o aspecto da mesa de trabalho às 13h30 (12h30 em Portugal), aqui em Can Serrat. À esquerda, a terceira ou quarta versão impressa do texto que, assim o espero, será o próximo picture book – uma ideia que veio de Lisboa para ganhar forma aqui. Não se assustem com o mega-estojo de lápis Caran d’Ache, gentilmente emprestado pela Karine. Explico: é-me quase impossível pensar em palavras sem começar logo a ver imagens; pelo que, às vezes, apetece-me fazer uns rabiscos foleiros só para tornar o conceito do livro mais visível. As ilustrações comme il faut ficarão ao cuidado de quem tem talento para. Necessariamente.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 6







Ok, a arte da azulejaria é mais cultivada no sul de Espanha, mas aqui cada um faz o que quer.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

RECUERDOS



Podia jurar que anteontem vi a águia ibérica do Félix Rodríguez de la Fuente a voar por cima da minha cabeça. E não, não foi num sonho.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 5


Mais logo, com a arte do costume, o Marcel encarregar-se-á de preparar o jantar de hoje: cogumelos de várias espécies apanhados na serra e entregues esta manhã. De cima para baixo e da esquerda para a direita: llanegas, grogs, cama grogs e pinatells. Em Can Serrat sabe-se que a comida também é alimento para a alma. Que suerte tengo, por Diós.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 4


Não sei qual é o estado de espírito ideal para escrever. Sei que não se pode estar muito contentinho com a vida, nem tão fora dela que seja impossível alinhar palavras que comuniquem entre si e ressoem junto dos outros, se isso for importante para quem escreve. Quanto ao lugar ideal para escrever, depende sempre do "estado de espírito ideal para escrever", o que transforma a questão num paradoxo. Ontem, depois de uma caminhada de duas horas pelos trilhos da orla sul da serra de Montserrat, com Johnny Cash a tocar no i-pod, cheguei a uma espécie de anfiteatro cheio de terminações caprichosas, a que chamam Les Agulles (“As Agulhas”). Escolhi a pedra com melhor vista e fiz dela a minha secretária durante um bom par de horas. O lugar ideal para escrever.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 3


Outubro é um mês incerto, com coisas que fazem um homem feliz. “Hoje está sol”, dizia-me Ramalingam à hora do pequeno-almoço, na linguagem dos que não entendem a linguagem dos surdos-mudos. Chegámos ao aeroporto de Barcelona com apenas quatro horas de intervalo, mas enquanto eu demorei o tempo que se gasta diariamente no IC19, ele viajou desde Chennam, no sudeste da Índia, à procura da famosa luz mediterrânica de Van Gogh e Picasso, dois dos seus pintores preferidos. Ganhou o desconto parcial que Can Serrat oferece anualmente aos artistas e pediu um empréstimo de 810 euros ao banco para chegar aqui, quase sem saber falar. Também vê mal. Observa o mundo como se habitasse um túnel feito de luz e de sombras; não tem visão periférica, explica. Mede cada passo com cautela, segue o movimento dos lábios de quem fala, recorre à caneta e ao bloco-notas a maioria das vezes. Hoje, pela primeira vez, trabalhou todo o dia num dos ateliers da residência. Por isso o Sol, por isso a luz tão desejada. Nós, que nos queixamos de tudo, bem que podíamos estar calados de vez em quando.

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 2


Em Can Serrat, os bichos têm nomes de músicos. Da direita para a esquerda: Herbie (Hancock) e Miles (Davis), cães não-residentes, mas habitués - um estatuto partilhado com os artistas e escritores que passam por cá.

HOJE HÁ CONQUILHAS


Monstros Marinhos e Outras Iguarias é o segundo volume da série Uma História Mesmo Bestial (An Awfully Beastly Business, Simon & Schuster Books, 2008), iniciada com Lobisomem Contra Dragão. Ambos saíram este Verão em português, numa edição visualmente estimulante para um público pré-adolescente e adolescente. Os enredos exorbitam em acção, apostando num registo de escrita que mostra em vez de contar, muito ao gosto anglo-saxónico (e, quem sabe, de uma futura adaptação ao cinema). De pendor fantástico e algo aterrorizador, mas com referências actuais, a história tem como herói um pequeno lobisomem, Ulf, ele próprio recolhido pela SRPCB (Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade para com as Bestas), em cujo centro de salvamento coabitam duendes, fadas, dragões e outras criaturas imaginárias. Obviamente, há um vilão para estragar a festa. Obviamente, ou nem tanto, o tipo de atrocidades cometidas contra estas bestas míticas é igual ao que hoje se comete contra os animais. Resta saber se os leitores conseguirão fazer essa extrapolação ética ou passar pelas páginas just for fun.

Monstros Marinhos e Outras Iguarias
David Sinden, Guy Macdonald, Matthew Morgan
Ilustrações de Jonny Duddle
Tradução de Rita Graña
Booksmile

(Texto publicado na edição nº 95 da LER)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 1











Primeiro dia na residência artística de Can Serrat, a 40 km de Barcelona. Montanhas, árvores, flores silvestres, gatos por todo o lado. A cabeça cheia de imagens. Para já, não consigo contar mais nada.