Quando regresso aos livros em que cresci, se é que alguma vez os deixo, há sempre um que sobressai e cuja memória conservo praticamente intacta – ao contrário do exemplar tão maltratado da Colecção Azul, impresso em 1950. Chama-se A Princesinha (A Little Princess, no original) e foi escrito por Frances Hodgson Burnett, um nome mantido durante anos em grande mistério, já que ignorava se pertencia a um homem ou a uma mulher. Frances seria “Francisco”? Podia bem ser.
Já conheci muitas pessoas para quem este livro foi importante; mulheres, todas entre os 40 e os 70 anos, o que diz algo sobre afinidades literárias entre gerações. Basta um breve lapso de tempo para que Sandokan se torne imortal e o Dartacão um boneco desconhecido.
Gostava de saber se ainda há quem o leia em português. As edições indicadas pela pesquisa na rede de Bibliotecas de Lisboa são todas anteriores a 1988, o que me parece sintomático. Tornou-se um clássico da literatura para crianças, tal como outros dois títulos de Frances Burnett – O Pequeno Lorde e O Jardim Secreto –, mas raramente o vejo nas nossas livrarias. A história dickensiana de Sara Crewe, de herdeira em promessa a criada num sinistro colégio vitoriano será “demasiado inglesa”? Demasiado datada? Desinteressante para os pequenos leitores de agora, sempre apresentados a novas e sofisticadas possibilidades de magia? Talvez o nome do livro não ajude: A Princesinha. É cor-de-rosa e meio piegas, ao contrário da história e da personagem principal. O diminutivo da versão portuguesa pode ser irritante. Mas que querem? Nem sempre se arranjam títulos brilhantes como To Kill a Mockingbird.
No fundo, acho que prefiro não saber muito sobre o que este livro hoje representa. Prefiro que Sara Crewe continue a ser a minha heroína favorita, maior do que Jane Eyre, Tigerlily, Jo March ou a Zé dos Cinco. Sara tem um sentido de sobrevivência animal, uma imaginação alucinada e a convicção apurada de ser quem é, independentemente das circunstâncias. Além de um stiff upper lip extraordinário que a salva da neurose.
Até que ponto lhe devo a minha anglofilia, não sei; mas agradeço a Maria Lamas por não ter traduzido buns por “pãezinhos com passas” ou bungalow por “casa de campo”. Aceito até, que remédio, a mudança de nome do ratito que vive na mesma mansarda de Sara Crewe (palavra impressionante, “mansarda”), rebaptizando-o de Melchisedec para Rodilard. E, lendo uma e outra vez, este começo continua a ressoar como se eu tivesse sete anos ou oito anos:
“Num desses dias tristes de Inverno, em que o nevoeiro, amarelado e espesso, invade a tal ponto as ruas de Londres, que é preciso conservar acesos os focos eléctricos e as lâmpadas dos estabelecimentos como durante a noite, uma carruagem avançava lentamente através das espaçosas ruas da grande cidade, transportando uma pequenita, muito aconchegada ao pai.”
(Só nunca consegui compreender por que razão a figura da capa era uma menina bonita de trancinhas loiras, tão diferente da Sara de cabelos pretos e olhos verdes, magra e morena, que nunca se deixaria enganar por truques desses…)