quarta-feira, 25 de outubro de 2017

TODAS AS CRIANÇAS CRESCEM, EXCETO UMA


Ler ou reler Peter Pan, hoje, é evocar um direito fundamental das crianças, essencial ao seu desenvolvimento emocional, cognitivo e relacional: o direito de brincar. Mas brincar livremente, de forma espontânea e sem a orientação dos adultos. Preenchido por múltiplas atividades escolares e extraescolares, por jogos repetitivos em frente a um ecrã, por demasiadas horas passadas em espaços fechados, o tempo livre das crianças também já nos surge como uma espécie de utopia. Se o leitor quer uma expressão realmente contraditória, reflita nesta: «ocupação de tempos livres». A questão é evidente: se o tempo é livre, para quê ocupá-lo?


Peter Pan, obra que celebrizou o escocês James Matthew Barrie (1860-1937), faz parte da mesma família literária em que se encontram a Terra Média de J.R.R. Tolkien, o Mundo de Oz de L. Frank Baum, a Nárnia de C.S. Lewis ou, como já dissemos, o País das Maravilhas de Lewis Carroll. São lugares imaginados até ao pormenor e dotados de vida própria; lugares que, pela sua riqueza simbólica, se tornam absolutamente reais na cabeça do leitor. Representam uma possibilidade de evasão, um jogo interminável, uma aventura com a sua dose de risco. Quem acha que Peter Pan é uma brincadeira de crianças, sabe apenas uma pequena parte da história. 


(Excerto do prefácio que escrevi para Peter Pan, recentemente reeditado pela Fábula, uma chancela da 20|20. A tradução é de José Manuel Lopes.)

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 4



RELIGAÇÕES

Tenho um cinto de couro que comprei há anos, e tenciono usá-lo até que se gaste e morra de morte natural. Tenho um único cinto; tal como só tenho um par de óculos de sol, um relógio (que não uso), uma gabardine, um guarda-chuva, uma carteira, uma mochila, umas havaianas, um cartão de telemóvel e um carregador de bateria. Não vejo necessidade de acumular acessórios de difícil arrumação e utilidade duvidosa. A ideia de «ir às compras» aborrece-me. Se quiserem torturar-me, convidem-me a passear num centro comercial, em demanda de roupas ou sapatos, e peçam-me opinião sobre a matéria. Em menos de cinco minutos, simularei um ataque de hipoglicemia e sairei da terceira loja com ar desvairado.

No último inverno, a presilha soltou-se. Deixei a coisa andar, até que o cinto se começou a parecer com a orelha caída de um basset hound, e achei por bem impor limites à minha preguiça. Procurei um sapateiro e perguntei-lhe se o paciente tinha conserto. O homem, já velhote, disse que sim, que não era grave. Pegou em agulha e linha e pôs-se a coser a presilha, cheio de paciência e vagar.

Fazia frio. Começámos a falar sobre comida, para aquecer a alma. Ele contou-me do bife que dava para quatro pessoas, e que a mãe dele desfiava num arroz malandrinho, apaladado com salsa picada e cenoura às rodelas. Eu contei-lhe do rancho que se fazia em casa da minha avó materna, um rancho como nunca mais provei, com bofes e tudo. Então, ele levantou os olhos e perguntou: 

— A menina é do norte?
— Sou. Como é que sabe? Não tenho sotaque.
— É que só lá é que se diz «bofes»...
— ... e se tratam as senhoras por «menina».

Continuámos a conversa, agora estreitada por laços geográficos. Ao nosso lado, as pessoas entravam e saíam, na voracidade das manhãs urbanas, inquirindo os preços das palmilhas, duplicados de chaves, tacões e meias-solas. Aconcheguei-me no conforto de uma certa invisibilidade temporária.

Quando acabou o trabalho, entregou-me o cinto: «Está pronto.» Não aceitou dinheiro. Insisti, sem sucesso. Despedimo-nos com um sorriso, desejei-lhe um bom dia e agradeci-lhe outra vez.

Saí para a rua e atirei-me ao frio como gato a bofe, corajosamente. Tenho a certeza de que o resto do dia me correu bem. Sentia-me animada, grata, ligada ao mundo por um encontro generoso. Registei tudo no meu caderninho preto, cujo título é: «Primeiro a bota, depois a meia» (um dia, também vos conto esta história).

O cinto ainda vai durar mais uns anos, aposto. A memória deste encontro durará muito mais. Não é uma opinião, é um sentimento. 


(Texto publicado em 15/9/2017 no blogue Delito de Opinião, a convite de Pedro Correia. Mais crónicas da série «Encontros com a minha alma gémea aqui, aqui e aqui.)

terça-feira, 19 de setembro de 2017

BEST OF OSCAR WILDE



«O atual tratamento das crianças é terrível, sobretudo por pessoas que não compreendem a psicologia peculiar da natureza da criança. A criança pode entender um castigo infligido por um indivíduo, como um pai ou um educador, mas não consegue entender um castigo imposto pela sociedade. Não consegue perceber o que é a sociedade.» (Oscar Wilde)



Num mundo onde as crianças já não têm só medo do escuro, de aranhas ou de fantasmas, mas passaram também a recear a guerra e os ataques terroristas, estas palavras são de uma profunda atualidade. Estamos todos – e não só as crianças – com dificuldade em «perceber o que é a sociedade». Ler estes contos talvez ajude os leitores mais jovens a compreender valores essenciais que os adultos não sabem ou não têm tempo para explicar. Valores como a amizade, a solidariedade, a coragem, a justiça e a bondade. Depois, há o lado lúdico da leitura que nos remete para o humor inimitável de Wilde – e nos recorda que os grandes leitores raramente são pessoas aborrecidas. Mais: que podem tornar-se grandes contadores de histórias. Para ajudar uma criança a não ser um adulto aborrecido, é importante dar-lhe bons livros a ler e encorajá-la a contar histórias que tragam significado para si e para os outros. Não é uma receita, é um projeto de vida. Plenos de sabedoria e graça, os contos de Oscar Wilde são indispensáveis na construção desse projeto. 

(Contos Escolhidos, Oscar Wilde, ed. Fábula, Setembro de 2017. Tradução e prefácio de Carla Maia de Almeida.)

terça-feira, 12 de setembro de 2017

OS LIVROS, OS LOBOS E OS MEDOS



Há algum livro, entre os doze que já editou, pelo qual sinta uma predileção especial? Parece-me que estou a perguntar à mãe qual o filho de que mais gosta, mas pronto… Fale-nos de três.
Mas há, claro que há. O livro do qual ainda não me desvinculei é o Irmão Lobo. Continua a viver em mim, tanto que me pede uma continuação. E vai acontecer. Eu nunca forço nada na escrita; não ando à procura de ideias mas mantenho-me atenta e disponível. E se as ideias ficam lá, durante algum tempo, dou-lhes atenção. Se elas se evaporam, deixo de pensar nisso. O Irmão Lobo foi importante porque me fez sair de uma zona de conforto; pode ser uma banalidade dizer isto, mas foi assim. Ao escrever, pela primeira vez, um livro para adolescentes e adultos, desviei-me do meu registo habitual, o álbum para crianças. O Irmão Lobo está dentro de mim e continuará a correr ao meu lado.
E sente esse retorno?
Um dos maiores retornos é saber que o livro foi traduzido na Colômbia, no México, na Alemanha, na Sérvia, em Itália. Este circular de um livro pelo mundo é muito bom, muito gratificante. Tal como dar conta de que a sua autenticidade atingiu o leitor.
E o segundo?
Também gosto muito do Onde Moram as Casas. Dos meus álbuns, é um dos mais arriscados. Apesar de a ilustração ser bastante figurativa, entendo ser uma proposta diferente.
Por não ter personagens?
Sim. As casas são as personagens e isso, só por si, torna-o original, creio eu. Mas recordo sempre o momento em que o terminei e o entreguei ao meu antigo editor na Caminho – o José Oliveira, uma pessoa marcante no meu percurso inicial – e notei que a primeira reação dele ao texto foi de estranheza. Eu estava segura da minha originalidade e, quando o ouvi dizer que talvez não fosse para crianças, fiquei desolada! Porque ao lado do escritor caminha sempre esta sombra do fracasso, da dúvida, da possibilidade concreta de morrer na pobreza… (risos) Não se ria, é verdade…
É um riso incongruente, por entender que é uma possibilidade bem real…
É o nosso medo mais atávico. Temos muitos exemplos ao longo da história. Herman Melville morreu sem ser reconhecido, e, noutro extremo, Truman Capote foi esmagado pelo sucesso de A Sangue Frio. Escrever exige-nos uma grande exposição, um abrir de entranhas, um caminhar numa linha muito ténue entre o poder e a extrema vulnerabilidade. O poder de tocar os outros e a vulnerabilidade de nos derrotarmos. Esta profissão é de uma tremenda imprevisibilidade. E precisamos de lidar com isso todos os dias.

(Excerto da entrevista à revista Focus Social, conduzida por Marta Vaz. Fotografia de Egídio Santos, na praia de Matosinhos. Pode ser lida na íntegra aqui.)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

ONDE MORAM OS PESCADORES


«Aqui vive um pescador», lê-se, junto ao portão desta moradia que bem podia ter entrado no Onde Moram as Casas, desenhada pelo Alexandre Esgaio. Fica no Bairro da Encarnação, em Lisboa, e é mesmo uma delícia para os sentidos.

sábado, 9 de setembro de 2017

UMA CRIANÇA PERGUNTOU


Uma criança perguntou O que é a erva? trazendo-ma nas suas mãos cheias;
Como poderia responder-lhe? eu que não sei mais do que ela?

Talvez seja a bandeira da minha índole, de matéria verde tecida.

Ou talvez seja o lenço do Senhor,
Uma perfumada prenda, uma lembrança que intencionalmente cai,
Com o nome do seu dono num dos cantos, para que ao vê-lo perguntemos De quem é?

Ou talvez a própria erva seja uma criança, um filho da vegetação.

(...)

in Canto de Mim Mesmo, de Walt Whitman, ed. Assírio e Alvim, 1992. Tradução de José Agostinho Baptista. Na foto: W.W. com os dois filhos da família Johnston.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

A IMAGINAÇÃO É A LINGUAGEM DO ESPÍRITO


«As crianças vivem num mundo espiritual secreto e possuem capacidades e experiências espirituais, momentos profundos que moldam as suas vidas de maneira indelével. Essas experiências fortíssimas (e, com frequência, amorosas) evidenciam a existência de um importante domínio espiritual que, até à data, nos passou despercebido. Essas experiências - que vão do assombro até ao encontro com a sabedoria interior, da formulação das grandes perguntas sobre a vida até à expressão da compaixão e, inclusivamente, da busca além das aparências - constituem, em suma, os alicerces sobre os quais assenta a nossa vida, como seres espirituais deste planeta. Nas páginas seguintes, mostraremos algo desse mundo secreto que se esconde nas nossas casas, nas nossas aulas e, quem sabe, também na nossa própria infância.»

(Da introdução ao livro El Mundo Espiritual Secreto de los Niños, de Tobin Hart, psicólogo e professor de psicologia na State University of West Georgia. Originalmente publicado nos EUA, em 2003, e traduzido pela Edicciones La Llave. O excerto acima é uma tradução minha a partir do espanhol.)

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

LENDO, É TIPO MUITAS COISAS QUE 'TÁ SAINDO DA SUA CABEÇA, SEM PARAR



«"Para gostar de Ler" é o título de um documentário lindo de cerca de uma hora acerca da importância da leitura para o desenvolvimento da criança. Estreou no Brasil  há poucos dias integrado na campanha "Leia para uma criança", do Programa Itaú Criança  promovida pelo banco brasileiro desde 2010. Outra das iniciativas desta instituição bancária em prol da leitura tem sido a distribuição gratuita de livros, num total de 45 milhões até hoje.

Neste documentário, as histórias de cinco famílias leitoras são entrelaçadas com os comentários de especialistas, pedagogos e autores, demonstrando, na prática e na teoria, a importância dos vínculos familiares na criação de hábitos de leitura. Este é um dos aspetos fundamentais do meu trabalho enquanto mediadora da leitura e que tenho vindo a desenvolver desde 2012. Neste ano letivo estão já agendadas 3 sessões (para pais e profissionais do Pré-Escolar, 1º Ciclo e 2º CEB)  acerca da Importância da Leitura na BE da EB1 de Vila Nova de Santo André. Falaremos certamente deste documentário.»

Via Paula Jacinto Cusati, mediadora de leitura e formadora acreditada na área da Promoção da Leitura.

domingo, 23 de julho de 2017

VERÃO KODACHROME


Alfeizerão, 1978. Não sei quem tirou esta fotografia na aldeia onde nasceu o meu Pai. Terras do «oeste selvagem» cuja macieza apenas reconheci no seu afamado pão-de-ló. Não tenho uma data certa, mas talvez tenha sido na Primavera e ainda fizesse frio, porque estamos todos vestidos de camisolas de gola alta e calças de fazenda, uma violência estranha às actuais crianças da fofinha geração Zippy. O que mais me comove na imagem, além do cheiro a campo que se intromete pelos fingimentos da memória, é esta evidente ausência de encenação para a objectiva. Ninguém quis saber de ninguém, ainda que haja uma coerência implícita. Mas parecemos um punhado de moedas atiradas ao ar, caídas no mesmo sítio, ao acaso, à sorte, ao azar. O meu primo Carlitos, "o ruço", a segurar a bicicleta, lembra-me uma personagem seráfica de um filme de Luchino Visconti. A seguir, vestido de camisola azul-marinho e emblema vermelho, o Fernando Pedro ergue o punho no ar como se levantasse as canções esquerdistas da época: Bella Ciao, Nicaraguita, Bandera Rossa e outras que tais. Os minorcas na linha da frente - respectivamente, o meu primo Pedro e minha mana mais nova -, ele ajoelhado e ela segurando um ramo de flores silvestres, parecem saídos de um romanceiro para crianças (je ne sai pas quoi dire, c'est si beau). Intencionalmente, deponho flores amarelas sobre a careca do nosso Pai, qual fã de Scott McKenzie e filha de São Francisco e do Verão de 1967. Isto agora podia para dar a lamechice e eu diria: que saudades tenho deste tempo... Mas não. Não. O Verão é agora.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

POSTAIS DE BAMBERG


O Google Photos lembra-me que há um ano estava na pitoresca (adoro esta palavra) cidade de Bamberg, para o último dia da tournée por escolas da Baviera, a convite do Festival White Ravens 2016. A sessão da manhã, na escola de artes E.T.A. Hoffmann, com miúdos de 16/17 anos, motivados e curiosos, foi mesmo a melhor de todas. Na escola seguinte levei um balde de água fria, com os putos a debandarem em grupinhos perante a passividade dos professores. Tive ser eu a pôr os pontos nos "is". Isto é só para não pensarem que lá fora é que é.

terça-feira, 18 de julho de 2017

QUANDO FOMOS MONSTROS


Foi assim a nossa Oficina de Férias no espaço Anagrama, onde durante uma semana provocámos a libertação dos nossos pequenos monstros, em parceria criativa. A Marta Alves, formada em arquitectura, deu aos miúdos ferramentas de ilustração e design gráfico; eu levei alguns livros e ajudei-os a construir uma história à volta de um tema sempre frutífero: os monstros. Nem todos são feios nem assustadores; alguns têm asas e fazem bem às pessoas. Os miúdos, todos à volta dos dez anos, estavam altamente motivados e chegaram a não querer ir brincar para a rua só para continuarem o que estavam a fazer. Inédito! Não se inscreveram por imposição dos pais (importante), trabalharam sempre e com muito entusiasmo. Cansaram-se mais com a parte da planificação, o esboçar e o "passar a limpo", mas isso é normal (também eu me canso...). Inventaram histórias diferentes, imaginativas, tristes, engraçadas, e todas elas cheias de significado pessoal. No fim, levaram um livro artesanal para casa. Esta semana paramos, mas de 24 a 28 de Julho teremos outra oficina de verão: «Zen Criativo». Saiba mais aqui.

CONTADEIRAS DE HISTÓRIAS EM ÓBIDOS


Encontram-se nas livrarias e lojas «especiais», um pouco por todo o lado. As Contadeiras de Histórias, um projecto criativo que envolve pequenas figuras feitas à mão em microcenários e micronarrativas, está em exposição na Casa Romântica - Galeria de Arte, com os originais do livro, ilustrações e peças de artesanato, ilustrações originais. Bom pretexto para um passeio a Óbidos.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 31


«Sou constantemente assaltado por memórias de sítios onde vivi, as casas e os bairros. Por exemplo, há um prédio vermelho de arenito, nas East Seventies, onde, no princípio da guerra, aluguei o meu primeiro apartamento em Nova Iorque. Era uma assoalhada atravancada de mobílias de sótão, um sofá e grandes cadeiras estofadas daquele veludo vermelho desbotado tão característico, que geralmente se associa aos dias de calor dentro de um comboio. As paredes eram de estuque, de uma cor de seiva de tabaco. Por toda a parte, até na casa de banho, havia gravuras de ruínas romanas acastanhadas pelo tempo. A única janela dava para uma escada de incêndio. Mesmo assim, ficava bastante eufórico quando sentia no bolso a chave para aquele apartamento tão esconso e sombrio; não deixava de ser um sítio meu, o primeiro, e tinha lá os meus livros e colecções de lápis por afiar, tudo o que precisava, julgava eu, para me tornar o escritor que queria ser.»

Truman Capote, Breakfast at Tiffany's (Boneca de Luxo), ed. Dom Quixote, 2009. Tradução de Margarida Vale de Gato. Originalmente publicado em 1958.


quarta-feira, 5 de julho de 2017

ROBIN HYDE, JOAN OF ARC


Não conheço nenhuma tradução para português desta mulher invulgar que escolheu o nome literário de Robin Hyde, evasivo e misterioso como os seus poemas. Nasceu em Cape Town, na África do Sul, em 1906, mas viajou com os pais para a Nova Zelândia quando tinha apenas um mês. Viveu sempre no limiar da sobrevivência, como jornalista e escritora, numa época e num país onde não era fácil ser mulher (mas alguma foi?). Interessou-se pelos direitos dos maoris, cujo estatuto de povo colonizado comparava ao do género feminino. Teve um filho que entregou para adopção, por não ter condições mínimas de o manter. Não gozava de boa saúde e acabou por se submeter a tratamento psiquiátrico, no Auckland Mental Hospital. Ironicamente, foi essa oportunidade de ter um quarto que fosse seu (para usar a expressão da sua contemporânea, Virginia Woolf), que lhe permitiu escrever, em quatro anos, sob o encorajamento dos médicos, três romances e dois livros de poesia, além de crónicas e reportagens. Escreveu muito sobre os proscritos da sociedade, numa busca de respostas que reflectia as suas próprias perdas, o seu desamparo e a sua quase indigência material. Os amigos foram o maior apoio, mas não conseguiram evitar o suicídio de Robin Hyde, aos 33 anos, a 23 de Agosto de 1939. A Segunda Guerra Mundial estava prestes a eclodir e ela estava em Londres. Um representante do governo da Nova Zelândia tinha ido buscá-la ao quarto onde morava, nesse mesmo dia, com o intuito de a repatriar. Falhou por umas horas.


Joan of Arc

It is for me to dare, whilst others dream.
Pity, my God, on all bewildered fools
Who must affront grave order, steadfast rules
Mellowed by centuries! How vain and crude
Will seem my tossing torches, in this town
Whose carven saints with quiet eyes gaze down
Into the sliding river. Wise friends above,
Had you but taught God's nobler name is Love.

What if the pity in my heart has wrung
Silence to speech, the semblance of a tongue
Given to meadowsweet, to brook and tree?
What matter? Many faces lift to me
Their ancient loss and evil. Have I choice,
Save to stand firm, and cry, "Thus speak the Voice"?
Some love me, some will mock... for I am young...
I think that they will doom me at the last.
All but the scent of grasses will glide past,
All but the quiver in my tree will cease...
God send, I flung the starved some shred of peace.

(in The Conquerors and Other Poems, originalmente publicado em Londres pela Macmillan, 1935.)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

DO AMOR


«Será o amor uma arte? Se o for, então exige conhecimento e esforço. Ou será o amor uma sensação agradável, que por acaso experimentamos, algo que "nos acontece" se tivermos sorte? Este pequeno livro parte da primeira premissa, embora não haja dúvida de que a maioria das pessoas hoje em dia acredita nesta última.

Não é que as pessoas pensem que o amor não é importante. Elas estão sequiosas de amor; vêem inúmeros filmes sobre histórias de amor felizes e infelizes, ouvem centenas de canções "lamechas" sobre amor - e contudo quase ninguém acredita que é preciso aprender seja o que for sobre o amor.

Esta estranha atitude baseia-se em diversas premissas que, isoladas ou em conjunto, tendem a confirmá-la. A maioria das pessoas encara o problema do amor como sendo uma questão de ser amado, e não de amar, da capacidade de amar. Daí que, para elas, o problema consista em como ser amado, como ser amável. (...)»

Erich Fromm, A Arte de Amar (The Art of Loving), ed. Pergaminho, 2008. Originalmente publicado em 1956. 


quinta-feira, 29 de junho de 2017

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 30


«É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro em posse de fortuna necessita de uma esposa.»

Jane Austen, Orgulho e Preconceito, ed. Presença, 2014, tradução de Ângela Miranda Cardoso com Maria João da Rocha Afonso. Originalmente publicado em 1813. 

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 29


«Ele estava prestes a entrar na meia-idade e vivia, por essa altura, num bangaló em Woodland Avenue. O verde das ervas rasgava os degraus do alpendre e, mais acima, um ninho de abelhas estava agarrado a um espigão, bem visível. Do olmo, moribundo, pendia uma corda, enlaçada no feitio sinistro de uma forca, e o chão por baixo dela tinha sido tão esfregado pelas inúmeras marcas de botas que estava tão macio como farinha. Jesse instalara-se numa cadeira de baloiço e fumava lentamente o seu charuto, apreciando o ar da noite, enquanto a sua mulher limpava as mãos rosadas ao avental de algodão e se ocupava alegremente dos dois filhos do casal. Sempre que ele caminhava pela casa, trazia consigo vários jornais - o Daily Democrat, de Sedalia, o Gazette, de St. Joseph, e o Times, de Kansas City - e a sua pistola calibre .44, enfiada numa prega de roupa onde coubessem os seus trinta centímetros. Andava sempre com os bolsos atafulhados de lápis sem bicos. Divertia-se a atirar amêndoas aos esquilos. Gostava de entrelaçar dentes-de-leão amarelos no cabelo loiro da sua mulher. Esforçava-se por desenvolver habilidades para viajar para fora do seu corpo e interessava-se por premonições e feiticiaria. Chupava gemas cruas das cascas dos ovos e comia ervas quando estava doente, como um cão. Abria a Bíblia Sagrada sempre do mesmo modo, ou seja, com grande alarido e solenidade.»

Ron Hansen, O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford, ed. Magnólia, 2007, tradução de Amândio Oliveira. Originalmente publicado em 1983.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 28


«Foi mau, o inverno de 1933. Avançando penosamente naquela noite por entre labaredas de neve, com os dedos dos pés a arder e as orelhas em chamas, a neve a revolutear à minha volta como um bando de freiras raivosas, parei abruptamente. Chegara a hora de pensar bem. Com bom ou mau tempo, havia certas forças no mundo que se conjugavam para tentar destruir-me.»

John Fante, 1933 Foi um Mau Ano, ed. Alfaguara, 2017, tradução de José Remelhe. Originalmente publicado em 1985.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

SOLTA O MONSTRO QUE HÁ EM TI!


Na semana de 10 a 14 de Julho, eu e a Marta Alves, que juntou a formação académica em arquitectura à aprendizagem do yoga para crianças, meditação e mindfulness, estaremos no espaço Anagrama para orientar a semana de férias «Se Eu Fosse Um Monstro», destinada a crianças dos 8 aos 14 anos. Mais do que uma oficina de escrita criativa, a proposta é construirmos um livro ilustrado, da capa à contracapa (aí entram os saberes gráficos e estéticos da Marta), que no final se leva para casa. Trabalharemos o tema da biografia, mas com imaginação. Exactamente: como se fôssemos um monstro. Podemos ser um monstro simpático, antipático ou as duas coisas ao mesmo tempo. E não, não vamos ser todos verdes e com olhos amarelos...

A oficina decorre das 9h00 às 18h00, de segunda a sexta, no Anagrama (Av. de Berlim, 35 C, Lisboa). Preços: 95 € por semana. Cliquem na imagem para mais informações ou liguem para o 211 966 088. 

quarta-feira, 31 de maio de 2017

CORVOS BRANCOS E SAUDADES DE MUNIQUE


4. White Ravens Festival: Carla Maia de Almeida, Portugal from Internationale Jugendbibliothek on Vimeo.

Quase um ano depois, recordo uma das semanas mais felizes da minha vida: representar a língua portuguesa pela primeira vez no Festival White Ravens 2016, uma iniciativa do IBBY/Biblioteca Internacional da Juventude (Munique), graças à tradução do Irmão Lobo (Bruder Wolf, ed. Sauerländer) para alemão. Obrigada à DGLAB, ao Planeta Tangerina, aos meus agentes da Bookoffice e a todas as pessoas que tornaram isto possível. Decididamente, não me interessa nada escrever "muito lá para casa". Um lobo deve correr mundo!

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A MÃE É A MÃE É A MÃE



As distâncias deixam tombar os cabelos
das mães, despojadas formigas
cegas recolhem-nos metodicamente
como velhas raízes de memórias,
um corpo cortado, um corte surdo,
borboletas níveas, primaveras níveas
(como será a incisão, a garganta aberta?)
em que se desvanecem as flores da noite,
o silêncio é um corpo-a-corpo com a sorte
e o verbo um corpo-a-corpo com Deus.

(...)

João Rasteiro, in A rose is a rose is a rose et coetera, Edições Sem Nome, 2017.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

OS MONSTROS MUDAM DE CASA



Uma releitura de Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, com ilustrações de Maria Bouza Pinto, é o risco assumido de Monterroso (ed. Máquina de Voar). Segue-se a minientrevista a João Ferreira Oliveira, jornalista e escritor, publicada na última edição da LER, secção «Scrapbook», onde escritores, ilustradores, editores, livreiros e outros intervenientes do circuito da LIJ (literatura infantojuvenil) falam, meio a sério, meio a brincar, do seu processo criativo: 

CMA: Maurice Sendak e Augusto Monterroso: é arriscado juntar dois grandes escritores no mesmo livro, não?  
JFO: Literatura sem risco é uma redação. Há autores que parecem ter escrito tudo e não deixam espaço para mais nada, outros há (os grandes) que colocam todo um novo mundo à disposição de quem vem a seguir. Monterroso escreveu aquele que é considerado o mais pequeno conto de sempre: «Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá». Sendak ilustrou como ninguém os monstros que vivem na cabeça de uma criança. Achei que se dariam bem no mesmo livro.

CMA: Os pais de Monterrosso andam à procura do filho. O tempo está mau para a navegação familiar?
JFO: Os tempos nunca são fáceis para a navegação familiar. Em todas as épocas e em todas as casas há tempestade. Mas enquanto há vida, há bonança. 


CMA: «O teu filho desapareceu e tu vais ler?», diz o pai. Costuma tomar nota de frases estranhas?
JFO: Se não forem estranhas para quê tomar nota? «Na Selva viveu uma vez um Macaco que queria ser um escritor satírico.» É o começo de um conto de Augusto Monterroso. Nem sequer é para crianças, mas faz-nos querer brincar com as palavras. 


(Fotografia tirada do site do CCB, onde Monterroso foi tema para uma oficina para crianças.)

segunda-feira, 15 de maio de 2017

sexta-feira, 12 de maio de 2017

RADIOGRAFIA DO ESPÍRITO


Entre as possíveis interpretações do título, inspirado nos jogos de oralidade das crianças de Luanda, arriscamos esta: se o corpo é a nossa primeira casa, dizer que A Minha Casa Não Tem Dentro sugere uma perda de alicerces e de falta de chão, a lembrar as cidades devastadas pela guerra e os seus prédios esboroados, sem nada lá dentro, submetidos à mais crua exposição. Porque é disso que trata esta novela gráfica e autobiográfica: o corpo exposto à doença e à sua mais fiel companheira, a morte. «No dia 22 de fevereiro de 2016 – por causa de uma veia que rebentou no meu estômago – morri e regressei à vida (...)», escreve António Jorge Gonçalves, em nota introdutória, e essa explicação é importante para compreender a narrativa sequencial destas imagens fortíssimas. Surgem-nos como gravuras retiradas de um banho químico, sempre entre o azul e o vermelho, evocando a circulação do sangue, e falam-nos da descida, real e simbólica, ao inframundo da doença, a esse palco onde nos sentimos desmembrados, disformes, assustados, vulneráveis e sós. O autor quase desaparece sob as cortinas do gabinete médico – e será o personagem da criança, sua filha, que fará a ligação entre o lado de quem parte e o de quem espera. O final, sem janelas, gráficas ou de qualquer tipo, coloca-nos de novo perante o sol. 


A Minha Casa Não Tem Dentro 
António Jorge Gonçalves
Abysmo

sexta-feira, 5 de maio de 2017

NOCTURNO EM SOL MAIOR

 
Noite Estrelada, de Jimmy Liao (n. 1958, Formosa), abre com uma dedicatória dirigida aos leitores: «Para as crianças que não se sentem em sintonia com o mundo.» Mas Jimmy Liao não é «apenas» um autor de livros para crianças, e por isso esta dedicatória tem um valor metonímico, capaz de tocar adultos que também não se sentem em sintonia com o mundo. Ou seja, uma imensidão de leitores.

Sem prescindir da palavra, mas concentrando-se no seu enorme talento enquanto ilustrador, os três livros já traduzidos pela Kalandraka (Desencontros, Segredos na Floresta e O Peixe que Sorria) são portadores de temas universais não circunscritos ao destinatário infantil: a identidade, a solidão, o amor, a amizade, a estranheza do ser humano dentro de si próprio e perante um mundo que por vezes é hostil e, outras vezes, representa a possibilidade da serenidade individual e da união com o outro.

Sempre numa linha ambígua onde a sugestão onírica se funde com as fronteiras do real, Noite Estrelada (The Starry Starry Night, no original) aprofunda esses temas e leva mais longe as intertextualidades plásticas; desde logo presentes no título e na belíssima imagem de capa, uma referência direta ao quadro de Van Gogh, Noite Estrelada (The Starry Night). Os protagonistas são dois pré-adolescentes, uma rapariga e um rapaz que a princípio se desconhecem, e cuja aproximação decorre da sua condição de seres inadaptados. Nem a escola nem a casa familiar equivalem a lugares seguros, e as barreiras da comunicação entre adultos e crianças revelam-se a cada passo: «Adoro a minha mãe e ela adora-me. Mas ela não me compreende, e também não me parece que eu a compreenda.» A deriva da adolescência pode ser sintetizada nesta bela frase: «Era como uma planta a crescer num labirinto, sem se preocupar com o lado da saída.»

Sobre este fundo de inquietação e desajuste, Jimmy Liao elabora o acaso feliz de um encontro que eleva os protagonistas acima da superfície mundana, emprestando-lhe o dom dos flâneurs sem tempo nem idade. Juntos, empreendem uma viagem que reflete o contraste entre a cidade e o campo, em direção à casa de um avô já desaparecido, mas cuja memória ecoa na escuridão da noite interior. A descoberta mútua não se faz sem iludir a perda; ainda que, mais à frente, o fundamental seja recuperado. Como sempre se deseja.

Noite Estrelada
Jimmy Liao
Kalandraka 

(in LER nº 145) 

quarta-feira, 19 de abril de 2017

NOITE ESTRELADA



No escuro, os olhos de Kenny ficaram maiores.
– Como é que cheguei tão longe? – perguntou.
– Pediste um desejo, e um desejo é meio caminho andado para chegares onde quiseres.
Kenny encostou a cabeça à janela e imaginou um cavalo preto e brilhante, e um navio pintado de branco.
– É quase de manhã – disse o galo. – Tenho de me ir embora.
Abriu as asas e voou em direção ao céu.
– Adeus, Kenny.
Nas luzes cantantes da cidade, Kenny viu-o desaparecer.
– Adeus – murmurou.
Kenny ouviu os ruídos da cidade atravessarem o vidro da janela. Eram como as canções que eleinventava quando estava contente. Fechou os olhos e os ruídos tornaram-se numa canção sobre um cavalo que fumegava pelas narinas e soltava chispas prateadas com os cascos.
Kenny adormeceu com a cabeça encostada ao parapeito da janela. E a canção tornou-se num sonho sobre um cavalo. Kenny ia montado num cavalo negro e brilhante. Partiram os dois a galope, deixando as casas para trás, e as pessoas viam-nos das janelas e batiam palmas. Correram o mundo inteiro, até chegarem à beira do oceano. E lá estava um navio pintado de branco, com um quarto a mais para um amigo. 


(excerto do final de A Janela de Kenny, um texto filosófico e encantatório de Maurice Sendak - aqui, também autor das ilustrações - que tive o privilégio de traduzir. Acabadinho de sair pela Kalandraka.)

quinta-feira, 13 de abril de 2017

DEDICATÓRIA


SABES, EU GOSTO DE TI

acho-te tão meiga e ligeira -
teus olhos tão cheios de luz,
gosto de ti, gosto de ti.

E o teu nariz e cabelos e boca,
teus olhos e teu pescoço querido
onde na gola da tua roupa
tens teu ouvido escondido.

Sabes, gostava imenso de ser
tu, mas isso não pode ser,
a luz envolve-te, a gente é
simplesmente aquilo que é.

Ai sim, gosto de ti,
gosto tanto e tanto de ti,
Gostava de dizê-lo por completo -
Mas não o consigo em concreto.

(Herman Gorter, in Uma Migalha na Saia do Universo - Antologia da poesia neerlandesa do século vinte, ed. Assírio & Alvim, 1997. Tradução de Fernando Venâncio.)

quarta-feira, 12 de abril de 2017

HERMANO LOBO DISTINGUIDO PELO BANCO DEL LIBRO


Na Venezuela, a associação promotora da leitura Banco del Libro, vencedora do ambicionado Prémio ALMA 2007, incluiu a edição mexicana do Irmão Lobo (Hermano Lobo, El Naranjo, 2015) na sua lista anual dos melhores livros para crianças e jovens publicados em espanhol. Nunca é demais agradecer ao Jerónimo Pizarro pela tradução, ao António Jorge Gonçalves pelas ilustrações e a toda a equipa do Planeta Tangerina, além de todos os leitores que têm feito correr este livro além-mar.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

CEREJEIRAS EM FLOR


Estive com as crianças do Centro Escolar Solum Sul, em Coimbra. O local do encontro foi a Casa da Escrita, um espaço muito bonito que ninguém deve deixar de conhecer, mesmo ao pé da Sé Velha. Mostrei-lhes o Amores de Família e as maravilhosas ilustrações da Marta Monteiro. Uma delas disse que a Festa das Cerejeiras era no Japão. No fim da sessão, fomos todos ver uma verdadeira cerejeira em flor, lindíssima e perfumada, logo ali, no jardim da Casa da Escrita. Não é todos os dias que isto acontece.

terça-feira, 28 de março de 2017

LISBOA-COIMBRA-LISBOA


Entrámos na Semana da Leitura em muitas bibliotecas e escolas (a «Semana da Loucura», como eu costumo dizer) e uma pessoa não tem mãos a medir. Daqui a pouco, parto para o meu querido Norte: amanhã estarei em Vila do Conde, depois em São João da Madeira e, para terminar, em Coimbra. No sábado, 1 de Abril, véspera do Dia Internacional do Livro Infantil, visito a Casa da Escrita (16h00), respondendo a um amável convite do município, para falar de livros para os mais novos e e não só. Gostava que aparecessem, porque a ideia não é transformar a coisa num monólogo. Deixo-vos, para já, com esta questão: em vez de querermos cultivar hábitos de leitura, porque não ensinamos as crianças e adolescentes a gostar de livros, uma das invenções humanas mais fantásticas de sempre? Eu levo alguns na bagagem, para exemplificar. 

segunda-feira, 27 de março de 2017

ONDE MORAM AS CASAS OU OS SONHOS COMUNICANTES


Uma grande amiga e uma grande jornalista, cujo nome não refiro aqui porque não sei se ela gostaria, está prestes a realizar um dos meus maiores sonhos: viver fora de Lisboa, perto da praia, numa casa térrea com espaço à volta (não, não é essa que está na fotografia... queriam!). Tem um filho adolescente que cria praticamente sozinha, a família no Norte e, como se costuma dizer, «pouca rede de apoio». São coisas que partilhamos, as duas últimas. Tem, acima de tudo, uma grande coragem, capacidade de se adaptar às circunstâncias e valores mais sólidos do que o Rochedo de Gibraltar. «É muito trabalhadeira», como se diz lá em cima. Em suma, é uma grande mulher de quem espero ser amiga até que a vida o permita (ela diz que, às vezes, parecemos os velhos d'Os Marretas, sempre a rezingar à volta das mesmas coisas - os gajos, o dinheiro, o trabalho, as chatices do jornalismo -, etc., mas eu sei que isso não é mais do que um elogio à nossa resiliência).

Agora, o curioso desta história é que, durante anos, a minha amiga nunca prestou atenção ao lugar onde vai morar agora, o lugar dos meus sonhos, ao qual se chega por uma estrada cheia de curvas, entre pinhais e cheiro a maresia. Pelo contrário, dizia-me: «Ah, mas tu fazes 50 quilómetros para cá e para lá quando tens praias mais perto de Lisboa?» Eu encolhia os ombros e respondia: «Faço. Faço porque é ali que me sinto bem durante um dia inteiro, e ao pé disso o que me importa a gasolina?» Ela suspirava: «Não te entendo.» E assim continuávamos nas nossas «marretices».

O tempo passou e a vida deu-lhe uma grande volta, e quis a sorte que ela arranjasse um emprego no lugar dos meus sonhos, para onde está prestes a ir viver junto com o filho. Não lhe saiu o euromilhões, não recebeu nenhuma herança, não encontrou o homem da vida dela, com carro e casa posta. Teve apenas um pouco de sorte e um conjunto de circunstâncias a seu favor que lhe permitiram aplicar a máxima de Arquimedes: «Dêem-me um ponto de apoio e eu levantarei o mundo.» Fico mesmo muito feliz por ela, tenho muitos defeitos mas não a inveja, seguramente. Merece tudo, esta miúda da minha idade. E acho engraçada a forma como o meu sonho contagiou a vida dela, inconscientemente.

Falta-me ainda um ponto de apoio para conseguir viver numa casa assim como a da fotografia, que simboliza quase tudo o que valorizo. Talvez morra sem nunca lá chegar, mas continuo a procurá-lo. «Enquanto há força», como diz a canção, hei de continuar a procurá-lo. E pergunto-me, em jeito de FC e parafraseando Philip K. Dick («Do androids dream of electric sheep?»). Será que, neste momento, alguém está a sonhar o sonho onde eu hei de morar, um dia? Quem sabe.    

sábado, 25 de março de 2017

DIA INTERNACIONAL DO LIVRO INFANTIL 2017


«Continuamos a crescer, e o mundo à nossa volta torna-se mais complicado. Enfrentamos questões a que nem os adultos sabem responder. No entanto, é importante partilhar dúvidas e segredos com alguém. E aí o livro volta a ajudar-nos. Muitos de nós terão um dia pensado: este livro fala sobre mim! E a personagem favorita parece ser igual a nós. Tem problemas semelhantes, e resolve-os com dignidade. E há outra personagem que não é igual a ti, mas tu gostarias de seguir o seu exemplo, de ser tão corajoso e desembaraçado quanto ela.»

(Excerto do texto que celebra o Dia Internacional do Livro Infantil, este ano assinado pelo escritor russo Sergey Makhotin (n.1953), com tradução do inglês por Maria Carlos Loureiro e publicado integralmente pela DGLAB, aqui. O cartaz de 2017 é da autoria de João Fazenda, vencedor do mais recente Prémio Nacional de Ilustração)

P.S. - Daqui a uma semana, o Dia Internacional do Livro Infantil será também celebrado na Casa da Escrita, em Coimbra, e esta vossa amiga lá estará para botar faladura e suscitar o debate de ideias. Sábado, 1 de Abril, às 16h00. Até lá!

quarta-feira, 22 de março de 2017

VAMBORA COM ADRIANA CALCANHOTTO



Sim, esta selfie é mesmo com a maravilhosa Adriana Calcanhotto e foi tirada na Casa da Escrita, em Coimbra, onde o último sábado foi dedicado ao workshop «Escrita e ilustração: literatura para a infância». Na mesa, além de Adriana Calcanhotto (na qualidade de professora convidada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, entidade organizadora do encontro), estão três ilustradores: André Letria​, Inês Prazeres e Élia Ramalho, esta última também na foto preparatória da parte prática do workshop. A moderar a mesa, para um público muito interessado que esgotou os lugares, esteve a Doutora Ana Maria Machado, professora da FLUC. Só tive tempo de ouvir a parte final do debate, mas valeu muito a pena!

Sábado, 1 de Abril, em vésperas do Dia Internacional do Livro Infantil, lá estarei também em Coimbra para falar dos livros para os mais novos. Ui, quem me dera ter assim a casa cheia!

domingo, 19 de março de 2017

QUARTEL-GENERAL EM ABRANTES


Saber receber é uma arte. A convite da Biblioteca Municipal António Botto, passei um dia excelente em Abrantes, onde fiz duas sessões para os leitores mais novos. A primeira, para crianças do 4º ano do 1º ciclo, à volta do Onde Moram as Casas; a segunda, para estudantes do 10º ano, tendo por mote o Irmão Lobo, na Escola Secundária Solano de Abreu. A professora de português ficou doente e, em consequência, vieram duas turmas que nunca tinham ouvido falar do livro. Por estranho que pareça, gosto quando isto acontece. Se falar para adolescentes já é um desafio, falar "sem rede" é quase uma missão suicida. Improviso, sinceridade e um bocado de sorte resolveram o que, pelo menos para mim, nunca seria um problema. Afinal, ninguém sabe quem são realmente os leitores, certo? Obrigada à Biblioteca AE nº1 de Abrantes pelo comentário sobre o Irmão Lobo

«De uma profundidade comovedora, a obra, sobejamente premiada e traduzida em várias línguas, apresenta um tema atual e propõe uma reflexão indispensável sobre as famílias em desagregação. Uma mesma personagem, a duas vozes e dois tempos, narra uma história que bem podia ser a de um de nós, a de muitos dos nossos adolescentes.
Sensibilidade e muito humor à mistura transformaram este encontro numa conversa inesperada, deliciosa e, sobretudo, irreverente.»

segunda-feira, 13 de março de 2017

IRMÃO LOBO NAS FINAIS DO CONCURSO NACIONAL DE LEITURA 2016/2017


Excelente notícia: Irmão Lobo (Planeta Tangerina, 2013) é o livro português eleito para a prova final dos alunos do 3º Ciclo das escolas da Área Metropolitana de Lisboa que participam na 11ª edição do Concurso Nacional de Leitura 2016/17, uma iniciativa do PNL - Plano Nacional de Leitura. Trata-se de uma área enorme que abrange 18 municípios da Grande Lisboa e da península de Setúbal; e todos os alunos seleccionados se encontrarão nas provas finais que decorrem em Sintra, município escolhido para receber o concurso, no Centro Cultural Olga Cadaval, a 2 de Maio. Alguém vai ter de ganhar, e Irmão Lobo até gostaria que todos ganhassem, mas distribui boa sorte em doses massivamente iguais. O livro estrangeiro que também chegou à final é o curiosíssimo e maravilhoso romance de John Boyne, A Coisa Terrível que Aconteceu a Barnaby Brocket (Bertrand, 2013), o autor do best-seller O Rapaz do Pijama às Riscas. Irmão Lobo não podia estar melhor acompanhado. É uma honra! 

sábado, 11 de março de 2017

EM NOME DA FILHA: ENTREVISTA AO DN


Vamos começar pelo fim. Ao publicar este livro acredita que a violência na intimidade terá fim?
Não, pelo menos no meu tempo, não terei a sorte de assistir a isso. Mas temos de lutar para reduzir números que nos envergonham e, sobretudo, ampliar a consciência das gerações que estão em formação. A minha intenção, como jornalista e escritora, foi trazer informação relevante a um problema muito difícil de compreender. Como tudo o que envolve o humano.

O estudo mais aprofundado da questão faz com que esteja mais atenta no dia-a-dia ao que as "telhas escondem"?
Talvez. O conhecimento das coisas abre duas portas: primeiro, a da consciência. Depois, a da atuação, da intervenção. Tenho a certeza de que, se todos tentássemos perceber o que é a violência doméstica, todos estaríamos mais atentos. A prevenção é fundamental. 

Como se explica que após uma revolução nos alegados brandos costumes portugueses nas últimas quatro décadas esta violência se mantenha na ordem do dia?
Não acredito na teoria dos brandos costumes. Somos um povo ameno e pacífico, mas no que toca aos costumes podemos ser muito truculentos, porque é preciso pensar nos séculos que antecedem essas “últimas quatro décadas” que refere. A violência, aqui como no resto do mundo, está na ordem do dia, e exerce-se contra os mais fracos: mulheres e crianças. O último relatório Organização Mundial de Saúde diz uma em cada três mulheres vai ser vítima de agressões físicas, psicológicas e sexuais pelo simples facto de ser mulher.

Os portugueses foram surpreendidos recentemente com a violência no namoro. Esta é uma atitude que não tem limites em tudo o que diz respeito à relação entre pessoas? 
Foram surpreendidos pelos dados de investigação quanto à violência no namoro, porque esta sempre existiu. Nota-se, por um lado, uma embriaguez do poder por parte dos rapazes, imitando os piores exemplos que veem no mundo e, por outro, uma falta de rede de apoio para as raparigas terem consciência de que nada disto "é normal" e aceitável. Para ambos, rapazes e raparigas, estes dados revelam uma manifesta incompreensão do que é - já nem digo o amor! - mas uma relação afectiva plena e sadia, na qual ferir o outro, conscientemente, é algo intolerável.

A premeditação está sempre na base destes atos violentos?
Isso já é matéria de investigação criminal. Muitos agressores agem premeditadamente, outros por impulso e incapacidade de gerir as suas tensões internas. Uma coisa é certa: a violência não surge do nada. Há todo um historial, individual e familiar, que conduz à agressão. O pior é quando esta se banaliza.

Do que viu e ouviu, considera possível ultrapassar-se a passividade que decorre da violência psicológica contínua ou estamos apenas perante uma violência ainda maior?
Do que vi e ouvi, os relatos são coincidentes: a violência psicológica chega a ser mais marcante do que a violência física. Há palavras e ações que têm um efeito devastador na psique humana, especialmente quando são praticadas de uma forma sistemática e ritualizada. Lembro-me do caso de uma senhora cujo marido lhe exigia que tivesse o jantar pronto às sete da tarde, senão recusava-se a comer e atirava o prato para o chão. Isto é de uma humilhação brutal. É claro que, quando há agressão física, a violência psicológica está inerente, é o desrespeito pelo corpo do outro, pela totalidade do seu ser. Mas a violência psicológica ocupa um espaço tremendo no esquema mental e emocional da vítima. É insidiosa e muitíssimo destrutiva.  

Refere a perpetuação do ciclo da agressão. Está a ser contrariado pelas novas gerações?
Uma coisa é o ciclo da agressão numa relação conjugal, que obedece a um comportamento mais ou menos padronizado. Há uma escalada de tensão, há o explodir dessa tensão que desemboca na violência, e há a fase de acalmia, que mais não é do que um prelúdio do recomeço do ciclo. Outra coisa é o perpetuar de uma visão distorcida das relações de intimidade, em que há sempre um dominador e um dominado, e a violência torna-se admissível. Desde logo, porque não é entendida como violência! O estudo recentíssimo da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), sobre violência no namoro, é muito preocupante.    

Chocou-a ter de colocar a palavra "puta" tantas vezes nesta narrativa?
Chocou-me em que sentido? «Puta» é um dos insultos mais frequentes nos casos de violência relacional, não só entre adultos como adolescentes. Reproduzi o que ouvi, como era meu dever de jornalista, dentro de um contexto e de um enquadramento. Numa reportagem sobre violência doméstica seria absurdo usar floreados.

O atual papel da comunicação social e das redes sociais está a destruir os mitos da misoginia ou é complacente? 
A misoginia não é um mito, é uma realidade bem inculcada que se manifesta de mil e uma maneiras. Desde o comentário de café que rebaixa as mulheres, «as gajas que são isto ou aquilo», até aos casamentos impostos a meninas de 11 anos  ou às vinganças «de honra» que permitem a um homem atirar ácido sulfúrico para a cara de uma mulher, sem que daí venha nenhum mal ao mundo.

Ainda se pode acusar a Igreja de colaborar no encobrimento destas práticas ou só se o pode fazer em relação à família?
Não sei responder a isso. As mentalidades são sempre o mais difícil de mudar, e na sociedade portuguesa essas duas instituições têm um peso enorme. Para a maior parte das pessoas, quando a violência doméstica lhes bate à porta, o sentimento predominante ainda é a vergonha. É melhor varrer para debaixo do tapete do que sacudi-lo cá fora. Mais do que acusar, temos de ouvir e agir. Tudo menos silenciar, porque a violência doméstica alimenta-se muito do silêncio e do isolamento.

Uma situação que este ensaio foca é o da repercussão nos filhos. Não é um lado sempre demasiado ignorado?
A violência doméstica em que as vítimas são as crianças e os adolescentes daria tema para outra reportagem. É preciso compreender que são sempre vítimas, mesmo que não levem estalos ou murros. Porquê? Porque percebem que não podem fazer nada nas guerras dos adultos – não é o seu papel, de resto – e essa sensação de impotência é desorganizadora e paralisante. Depois tudo se reflete, seja nos comportamentos hiperactivos e agressivos, seja numa interiorização recalcada de emoções muito fortes. Espanta-me a forma como os adultos falam à frente dos filhos, achando que eles não percebem nada só porque são crianças.

Esta questão está na ordem do dia. Foi o que a fez despertar para o problema?
Em parte, sim, mas a família é um dos meus temas literários – para não dizer que é «o» tema. Quis compreender os comportamentos, as motivações, as repercussões e alguns meandros que existem por trás das famílias disfuncionais. O que se sabe sobre a violência doméstica é realmente pouco. Sabemos dos casos pelos jornais, pela rádio, pela televisão, mas muito na perspectiva do efeito de choque, não da compreensão do fenómeno. Isto gera um efeito perverso, que é de não irmos além da superfície. Acabamos por nos cansar e desligamos, género «Olha, foi mais uma que morreu!»

Foi-lhe difícil a recolha dos depoimentos?
Não tive dificuldade nos contactos, porque garanti anonimato e o nome da Fundação Francisco Manuel dos Santos é sinónimo de credibilidade. Mas foi difícil ouvir, desgravar, ler, reler, sublinhar e depois escrever. Comovi-me muito ao escrever. Mas creio que não há ponta de lamechice neste trabalho.

Admite investigar o outro lado da questão, o da violência sobre os homens?
Claro. Ainda agora comecei.

A maior parte da sua obra é no livro infanto-juvenil. A partir de agora o tema da violência na intimidade impor-se-á como pano de fundo ou fica por este Em nome da filha?
A minha obra literária tem sido sempre no livro infanto-juvenil, mas o tema da família é quase omnipresente: no Onde Moram as Casas, no Irmão Lobo, no Amores de Família, sobretudo. Sinto que esta reportagem em forma de livro abre um ciclo novo, mas não sei o que vai acontecer. Só sei que não quero deixar de escrever. Como os meus livros irrompem de uma forma muito ligada ao inconsciente, muito orgânica, é provável que este tema regresse, mesmo que eu não queira. 


(Texto completo da entrevista conduzida por João Céu e Silva para o Diário de Notícias de 22/2/2017, cuja maior parte foi publicada aqui. Não tenho fotos. A imagem acima pertence à entrevista ao jornal i, publicada no mesmo dia e conduzida por Marta F. Reis: aqui. A foto é de Paulo Sousa Coelho.)