E, no entanto, ela é mesmo uma escritora do Sul dos Estados Unidos. Nascida em Filadélfia, em 1964, aos cinco anos mudou-se para a Florida, onde cresceu, estudou e descobriu a sua «família literária».
Por Causa de Winn-Dixie, a que se seguiu
A Libertação do Tigre, publicado em 2001, são livros por onde passa a sombra do Southern Gothic, estilo impulsionado por toda uma fina linhagem de escritores do Sul (grande parte deles, mulheres), sob a presença tutelar de William Faulkner: Carson McCullers, Eudora Welty, Tennessee Williams, Harper Lee, Flannery O’Connor, Truman Capote, só para citar alguns. Se o contexto é regional – pequenas comunidades assoladas pelo abandono, famílias em serena desagregação, as ruínas de um passado orgulhoso perdido na guerra civil… –, as questões em causa são da maior amplitude moral. O que ficou nos livros de Kate DiCamillo, retirado o excesso de violência e grotesco dessa herança literária, foi um certo imaginário do desconforto; mas um desconforto em busca da sua cura e redenção, capaz de resistir a forças adversas e, ainda assim, manter a sua integridade singular. Na linguagem da psicologia, dir-se-á, talvez, resiliência.
Na literatura para crianças e jovens há uma longa tradição de heróis resilientes, desde Oliver Twist e outras torturadas personagens dickensianas à extraordinária Matilde, da obra homónima de Roald Dahl. Em
Por Causa de Winn-Dixie, a heroína é India Opal Buloni, uma menina de dez anos que vive com o pai, pregador religioso, numa velha trailer home – esse tipo de caravanas que representam a residência fixa de milhões de norte-americanos das classes desfavorecidas. India não tem mãe; ou é como se não tivesse, uma vez que esta abandonou a família quando India era ainda muito pequena. O tema das mães «desaparecidas» continua no livro seguinte,
A Libertação do Tigre, onde um rapaz de 12 anos, Rob Horton, se confronta com a necessidade de enfrentar as emoções provocadas pela morte prematura da mãe, um recalcamento espelhado na alegoria do tigre enjaulado.
Se Kate DiCamillo já esclareceu em entrevistas que a mãe está viva e de boa saúde, também não faz segredo sobre o facto de o pai ter saído de casa quando ela tinha cinco anos, acontecimento que lhe marcou a história familiar e, é fácil de ver, a escrita. Não se pode dizer que as maiores figuras de referência saiam muito bem tratadas nos seus livros: se as mães desapareceram, por um motivo ou outro, os pais são emocionalmente limitados, absorvidos pelas suas ocupações ou pela luta diária da sobrevivência. Ainda assim, ela evita juízos fáceis, mostrando que as pessoas nunca são uma só coisa e temperando a complexidade dos sentimentos com humor e ternura.
Uma galeria de excêntricos
O contraponto afectivo a esta realidade pouco promissora é dado não só pelos animais, como por outras personagens capazes de criar laços genuínos de amizade – também elas assombradas pelos fantasmas da solidão. Em
Por Causa de Winn-Dixie, temos Miss Franny Block, a velha senhora «casada» com a sua biblioteca; Gloria Dump, uma negra quase cega com um passado pouco ortodoxo; e Otis, que trabalha numa loja de animais e prefere a música às palavras. Em
A Libertação do Tigre, há Willie May, cujas feições lembram a actriz Halle Berry, mas que limpa quartos no motel Estrela do Kentucky; e há, sobretudo, Sistina Bailey, uma menina esperta e orgulhosa do seu nome, revoltada por ter mudado de casa (“Esta é uma cidade parola e estúpida, com professores parolos e estúpidos. Ninguém nesta escola toda sequer sabe o que é a Capela Sistina.»), e que também vive com os seus «tigres» por libertar.
O que tem em comum esta irmandade de excêntricos e inadaptados, tão bem decalcada do imaginário do Sul profundo? Entregues a si próprios, carregam o peso das memórias vividas e o esquecimento da América super-desenvolvida; pertencem à estirpe dos sobreviventes, não dos vencedores predestinados. Acima de tudo, contam consigo mesmos para se salvarem. Lembram-se do que aconteceu em Nova Orleães? Foi mais ou menos assim.
E quanto à
Lenda de Despereaux, «a história de um rato, uma princesa, uma colher de sopa e um carrinho de linhas»? Publicado nos Estados Unidos em 2003, vendeu um milhão de exemplares e recebeu o prestigiado prémio Newberry para o melhor livro infanto-juvenil de 2004, tornando-se rapidamente um «favorito» de escolas e bibliotecas graças ao seu potencial narrativo e simbólico. Para quem leu os dois títulos anteriores, a primeira reacção pode ser de estranheza. Desta vez, os cenários mudaram: não há parques de caravanas, motéis e cafetarias, bosques e estradas secundárias, mas sim um tempo e espaço localizados na pura fantasia, de cujo interior Kate DiCamillo fez nascer uma sofisticada intriga. O universo animista da autora expandiu-se e colocou um rato no lugar de protagonista – mas o seu nome, Despereaux, é já um sinal inequívoco de que também ele pertence à raça dos sobreviventes.
Primeiro, Despereaux enfrentará a traição da família dos ratos; depois, as terríveis ratazanas dos subterrâneos do castelo. Pelo meio, encontrará uma princesa chamada Ervilha, uma criadita que quer ser princesa e um rei que governa o reino com soberana e majestática apatia. E ainda uma ratazana com nome renascentista, tocada pela visão da luz e pela ideia do sublime, que é o exemplo dessas personagens «más» de quem só apetece gostar. E mais não se pode dizer, a bem da surpresa do leitor. Despereaux, o último (e o único) da ninhada, vai ter de provar que merece ter ficado para contar a história.”
O trailer do filme
pode ser visto aqui.