sexta-feira, 31 de outubro de 2008

PASSADA TODA A PAIXÃO


No dia em que esta fotografia foi tirada – em 1999 ou 2000 – estava ainda apaixonada pelo jornalismo. Ou acreditava que sim. Por isso, quando o Vasco Ferreira, designer e director de arte, me pediu que escolhesse um livro importante para ilustrar a ideia do projecto Microart, não pensei muito. Houve quem levasse Stendhal e outros clássicos respeitáveis, mas o livro da minha vida naquele momento era um relato sufocante e cruel da guerra nos Balcãs: Territorio Comanche, de Arturo Pérez-Reverte.

Sem querer, reencontrei ali o nome do repórter morto a sangue-frio na Nicarágua, uma imagem que me marcou na infância, quando a televisão era a preto e branco. Chamava-se Bill Stewart e foi assassinado a 20 de Junho de 1979, soube agora o dia exacto pelo YouTube. Sem querer, li a descrição do abandono dos velhos no asilo de Petrinja, das caras dos miúdos acossados pelo medo, dos morteiros apontados às filas do pão, dos tiros decisivos em Sniper Avenue. “El horror puede vivirse o ser mostrado, pero no puede comunicarse jamás”, escreve Pérez-Reverte, que há muito se cansou do jornalismo, na página 119 da edição da Ollero & Ramos. Para concluir, um pouco mais à frente: “A partir de los quarenta, en este oficio te vuelves condenadamente viejo.”

Nunca teria tido estofo para pôr um pé na guerra, mas também não presto total reverência a um género de jornalismo que comporta a sua dose de competição e picardias, como Arturo Pérez-Reverte também descreve. A minha visão idealizada da profissão terminou depois de ter visto, lido e ouvido o suficiente para perceber esse tipo de fraquezas, e a partir daí (ou seja, muito cedo) foi como viver um casamento feito de altos e baixos, oscilando entre a paixão e o pragmatismo.

Às vezes penso que nunca quis ser jornalista. No princípio de tudo, na escola secundária Padre António Vieira, aprendi português, história e latim com professores excelentes, antigos alunos e alunas de David Mourão-Ferreira, Oliveira Marques e outras sumidades. Aprendi muito. Mas a professora que eu mais admirava era jornalista, uma das fundadoras da TSF. Usava o cabelo solto, comprido, vestia calças de ganga justas, blusões de couro e andava invariavelmente com botas de salto alto. No meio daquelas senhoras de saia-casaco e professores de gravata, ela era cool, estupendamente cool. E eu queria ser como ela. Gostava de escrever e tinha curiosidade pelo mundo, achei que era o suficiente. Demorei muito tempo a perceber que era mais fácil escrever bem do que ser cool. E mais tempo ainda até perceber que, afinal, desde o início, talvez não estivesse apaixonada pelo jornalismo, mas pela literatura. E essa terá sido a principal razão por que escolhi naquele dia um livro chamado Territorio Comanche.

UMA NOVA REVISTA


Mafalda Lopes da Costa, jornalista e directora da LER entre 2000 e 2006, está à frente de uma nova revista de informação geral em que o fotojornalismo ocupa parte de leão. Chama-se iMAG. O lançamento está marcado para dia 11 de Novembro, no Museu da Electricidade, onde um painel de oradores composto por Mário Soares, Cândida Pinto, Rui Ochôa e a própria directora da revista debatem o tema “A imagem da notícia”. Quem vá à espera do cocktail do costume, prepare-se para uma discussão que se prevê interessante e controversa.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

QUANDO OS ESCRITORES VENDEM

O tempo convida a trabalhar em casa (aí está uma das vantagens de ser freelancer…), mas nunca me perdoaria ter perdido os títulos da imprensa de hoje. É um dia grande para a literatura portuguesa. Na Sábado, Miguel Esteves Cardoso faz capa com “O álcool, a droga e a nova vida”. O canto superior esquerdo da fotografia provocou-me uma sensação de déjà vu, mas não digo mais nada… Adiante. “Sousa Tavares ameaçado por 200 estivadores de Lisboa”, título do 24 Horas, excelente material de trabalho para um próximo gag dos Gato Fedorento. Por fim, a Visão, “Sobreviver a um AVC”, com a queridíssima Margarida Rebelo Pinto e o seu eterno sorriso postiço. Margarida diz que o AVC a fez «perder a paciência para o que não é importante», para redescobrir “as coisas boas da vida” e tornar-se “mais disponível para os outros”. Será esta a mesma Margarida que no Expresso desta semana se assumia “snobe e elitista” e detestava “aquelas pessoas que dizem vermelho e bom apetite” (e também, presumo, as que dizem “prenda”, “vivenda” e cumprimentam com dois beijos?). Claro que sim. Quando se trata de cuidar da imagem, há que saber o que dizer na altura certa, até porque a Margarida tem, diz ela, “uma intuição filha da puta! (no bom sentido)”. Nem quero imaginar o que seria no mau sentido. Mas sempre gostava de saber que critérios editoriais presidem a um artigo sobre acidentes vasculares cerebrais que abre com uma fotografia de página dupla (!) da autora de Sei Lá, bem penteada, maquilhada e vestida de vermelho (perdão, encarnado!), quando os outros entrevistados aparecem todos com um ar tristonho e combalido. Caramba. Até parece que estão doentes.

NATIONAL CATOGRAPHIC MAGAZINE


Uma das coisas boas e inesperadas que este blogue me trouxe foi conhecer o trabalho da Susana Neves, que é muito mais do que jornalista (vai colaborar com a LER em breve). Além de escrever – é autora de biografias de Eduardo Nery e Fernando Assis Pacheco e tem vários contos publicados –, a Susana é uma daquelas pessoas “multicriativas” (não gosto da palavra “multifacetada”, lembra-me uma aula de geometria descritiva) que tem feito exposições de fotografia, desenho, pintura e escultura, além de saber dançar flamenco e dominar a arte de inventar bons títulos. Por exemplo: “Viagem ao Polén Sul”, “O Grande Descobridor de Pinguins”, “A Noiva do Campo Mil” ou “National Catographic Magazine”. Este último é, precisamente, o nome da exposição de fotografia que está ainda na Galeria Diferença, até 8 de Novembro. Fotografias de gatos que se aproximam mais do poema de Baudelaire do que de outra coisa já inventada. Longe da influência dos mestres e a anos-luz dos clichés de calendários, a Susana quis fotografar gatos como se mergulhasse num campo selvagem de relva e flores, provocando essa capacidade de “alucinar no pormenor”, uma expressão que recordo das aulas de Emídio Rosa de Oliveira. Foi um trabalho não invasivo que exigiu doses ilimitadas de tempo e paciência, até ao ponto em que os gatos entendessem a câmara como uma extensão da mão. A Susana tem estudado a semelhança de formas entre os reinos animal e vegetal, e “National Catographic Magazine” é prova disso, juntando duas séries de imagens: “O Acelerador de Gatículas” e “O Rei Comprido”. Antes de ir ver a exposição, dei voltas à cabeça a tentar descobrir a que parte da anatomia do gato correspondia a fotografia acima, até perceber que era uma flor. Mas também podia ser uma daquelas figuras longilíneas de Moebius, um “rei comprido” dos Jardins de Edena ou de outro planeta mítico. Para ver na Galeria Diferença, Rua S. Filipe Neri, 42 cave (ao Rato), em Lisboa. De terça-feira a sábado, das 15H00 às 20H00.

O Arte Photographica também escreveu sobre o assunto. Para ver também, o blogue da Susana Neves: Quando o Rei Era Sabão. Estão ambos aqui ao lado, na lista dos preferidos.

EU CANTO O GATO ELÉCTRICO


(...)
Lorsque mes doits caressent à loisir
Ta tête et ton dos élastique,
Et que ma main s’enivre du plaisir
De palper ton corps électrique,
(...)

Do poema Le Chat, de Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal), para fotografia de Susana Neves, da série "O Acelerador de Gatículas".

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

terça-feira, 28 de outubro de 2008

HISTÓRIA PARA CRIANÇAS DE JAMES JOYCE


James Joyce também escreveu um livro para crianças; ou melhor, escreveu uma história dedicada ao neto, Stephen James Joyce, que incluiu numa carta enviada de Villers-sur-Mer (França), com data de 10 de Agosto de 1936. Mais tarde foi transposta para livro e publicada na Grã-Bretanha pela Faber and Faber, em 1965. Chama-se The Cat and the Devil e a edição original não é fácil de encontrar, ao que me explicaram no James Joyce Centre, em Dublin (está neste momento à venda um exemplar na Amazon por 76 libras). Ali, no meio de uma série de livros joyceanos para serem lidos e manuseados à vontade, encontra-se uma versão muito mais recente, com ilustrações de Roger Blachon. O conto de O Gato e o Diabo, de matriz popular, conhece inúmeras versões, incluindo em Portugal. É a velha história de como os homens conseguem enganar o Diabo, com um pouco de vigarice e esperteza saloia. Começa assim: “My dear Stevie…”

Havia uma cidadezinha medieval na margem do Loire chamada Beaugency, onde os habitantes pareciam viver felizes e tranquilos. Só lhes faltava uma coisa: uma ponte para atravessar o rio. Assim que o Diabo soube (porque o Diabo “está sempre a ler jornais”, lembra Joyce), foi ter com o emproado presidente da Câmara, a quem prometeu construir a ponte numa só noite. E quanto dinheiro queria por isso? Nenhum. Só a alma da primeira pessoa que por ali passasse. Muito bem, disse ele, todo contente. No dia seguinte a ponte estava construída, mas ninguém se atrevia a atravessá-la, porque o Diabo também lá estava de pé firme. Chegou então o Presidente da Câmara, com um gato ao colo e um balde de água, que despejou em cima do animal, fazendo-o correr disparado em direcção aos braços do Diabo. E o Diabo ficou zangado; não com o gato, a quem tratou como gente, mas com a falta de palavra do povo e do presidente da Câmara de Beaugency.

PS - A partir daí, o Diabo nunca mais quis ajudar em obras públicas. É isso que explica por que razão estas demoram tanto tempo a ser concluídas. Esta história também desmente o dito popular segundo o qual os animais, “tirando a alma, são como nós”. Na verdade, são melhores do que nós.

COMUNIDADE DE LEITORES


Só uma razão tão forte como esta me levaria a desistir da Comunidade de Leitores da Culturgest. Gosto do estilo da Helena Vasconcelos, que trata a literatura e os escritores com respeito, mas sem reverências, como se tratam as pessoas de quem gostamos. O tema em debate desde Setembro é “Arte e Literatura”. Na próxima quarta-feira fala-se do Retrato do Artista Quando Jovem. E logo agora que vim de Dublin e ainda tenho as impressões digitais do piano de Joyce no Writer’s Museum. Oh, well…

Vou ter saudades desta família de leitores. Não conheço mais nenhuma, mas somos felizes à nossa maneira.

(na imagem, uma comunidade de Chorisia crispiflora, a árvore da sumaúma, num jardim de Valencia)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

sábado, 25 de outubro de 2008

FUTURO JORNALISTA DE VIAGENS


Desta vez, foi a turma do 4º ano da Escolinha de Famalicão que me enviou por correio uma colecção de óculos imaginários. Há modelos desportivos (óculos para ir ao estádio de Alvalade, para ter pontaria na marcação de livres, para andar de patins…), modelos intelectuais (óculos para poder ser muito inteligente e saber as letras todas), modelos fantasiosos (óculos para poder voar, para ver tudo florido, para falar com os animais…) e outros mais difíceis de classificar, como os do António Manuel, que desenhou uns óculos com muitas bolas de espelhos e colunas de som, “para poder estar numa discoteca e beber Ice Tea”. Também gostei muito do que escreveu o Helder: “Eu queria ter uns óculos para ver o mundo!!!”. Assim mesmo, com três pontos de exclamação. E nem se esqueceu de desenhar as luas por cima das lentes em forma de globo terrestre.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

LETRA PEQUENA EM BLOGUE
Estava anunciado mas agora é oficial: Letra Pequena está a partir de hoje na blogosfera. "É um blogue (quase sempre) sobre livros para crianças e jovens", explica a Rita Pimenta. Ora, era isso mesmo que a gente queria.

ONDE SONHAM AS CASAS


O post anterior fez-me lembrar um texto das Coisas que Fascinam, precisamente dedicado aos sótãos: “Onde Sonham as Casas”. Foi publicado na Notícias Magazine em Julho de 2002. Ainda gosto muito dele:

“(…) Cativo do imaginário infantil, o sótão é um espaço que interroga continuamente, acima de outras vivências quotidianas. No resto da casa alimentam-se as dinâmicas de socialização, vive-se a um ritmo partilhado de ideias, emoções e responsabilidades. Pelo contrário, o sótão envolve a experiência do navegador solitário em busca de silêncio e quietude. Há qualquer coisa de porão de navio, por baixo desta ossatura amplamente inteligente… e de destino alcançado, ao mesmo tempo. Se as traves de madeira evocam o cavername da embarcação, todos esses objectos e papéis acumulados, anos e anos, compõem um cenário de naufrágio que reflecte a história pessoal de cada um de nós. (…)”

PS – As ilustrações da primeira série das Coisas que Fascinam, iniciada em 1996, eram da Fernanda Fragateiro, que depois passou o testemunho ao José Fragateiro. É ele o autor deste retrato – quase a sépia – dos sótãos do meu imaginário. Sei que as cores não estão uniformes, mas é mesmo um problema de impressão. E das relíquias jornalísticas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

QUE SEI EU DO JORNALISMO?


Podem acontecer coisas destas quando os livros emigram para o sótão, à falta de espaço e de uso quotidiano. Ali, no canto inferior direito, está a prova do que os meus gatos pensam do jornalismo. Eles não fizeram por mal. Apenas não conseguem distinguir um bom caixote de cartão das páginas da colecção Que sais-je? Gostos à parte, é verdade que a profissão anda um bocado roída.

ANIMAIS, NÚMEROS E VALORES


- para 65,8 % dos portugueses, os animais em Portugal não são “nada protegidos”;
- para 50,5%, seria “muito importante” ter uma nova lei que os protegesse, enquanto 39,7% considera “importante”;
- para 50,5%, as touradas devem ser proibidas por lei;
- para 51%, a criação e morte de animais com vista à utilização do pêlo deve ser também proibida por lei;
- para 78,2%, as câmaras municipais devem investir na esterilização de animais errantes;
- para 79,9%, deve haver uma lei que proteja os animais usados para a alimentação, na forma como são criados, transportados e mortos.

Extractos de uma sondagem encomendada pela ANIMAL e coordenada pelo ISCTE, em 2007 (“Valores e Atitudes face à Protecção dos Animais em Portugal”). A síntese dos resultados pode ser lida aqui.

OS MESMOS 18 MIL DO COSTUME


O grau de civilização de um país mede-se pelo estado das suas casas de banho públicas e pela forma como trata os animais. Não só, mas também. Em ambos os casos houve progressos, apesar de tudo. A “crise” tem costas largas, tanto para justificar abandonos e negligências, como para dar pão e circo ao povo, mantendo-o entretido com rodeos e parvoíces afins. Os que já se cansaram destas touradas não são “sempre os mesmos vinte ou trinta” de que falava o senhor Rui Bento, programador tauromáquico do Campo Pequeno, em entrevista recente à Notícias Magazine. Ficámos a saber, por exemplo, que “o artista vê o touro como colaborador e não como um inimigo”. O “artista”, claro, é o toureiro; o outro é o touro, que além de “colaborador” é suicida. Estamos entendidos quanto ao estado civilizacional do homem.

Por esta hora, a Associação ANIMAL estará a entregar no Parlamento uma petição com 18 mil assinaturas que subscrevem um novo código de protecção aos animais, o mais completo e avançado alguma vez proposto em Portugal. O documento, também da responsabilidade da ANIMAL, deixa metade da papinha feita aos grupos parlamentares presentes na Assembleia da República. É bom que façam o resto. Notícia do Público.pt aqui.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

REGRESSO ÀS AULAS


Começa hoje o primeiro curso de Pós-Graduação em Livro Infantil da Universidade Católica. Estou muito contente por voltar à escola.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

VINTE ANOS DEPOIS, É ASSIM


A placa azul que dizia Essex Street West desapareceu. A rua já não é de sentido único e tem candeeiros novos. As velhas casas e armazéns, substituídos por apartamentos da upper class, exibem automóveis de alta cilindrada estacionados à porta. O único elemento que se mantém é a firma Kennan and Sons, uma das mais antigas de Dublin, agora transformada no Contemporary Music Centre. A rua fica nos limites do Temple Bar, o equivalente ao Bairro Alto ou à Ribeira, e a dois passos turísticos das catedrais de Christ Church e St. Patrick's. Estive muito perto, mas não a consegui reconhecer. Um homem de uma casa de ferragens, que sorriu depois de lhe ter mostrado a fotografia de há vinte anos, ajudou-me a descobri-la. Foi fácil. Quando a encontrei, perdi-a para sempre.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

À PROCURA DE UM QUASE NÃO-LUGAR


Nada nos move mais do que uma ideia. Quando fui pela primeira vez à Nova Zelândia, tinha um único propósito em mente: conhecer os meus antípodas. Ir ao outro lado do mundo, real e simbólico, para encontrar aquele ponto imaginário onde os extremos se tocam. A ideia dos opostos complementares é um tema caro ao Romantismo (sobre o qual escreveram Hoffmann, Chamisso ou Andersen), mas não escondo as minhas obsessões. Claro, tornou-se difícil explicar; daí que, para a maior parte das pessoas, eu terei ido à Nova Zelândia por causa das paisagens e dos cenários de O Senhor dos Anéis. No worries, mate.

Esta fotografia de Dublin dá para as traseiras dos prédios, numa rua de sentido único. O negócio de família, uma fundição cujo nome deixou cair algumas letras, parece ter-se esgotado. É quase um não-lugar onde nada se passa, ninguém passa. Cinzento e triste, para alguns pontos de vista, porventura indiferentes ao charme da decadência. Gostava de saber como estará agora. Vou à procura desta imagem que registei há vinte anos. É uma ideia que me (co)move. Até já.

CITY-BREAKS: DUBLIN


Há vinte anos era assim. As fotografias trazem-me apenas a vaga memória da dear dirty Dublin de James Joyce, onde fui parar a meio de uma viagem de Inter-rail. Lembro-me melhor da travessia de barco entre França e o sul da Irlanda, dezassete horas de enjoo num ferry-boat ronceiro e apinhado de passageiros que ficariam bem em qualquer episódio da série Little Britain. Sim, dezassete longas horas de balanço sórdido, capaz de revoltar qualquer estômago. Mas o que era isso, comparado com a fabulosa evidência de estar fora de casa, fora de si, fora de tudo? Não, não era assim tão bom. A nostalgia é amiga íntima da mitificação. Fiz dois Inter-rails de mochila às costas, apanhei framboesas na Escócia e feijão-verde em Inglaterra, lavei pratos num hospital psiquiátrico em Worcester e dormi em Victoria Station, pontualmente acordada pelos polícias. Coisas normais da idade. Luxo eram as casas de banho dos comboios do norte da Europa, onde quase se podia tomar banho, e um almoço no ainda exótico McDonald's, para variar das sanduíches de queijo ou fiambre. Agrada-me ter feito tudo isso na altura certa, mas tenho bem presente a inquietação que sobrava dessa liberdade à deriva, incapaz de se apaziguar sozinha, incapaz de se consolar com livros e paisagens e catedrais e alegres mercados de rua. À distância, não tenho dúvidas: as melhores viagens que fiz foram as últimas. E, acima de tudo, as que ainda faltam fazer.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

VOTO NA CONCORRÊNCIA


A Câmara Municipal da Amadora, que não deve actualizar os ficheiros há muito tempo, enviou-me a ficha de voto para os prémios nacionais de banda desenhada. A 19ª edição do festival acontece entre os dias 24 de Outubro e 9 de Novembro. Não percebo mais do que o trivial de banda desenhada, mas fiquei contente por o Não Quero Usar Óculos estar nomeado na categoria de Melhor Ilustração para Literatura Infantil (vénia ao André Letria...). Por razões óbvias, estou excluída do voto egoísta. Em consciência, elegeria as ilustrações de Bernardo Carvalho para O Mundo num Segundo (Planeta Tangerina), um livro de que já falei na secção “Leituras Miúdas” da LER nº72. Justifico assim o meu voto na concorrência:

“Aliando uma poética do tempo e do espaço, O Mundo num Segundo é uma espécie de figuração do «momento decisivo» de Henri Cartier-Bresson – mas com ilustrações no lugar da fotografia. «Cada vez que um segundo atravessa o mundo (sempre a correr, sempre apressado), milhões de coisas acontecem, aqui, ali, em todo o lado…», lê-se, no início desta viagem. Argentina, México, Angola, Turquia, Grécia, Rússia, Papua Nova Guiné… Por vezes, um segundo é suficiente para alterar a ordem habitual das coisas; outras, nem um arranhão é sentido à superfície. Quando em Miskole, na Hungria, uma mulher deixa cair no passeio um envelope com «qualquer coisa muito importante», o mesmo segundo mostra-nos que «o tempo parece parar numa aldeia marroquina». Até à última página, marcada por um surpreendente efeito de mise en abîme, é toda a diversidade do mundo que se apreende e se imagina. Um pequeno livro com possibilidades de interpretação ilimitadas."

MUITO BOM


Com os devidos agradecimentos ao Luís Costa Dias.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

HORSES IN MY DREAMS


"Horses In My Dreams", P.J. Harvey (Stories From the City, Stories From the Sea). Fotografia de Guto Ferreira.

PUBLICIDADE

Acaba de me chegar ao correio electrónico a newsletter de um conhecido banco português. Tropeço involuntariamente num teaser: “Existem cada vez mais alternativas para aqueles que querem rentabilizar ao máximo o potencial das suas poupanças, sem para isso sacrificarem os seus princípios.” Clico para saber mais. Falam de investimentos em empresas amigas do ambiente e por aí fora. Fico descansada. Por momentos, pensei que se tratasse de um novo tipo de publicidade confessional.

O COELHO QUE SAIU DA LURA


Também na Lura dos Livros (já agora, “lura” é a toca que o coelho escava na terra) descobri Emily Gravett, escritora e ilustradora inglesa que entrou directamente para o meu top. Só havia dois livros, qual deles o melhor: Wolves e Little Mouse’s Big Book of Fears. Vou aproveitar a incursão a Dublin para tentar encontrar mais. Quem tiver curiosidade pode espreitar o site, que está muito bem feito (apesar de a seta que indica “enter” nem sempre aparecer, não se percebe porquê… mas vale a pena insistir).

A VIDA INTERIOR DAS GÁRGULAS


“During David Wiesner's formative years, the last images he saw before closing his eyes at night were the books, rockets, elephant heads, clocks, and magnifying glasses that decorated the wallpaper of his room. Perhaps it was this decor which awakened his creativity and gave it the dreamlike, imaginative quality so often found in his work.”

Em Tavira, este Verão, passei por A Lura dos Livros, uma livraria de autor que não me importaria de ter ao pé de casa. Na secção de livros para crianças, maioritariamente composta por obras em inglês, encontrei preciosidades raras – algumas, a preço de saldo. De David Wiesner, autor norte-americano por três vezes contemplado com a Caldecott Medal, conhecia apenas Tuesday, evocação de um fenómeno da natureza que acontece quando furacões ou tornados levam coisas ou animais em viagens inesperadas (lembram-se da chuva de sapos em Magnólia? É isso). Night of the Gargoyles mantém as qualidades cinematográficas e pictóricas que distinguem o estilo de Weisner, e o texto com ressonâncias góticas de Eve Bunting assenta-lhe na perfeição. Porque as gárgulas também ficam bem no Jardim Assombrado, aqui fica um excerto desta secretíssima vida interior:

It’s almost morning now
and so the gargoyles fly,
or wingless crawl
up walls
as spiders do.
They take their corners
quietly
and stare
and stare
their empty eyes unblinking
till night comes.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

GEORGE STEINER SOBRE OS ANIMAIS


Do conjunto de ensaios reunidos por George Steiner em Os Livros Que Não Escrevi (Gradiva), houve um que me comoveu especialmente: Do Homem e do Animal. Steiner fala de um mundo em que os animais se tornaram “vítimas e escravos dos homens”, presas fáceis de uma violência que tem oscilado entre a obscenidade do massacre e a precisão cirúrgica do sadismo. Dos nossos aviários às quintas de peles na China vai apenas um passo de inconsciência.
“Não há, como já disse, um recanto da Terra onde, todos os dias e a todas as horas, os animais não sejam espancados, obrigados a trabalhar dolorosamente até à morte ou caçados por divertimento (…). É como se o homem estivesse possuído pela vontade de apagar todos os vestígios que possam restar de um paraíso perdido. Esses vestígios parecem trazer-lhe a recordação insuportável de uma perda primordial da inocência, de um tempo de camaradagem universal.” Para Steiner, a atenção crescente aos direitos dos animais está entre as “poucas conquistas morais da modernidade”, e isso é dizer muito. As contradições que assume são, afinal, as de gente como nós: “Como carne. Beneficio dos progressos médicos associados às experiências feitas em animais.” O livro que lhe faltou escrever implicaria enfrentar essas contradições e aproximar-se de inúmeras fórmulas do sofrimento, o equivalente a fazer “uma introspecção sem contemplações”. Como Steiner, também a maior parte de nós não tem “estômago para tanto”.

domingo, 12 de outubro de 2008

NÃO QUERO USAR ÓCULOS EM LILLIPUT

Entrevista de Sandy Gageiro na Antena 2. Para ouvir em podcast, aqui.

DUAS ÁRVORES GENEROSAS

A Bruaá, que este ano traduziu e publicou o belíssimo A Árvore Generosa, de Shel Shilverstein, foi desencantar um vídeo onde o escritor “canta” (ouçam e já percebem o sentido das aspas) em dueto com o grande Johnny Cash. Ia-me dando uma coisa. Boa, pois claro.

AN AFFAIR TO REMEMBER


Quando a Vanity Fair lhe perguntou qual era o grande amor da vida dele, Edward Gorey (a quem não se conheciam namoradas nem namorados) respondeu, simplesmente: “Gatos.” Na Elephant House, nome que deu à sua casa em Yarmouth Port, Cape Cod, viveram dezenas de felinos que dominavam o espaço com a liberdade nunca autorizada a qualquer humano. Era frequente saltarem para a secretária e passearem-se sobre as ilustrações, por vezes arruinando horas de esforço, com o beneplácito do autor. Gorey gostava de todos os animais, que acabaram por se tornar os grandes beneficiários do seu testamento. O que incluiu desde associações de defesa de cães e gatos abandonados até outras mais bizarras como a Xerces Society e a Bat Conservation International, protectoras de invertebrados e de morcegos, respectivamente. Era um tipo estranho, mas de uma estranheza admirável.

Na imagem: Mini, a coquette. Uma das presenças habituais nas redondezas do Jardim Assombrado. Fotografia de Guto Ferreira.

sábado, 11 de outubro de 2008

A DREADFUL DOMESTICITY


"A Dreadful Domesticity", The Tiger Lillies/Kronos Quartet (The Gorey End).
Fotografia de Guto Ferreira.

BEM-VINDO, MR. GOREY


“Aparentemente, não houve nada de dramático na infância e adolescência do autor de The Gashlycrumb Tinies, a história em forma de alfabeto em que 26 personagens de crianças são implacavelmente eliminadas com uma só frase mortífera – desde «A» de «Amy que caiu das escadas» até «Z» de «Zillah que bebia demasiado gin». As primeiras leituras de Gorey (que aprendeu a ler sozinho aos três anos e meio) terão preenchido, pela imaginação, o vazio da normalidade quotidiana. Drácula, Frankenstein, Alice no País das Maravilhas e toda a obra de Victor Hugo foram devorados até aos oito anos. Solitário, ma non troppo, ele próprio confessou depois a um jornal que, embora gostasse de se imaginar como um miúdo «sensível e pálido», era mais do género de brincar na rua e fazer coisas inesperadas. Uma colega da escola secundária contou como, um dia, Gorey pintou de verde as unhas dos pés e andou a passear descalço pela rua, causando o efeito que se imagina. Esse sentido de humor provocatório e totalmente nonsense acompanhou-o a vida toda, entranhando-se nos mais de cem livros que escreveu e ilustrou. Combinado com um gosto pelo macabro e por um certo lirismo perverso e erudito, produziu uma obra difícil de classificar, que tem fascinado adultos e crianças.” (Notícias Magazine)

Hoje, na Antena 2, por volta das 17h45, Sandy Gageiro e “Lilliput” entram na casa-museu do escritor e ilustrador Edward Gorey, em Cape Cod, EUA. Ela conseguiu ouvir-lhe a voz. Eu não tive essa sorte. Rádio – 1 /Imprensa – 0. Para fazer o download do artigo publicado na Notícias Magazine clique aqui.

DAQUI A UMA SEMANA...


… estarei em Dublin, para um pequeno city-break. Não volto lá desde o primeiro Inter-Rail, algures em 1988 ou 89, tempo suficiente para reconhecer praticamente nada. Quinze anos depois deste número especial da GEO, será que o título do artigo ainda se aplica? “Dublin est peut-être un paradis”? A ver vamos. A revista foi-me oferecida pela Mónica Marques em 1993, quando trabalhávamos no SE7E. No outro dia, de repente, bateu um calorzinho bom aqui no Jardim Assombrado. Era o SushiLeblon, do outro lado do oceano. A blogosfera também serve para matar saudades. Here’s looking at you, kid!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

PORQUE ESCREVO


Se tiver de resumir tudo numa frase: escrevo para recuperar a minha infância.

Escrevo para voltar a ver as cores daquela salamandra que encontrei debaixo de uma pedra, na leira pequena. Escrevo para me lembrar de como era bom e proibido arrancar as crostas do joelho esfolado. Escrevo para trazer à boca o sabor das romãs, dos pêssegos de roer e das maçãs verdes. Escrevo para me deitar ao sol no penedo ao lado da casa, onde musgos e líquenes cresciam como bosques ínfimos. Escrevo porque nunca tive uma casa na árvore, mas todas as bolotas e bugalhos eram meus. Escrevo porque quando fecho os olhos vejo a águia ibérica do Félix Rodríguez de la Fuente a voar por cima da minha cabeça. Escrevo para não me esquecer de que sei assobiar. Escrevo porque não acredito que Miguel Strogoff ficou cego e que a Pérola de Labuan tenha morrido envenenada. Escrevo porque sei que nunca hei-de ter um amigo tão leal e valente como Tremal Naik. Escrevo para ter a certeza de que não está ninguém atrás de mim quando leio o livro de S. Cipriano e para não ter medo de atravessar o corredor onde a luz nunca se acende. Escrevo para ouvir tocar os sinos da igreja de Matosinhos e correr no adro onde os plátanos se despenteavam no Inverno. Escrevo para voltar a calçar as minhas sandálias vermelhas e ir à praia, onde todos os dias faço e desfaço a minha cabana de toalhas. Escrevo porque não há nada melhor do que beber leite com chocolate por uma palhinha depois de voltar do banho. Escrevo porque hoje o meu avô vai levar-me à Obra do Padre Grilo e comprar-me uma rifa que talvez traga um brinde, uma caneta ou algo assim importante. Escrevo porque nunca me canso de o ouvir contar a história da Nau Catrineta, sobretudo aquela parte que diz “vejo sete espadas nuas que estão para te matar” e que eu não entendo, não entendo como é que as espadas podem estar nuas mas arrepia-me na mesma e quero que ele conte tudo outra vez.

Não sei se te respondi, miúdo.

ROBERT LOUIS STEVENSON


E este é o meu Rei de Copas.

EDGAR ALLAN POE


Este é o meu Rei de Espadas.

ESCAPE IS SO SIMPLE


"Escape is So Simple", Cowboy Junkies (The Caution Horses).
Fotografia de Guto Ferreira.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

ESCREVES PORQUE GOSTAS OU PORQUE TE DIVERTES?

Eles não sabem, mas quando vou a escolas ou a bibliotecas falar dos meus livros, fico ansiosa pelas perguntas. É a parte de que mais gosto, aquela em que espero ser surpreendida. Às vezes, não sei bem como responder aos miúdos: isso agrada-me profundamente. Aprendo com as minhas hesitações e silêncios. Eles perguntam-me tudo. Se sou casada. Se tenho filhos. Se tenho irmãos. Quantos anos tenho. Onde é que moro. Quantos livros já escrevi (várias vezes). Por que é que a Rainha Só nunca saiu do castelo? O que era “aquilo” que não se pode nomear? Começo a distinguir facilmente as perguntas que são feitas com a ajuda dos professores – para fazer “boa figura” – e as que surgem naquele instante, num assomo de espontaneidade e coragem. Nas primeiras, eles desinteressam-se e desviam o olhar quando ainda vou a meio da resposta; nas outras, fixam-me como se não admitissem mais mentiras piedosas. Eu sei. Às vezes, ser adulto é uma tristeza, um teatrinho de pechisbeque. Quando aquele miúdo me perguntou, num repente – “Escreve porque gosta ou porque se diverte?” – eu fiquei a olhar para ele com cara de peixe congelado. Diz lá outra vez: escrevo porque gosto ou porque me divirto? Hummm… Deixa-me pensar. Só quem tem ainda o sentido lúdico da vida muito apurado é que consegue distinguir assim uma coisa da outra. Sacana do puto.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

AINDA SOBRE EPC


Um leitor do Jardim Assombrado enviou-me um email a perguntar por que razão foi para Vila Nova de Famalicão a biblioteca pessoal de Eduardo Prado Coelho. Conto o que me explicou Artur Sá da Costa, director do Departamento Educativo e Cultural do município. É uma sucessão de coincidências com o seu quê de estranho. Jacinto do Prado Coelho, pai de EPC, foi agraciado com o Prémio Casa de Camilo em 1984, mas morreu antes de poder ir a Famalicão recebê-lo, pelo que EPC foi em seu lugar. A ligação afectiva terá começado aí, provavelmente. To cut a long story short, sabe-se que era vontade do escritor e ensaísta, falecido o Verão passado, que o seu espólio bibliográfico fosse doado a uma biblioteca municipal do país. Houve outra possibilidade além de Famalicão, mas não foi garantida a condição de manter a integridade do conjunto, prevendo-se que este se distribuísse pelo catálogo geral já existente. Ora, o que faz com que EPC continue vivo na sala a que foi dado o seu nome, é justamente a presença íntegra e comunicante dos seus livros mais amados, sejam estes de filosofia, linguística, filologia, ciências sociais, literatura, fotografia, cinema, pintura ou artes plásticas. São cerca de dez mil volumes, entre monografias e colecções periódicas, a que todos os leitores têm agora acesso. Caberiam muitos mais, dentro de uma vida tão completa, mas o desprendimento de EPC fez com que amigos e conhecidos guardem agora muitos dos títulos que lhe vieram parar às mãos ao longo dos anos. E sabe-se que há mais uns 40 caixotes arrumados numa garagem, que a seu tempo encontrarão ali o seu lugar.

Entretanto, a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão decidiu lançar, ainda este ano, o Prémio Literário Eduardo Prado Coelho. Trata-se de um prémio de consagração que vai abarcar as áreas da narrativa de ficção, ensaio e poesia. O valor pecuniário ainda não está definido, mas em breve os responsáveis darão mais pormenores. Fiquem atentos.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

NA BIBLIOTECA DE EDUARDO PRADO COELHO


Tive aulas com Eduardo Prado Coelho na Universidade Nova, numa cadeira opcional de mestrado chamada Estética e Anti-Estética na Arte Contemporânea; nome demasiado longo para um tempo que passava a correr, de acordo com um jeito muito próprio de ensinar passeando, à maneira aristotélica. Desde aí, passámos a cumprimentar-nos nos sítios onde toda a gente se encontra, mas sem ultrapassar a esfera do cordial. Por isso, foi com uma curiosidade não totalmente isenta de culpa que andei pelo meio dos livros da Biblioteca Eduardo Prado Coelho, uma sala da Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco (cujo nome abreviei num post anterior, à conta das pressas), em Vila Nova de Famalicão. Andei por ali um par de horas, folheando mais ou menos ao acaso as páginas que tinham passado pelas mãos dele, procurando datas, sublinhados e anotações, lendo dedicatórias. De José Cardoso Pires, Eduardo Lourenço, Herberto Helder, Mário Cláudio, Vergílio Ferreira, Jorge de Sena, Maria Velho da Costa… e tantos outros. Entre a evidência racional de estar a usufruir de um bem tornado público, graças à generosidade de EPC, e a sensação transgressora de ler palavras pessoais, hesitei e balancei, mas acabei por ilibar-me, em nome do conhecimento. Em todo o caso, desculpe, professor.

FUTURA ILUSTRADORA DE JARDINS


No final da apresentação dos meus livros, as professoras e alunos do 1º ciclo do Lucipi - Externato Particular do Barreiro (ao contrário do que o nome sugere, fica em Vila Nova de Famalicão e não na margem sul...) fizeram-me uma surpresa. Um caderno cheio de óculos desenhados e coloridos por todos os meninos e meninas. Há óculos para ver hamsters, óculos para ver little people, óculos para ver números, óculos para ver estrelas cadentes... A concorrência é séria e foi difícil escolher. Acabei por me decidir pelos óculos da Sara, que escreveu: "Eu quero uns óculos para ver as flores que plantei." Quem é capaz de escolher cores assim, não precisa de lições de design.

domingo, 5 de outubro de 2008

THE SHINING OF THINGS


"The Shining of Things", David Sylvian (Dead Bees on a Cake).
Fotografia de Guto Ferreira.

ESPERAR NÃO É UM VERBO PARADO


Não sei se até ao fim do ano irá aparecer algum livro tão bonito quanto este... O texto está na secção "Leituras Miúdas" da LER nº 73, que espero encontrar amanhã nas bancas.

Eu Espero…
Davide Cali
Ilustrações de Sergi Bloch
Bruaá

Se as ilustrações de The Dangerous Alphabet fascinam pelo seu excesso dantesco, o trabalho de Sergi Bloch em Eu Espero… é um belo exercício de minimalismo eloquente. Simples desenhos a traço negro, próximos do cartoon, subtilmente assinalados por um pedaço de fio vermelho fotografado em cima da página. Este elemento visual é, ao mesmo tempo, o fio condutor da história e a expressão do seu significado maior – o fio de vida, fio vital, fio dos dias. O formato rectangular e alongado, pouco comum, reverte para a mesma ideia de continuidade. Primeiro, nascemos e esperamos crescer. Esperamos que o bolo fique pronto, que a chuva pare, que o Natal chegue depressa. Quando crescemos e tudo se complica, queremos descobrir o fio da meada. A guerra deixa-nos no fio. O amor permite-nos reconstituir a vida, fio a fio. Às vezes ficamos doentes, por um fio. Morrer, é dar os fios à teia. No fim, há ainda muito fio por desenrolar. Quem disse que «esperar» é um verbo parado? Da Bruaá, a editora que este ano nos trouxe A Árvore Generosa, aí está mais um livro precioso para todas as idades.

sábado, 4 de outubro de 2008

DIGAM TODOS: "LILLIPUT"


A Sandy Gageiro, jornalista da RDP que assinou algumas das reportagens do último “Câmara Clara”, onde se falou do Plano Nacional de Leitura, tem uma nova rubrica de rádio dedicada aos livros e autores que (também) escrevem e desenham para crianças. Chama-se “Lilliput” e está incluída no programa “A Força das Coisas”, de Luís Caetano, que passa aos sábados na Antena 2, das 16h00 às 18h00. Não Quero Usar Óculos teve honras de abertura, a semana passada, apesar de alguma gaguez da escritora... Hoje fala-se de Enid Blyton, autora das colecções dos “Cinco”, dos “Sete”, das “Gémeas” e do “Noddy”, entre outras coisas, incluindo os inesquecíveis lanches onde havia chá e sanduíches de pepino, estranheza das estranhezas. Vinda dos arquivos da BBC, a própria Enid Blyton fará uma breve aparição em “Lilliput”, que começa perto das 17h45, mesmo no final do programa. Não vou poder ouvir porque vou andar por aqui. Mas no próximo sábado lá estarei, de ouvido colado à telefonia, para saber como correu a visita à casa-museu de Edward Gorey

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

CITY-BREAKS: VILA NOVA DE FAMALICÃO


A Biblioteca Municipal de Famalicão faz 95 anos e convidou-me a entrar na festa. Tenho um Alfa, sem Romeu, para apanhar não tarda nada. O último a sair, por favor, deixe a chave do jardim no portão. Eu volto daqui a pouco.

Já me esquecia: a imagem acima é da Casa-Museu de Camilo, uma belíssima casa de escritor em São Miguel de Seide, freguesia do concelho de Famalicão. Fotografia de Guto Ferreira.
JORNALISMO DE CAUSAS

Há por aí muita gente que se incomoda com o “jornalismo de causas”. É pena. Eu entendo que os compromissos éticos não se desligam da vida profissional. Sou, tipo, old school. Fico espantada (sim, ainda fico…) quando vejo que notícias destas passam completamente ao lado dos jornais e televisões. Não sei se é a indiferença que dá lugar à preguiça de investigar, se o contrário. Mas também há muita gente que, apesar de incomodada, continua a mexer-se. Sábado, dia 4 de Outubro, é Dia Mundial do Animal. Há uma boa causa para sair de casa. O Blog Animal explica tudo.

GATOS DE LIVRARIAS: FLORBELA ESPANCA


Um jardim sem gatos é um enorme desperdício de espaço. Mas se há outro lugar onde os gatos se sentem em casa é nas livrarias. Porque são criaturas de bom gosto, amantes do sossego e do tempo vagaroso. Uns deixam-se tocar, outros nem tanto, e desandam como quem vai à sua vida. Gato é assim mesmo: sabe quem manda. A Florbela Espanca mora numa livraria das Caldas da Rainha, a Loja 107, e até há algum tempo usufruía da companhia masculina do Gil Vicente. Agora está sozinha. É uma gata reservada e arisca, talvez leia Edgar Allan Poe quando ninguém está a ver. O jardineiro convidado do blogue apanhou-a a olhar para as letras lá fora, que por acaso se juntaram para formar a palavra G-A-T-U.

Quem conhecer mais gatos de livrarias pode escrever para o email do jardim: cmaia.almeida@netcabo.pt.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

INNER CITY BLUES


"Inner City Blues", Marvin Gaye (What's Going On)
Fotografia de Guto Ferreira.

PURIFICAR OS OLHOS PELO FOGO


Acho que é sempre mais fácil dizer quais são os meus livros preferidos do que os escritores. Mas nunca hesito no nome de Flannery O'Connor. Eis o início do texto publicado na última edição do suplemento IN da Notícias Sábado:

Com O Céu é dos Violentos, a Cavalo de Ferro prossegue a edição da obra de Flannery O’Connor (1925-1964), de quem o crítico literário Harold Bloom disse ter sido “a mais original entre os contistas americanos depois de Ernest Hemingway” (Como Ler e Porquê, Caminho). “Era uma moralista tão veemente que os leitores precisam de ter cuidado com a sua tendenciosidade”, avisa também Bloom, referindo-se ao fervoroso catolicismo da escritora sulista, nascida em Savannah, Geórgia, em pleno “Bible Belt” americano. Descontando alguma ironia na advertência, é certo que o moralismo de Flannery O’Connor segue por caminhos tão pouco óbvios que a atracção é praticamente irresistível. É difícil gostar das suas personagens, presas a um orgulho e a uma rudeza impenetráveis, quase sempre transtornadas pelos excessos da fé, da razão ou do vazio intermitente que há entre ambas. Mas o “gostar” tem pouco a ver com a literatura, e é pelo assombramento que estas personagens se insinuam e se acolhem, como velhos fantasmas, na casa da memória do leitor. Um deles é Francis Marion Tarwater, protagonista de O Céu é dos Violentos.(...)