sábado, 31 de janeiro de 2009

SANDRA LEE BECKETT EM LILLIPUT
Nem de propósito, Sandy Gageiro conversa hoje com Sandra Lee Beckett, autora de Crossover Fiction, em mais um “Lilliput”. Na parte final do programa “A Força das Coisas”, de Luís Caetano (aos sábados, das 16h00 às 18h00). Isto é o que se chama aproveitar as sinergias.

KIDULTS OU TWEENAGERS?


Duas espécies de leitores têm vindo a ganhar peso nas sociedades contemporâneas: os adultos que gostam de ler livros para crianças e adolescentes, a que os media se referem como “kidults”, “adultescents” ou “middlescents”; e as crianças cada vez mais precoces nos seus gostos e cognições, os “tweeagers”, “tween” ou “twennies”. O ponto de intersecção entre ambos encontra-se na chamada “crossover fiction”, expressão que dá título ao livro de Sandra Lee Beckett, professora na Universidade de Brock, Canadá. Fez parte do primeiro painel de convidados do congresso “Formar Leitores para Ler o Mundo” (ver aqui e aqui), com uma comunicação interessantíssima que, infelizmente, teve de ser lida a cem à hora por falta de mais tempo. No fórum que se seguiu, uma pessoa do público sugeriu traduzir “crossover fiction” por “literatura transversal”, para designar um conjunto crescente de obras que atravessam as preferências literárias de várias faixas etárias. Não é um fenómeno novo, mas houve um surto exponencial com o sucesso de Harry Potter. Sandra Lee Beckett apresentou outros exemplos de autores alinhados com esta tendência, cujas livros foram projectados no ecrã: Terry Pratchett, Artemis Fowl, Philip Pullman, David Almond, Mark Haddon, Tormod Haugen, Jostein Gaarder, Cornelia Funke e Aidan Chambers, entre outros.

“Muitos dos livros actuais para crianças e adolescentes têm hoje uma estrutura complexa, tanto no enredo como na caracterização das personagens”, afirmou Sandra Lee Beckett. Estes autores “mostram o lado mais escuro e caótico da vida, reflectindo o mundo actual”, evitando “os finais felizes a todo o custo” e tratando nos seus livros temas como “a guerra, o terrorismo, o suicídio, a xenofobia, o incesto ou a violência emocional”. E insistiu num ponto importante: “Não se trata de um fenómeno de marketing, mas de um fenómeno literário.”

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

ASSOMBROS NA RÁDIO


No próximo domingo, às 11h00, na Antena 1, passa o programa de Pedro Rolo Duarte em que blogues e bloggers ocupam parte de leão. O Jardim Assombrado vai estar lá (a gravação foi feita ontem). E claro que não foi combinado, mas o Pedro escolheu, para abrir, uma música que assombrou a minha infância: "Coro dos Tribunais", do Zeca Afonso (na versão de homenagem dos GNR). Teria uns sete ou oito anos quando comecei a ficar obcecada por uma letra mórbida que falava de chacais e de punhais, de imagens obscuras como “votar sobre um caixão”, e de incongruências como “o morto já não sente a dor”. É claro que não percebia bem o que queria dizer, mas intuía ali uma espécie de verdade universal que se associava ao meu conhecimento ainda reduzido das injustiças do mundo. Como não ter direito a mais livros novos enquanto não acabasse de ler o Romance da Raposa, que me custou horrores.

RECEITA PARA UMA NÃO-NOTÍCIA


Antigas receitas conventuais “desapareceram” misteriosamente dos arquivos da Torre do Tombo. Barrigas de freira e trouxas de ovos, imaginamo-las no papo de algum ladrão erudito e de bom gosto. Quem o diz é um chefe de cozinha, António Carlos Silva, apresentado em tom de metonímia como “o chefe Silva”. Em entrevista ao telejornal, o tal “chefe Silva” é afinal um desconhecido aos olhos do vulgo. O mesmo que afirma, sem grande rigor nem convicção, que as receitas levaram sumiço. Um responsável da Torre do Tombo, de luvas brancas e passo firme, com a música de Alfred Hitchcock Apresenta em fundo (juro), mostra às câmaras de televisão as pastas onde deveriam estar as receitas extraviadas. Afinal estão lá todas, não houve qualquer roubo. Equívoco ou confusão?, pergunta a jornalista. Nem uma coisa nem outra. Apenas uma maneira de inventar notícias quando não as há. Viva a criatividade. Hoje, na RTP 1.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

RECTIFICAÇÃO


Janet Frame está associada a um episódio que preferia esquecer. Comprei o livro cuja capa reproduzo aqui na Smith’s Bookshop, uma livraria de Christchurch, na ilha Sul da Nova Zelândia, em 2003. Uns meses depois deu matéria para o primeiro texto publicado na LER, na altura sob a direcção de Mafalda Lopes da Costa (“Uma livraria nos antípodas”, nº 59). Mas cometi um erro crasso, imperdoável, vergonhoso, digno das mais duras penas e das mais amargas mortificações… Escrevi Owls Don’t Cry em vez de Owls Do Cry. Provavelmente deixei-me levar pela canção dos Cure, Boys Don’t Cry. Não sei. Mas não houve oportunidade de fazer a rectificação. Um ano depois, quando voltei a Christchurch, achei por bem passar pela Smith’s Bookshop e cumprimentar o dono. Tinha-lhe enviado a revista, entretanto. Ele não percebeu uma palavra em português do artigo, mas fixou-se nos títulos dos livros citados. E a primeira coisa que disse, logo a seguir a um “olá” mal amanhado, foi: “Enganou-se no título. Escreveu Owls Don’t Cry.” Eu engoli em seco. Ele tinha razão, mas escusava de mostrar tanta razão. Faz uma pessoa 25 mil quilómetros de um lado ao outro do mundo para isto.

JANET FRAME MORREU HÁ CINCO ANOS


Janet Frame, a escritora contemporânea mais distinguida da Nova Zelândia, várias vezes citada para o Nobel da Literatura, morreu a 29 de Janeiro de 2004, faz hoje cinco anos. Discreta, solitária, cultivou uma existência dedicada à escrita, fora das luzes da ribalta. Internada num hospital psiquiátrico na juventude, sobreviveu a 200 electrochoques e a uma lobotomia, cancelada in extremis quando um médico soube que o seu primeiro livro de contos tinha recebido um prémio literário. É um daqueles casos em que se pode dizer com propriedade que a escrita salva. Entre 1951 e 1988, escreveu mais contos e novelas, poesia, um livro para crianças, uma autobiografia e onze romances. Em Portugal, apenas um se encontra traduzido: Os Cárpatos no Nosso Jardim (Caminho, 2004, tradução de António Costa Santos). Frame continua a ser aqui mais conhecida pela biografia cinematográfica de Jane Campion (também neozelandesa), o belíssimo Um Anjo à Minha Mesa. Que hei-de dizer? É apenas um dos cinco filmes que levaria para uma ilha deserta.

(Capa da biografia assinada por Michael King, Wrestling With the Angel: A Life of Janet Frame, publicada em 2000)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O LIVRO INFANTIL
"Em casa de ferreiro, espeto de pau". Só agora menciono o blogue de estreia da Pós-Graduação em Livro Infantil da Universidade Católica, onde também colaboro. As ilustrações rotativas no cabeçalho estão uma delícia. Vejam aqui.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

QUANDO (REALMENTE) SE FALA DE LIVROS

Adenda a um post anterior: o melhor do congresso “Formar Leitores Para Ler o Mundo”, organizado no final da semana passada pela Gulbenkian/Casa da Leitura, foi trazer a Lisboa uma pequena elite do pensamento contemporâneo sobre a literatura para crianças. No painel da manhã do primeiro dia e no fórum que se seguiu mais tarde, Peter Hunt, Lawrence Sipe, Maria Nikolajeva e Sandra Lee Beckett representaram uma lufada de ar fresco no modo habitual de comunicar. Constato, com alguma perplexidade, que neste tipo de encontros se fala muito de “como ler livros” e pouco de “que livros ler”, como se as chamadas boas práticas dispensassem o conhecimento prévio da literatura. É assim que os discursos se tornam circulares e, muitas vezes, demasiado pessoalizados para quem não se interessa tanto pelo que se passa nas aulas e nas bibliotecas, mas pelo que sustenta todo esse universo: os livros, a escrita e os autores (e quando falo de autores incluo aqui escritores e ilustradores).

Outra coisa: faltam quase sempre livros neste tipo de congressos. E uma montra de livros não serve só para “dar ambiente”; serve sobretudo para aceder ao que devia ser uma selecção de obras ajustadas à discussão das questões ligadas à literatura infantil, que passam quase completamente ao lado das livrarias portuguesas. Talvez assim a belíssima instalação comissariada por José António Portillo tivesse chamado mais gente, em vez de ficar a gravitar no vazio. Gente que não faltou nas extensas filas da cafetaria, a cada intervalo do congresso. Estão a imaginar 700 pessoas a querer tomar café ao mesmo tempo? (sim, porque fora dos intervalos a cafetaria fecha!) Um pesadelo tornado realidade. A Gulbenkian consegue organizar excelentes congressos como este, mas não consegue resolver o que não são mais do que peanuts? Não acredito.

PRÉMIO NEWBERY 2009


The Graveyard Book, de Neil Gaiman, publicado em Outubro de 2008 pela Bloomsbury, ganhou o prestigiado prémio Newbery 2009. No site da Amazon encontra-se uma lista dos livros distinguidos desde 1990. Em síntese:

“The Newbery Medal honors the year's most distinguished contribution to American literature for children. The medal was established in 1922 and is presented annually by the Association for Library Service to Children (ALSC), a division of the American Library Association (ALA). The recipient must be a citizen or resident of the United States.”

Depois do Newbery, o prémio mais importante – que contempla apenas picture books – é o Caldecott Medal, instituído em 1938:

“Awarded annually by the American Library Association to the illustrator of the most distinguished American picture book for children.”

Quanto ao prémio Printz, destina-se à escrita para adolescentes:

“The Michael L. Printz Award, first given in 2000, is an award for a book that exemplifies literary excellence in young adult literature. The honor was named for a Topeka, Kansas, school librarian who was a long-time active member of the Young Adult Library Services Association”

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

AWAY FROM THE SKY


"Away from the sky", Rickie Lee Jones (Flying Cowboys).
Fotografia de Guto Ferreira.
O NOVO CINEMA ALVALADE

Enfim, um cinema ao pé de casa. Inaugurado em 1953, encerrado em 1985, o Cinema Alvalade acordou de um sono prolongado e pouco tranquilo, a avaliar pelos maus-tratos por que passou. Chama-se, agora, Cinema City Classic Alvalade. Quatro salas pequenas, mas confortáveis, a maior das quais com 114 lugares e a menor com 80. Um café-bar aberto até tarde, para acompanhar as sessões da meia-noite. Na entrada, dão-se hossanas pelo restauro da pintura mural de Estrela Faria, que tinha desaparecido sob pêlo de alcatifa. Os monos de jardim de feição helénica eram dispensáveis (suponho que será o que os novos gestores entendem por “Classic”), assim como a terrível máquina de fazer pipocas e a música de fundo permanente. Na sessão a que fui, houve alguns problemas de projecção que levaram à interrupção do filme (O Estranho Caso de Benjamin Button, maravilhoso), mas pelo menos havia alguém lá fora para corrigir o problema. Não vamos criticar demasiado. Alexandre Pomar e o Jornal da Praceta lembram como eram as coisas antes.

domingo, 25 de janeiro de 2009

FALSO DÍPTICO


“As imagens de João Leal fazem parte do projecto em desenvolvimento Loose Pieces. Falsos dípticos, peças que, por estarem divididas, pretendem ser uma falsa alusão a algo inacabado.”

João Leal (Prémio Pedro Miguel Frade 2005) é um dos fotógrafos participantes do projecto Lab.65, que começou por ser uma galeria dedicada à fotografia, no Porto. Não deu certo. Os coleccionadores de arte continuam a desconfiar de uma invenção que ainda não fez 200 anos. Agora exclusivamente na Internet, a ideia passa por divulgar e tornar acessível a todas as bolsas uma ampla colecção de fotografias de autor em edições limitadas, para um valor unitário que vai desde 30 a 300 euros. Conheça o blogue da sua mentora, The Lone Lake.
SO DO I
O BlogOperatório colocou O Jardim Assombrado na sua lista de favoritos. Não vou continuar a “cadeia” porque ainda há pouco tempo fiz algo semelhante. Hoje poderia elaborar uma lista diferente, porque a blogosfera muda mais depressa do que os meus gostos, mas para já ficamos assim. Obrigada, Teófilo.

sábado, 24 de janeiro de 2009

A ENTREVISTA QUE NUNCA FIZ


Cada vez gosto mais de velhos, como disse no post anterior. Além do inegável truísmo – também estou a ficar velha –, há aqui uma espécie de má consciência, é verdade. Lamento não ter conhecido melhor alguns velhos da minha família, autênticos mananciais de histórias e testemunhos de um tempo que não vivi, mas cuja proximidade me assombra. Tenho um tio que fará, espero, cem anos em 2009. O meu Tio João emigrou clandestinamente de uma aldeia recôndita do Minho para a América, onde ajudou a construir prédios e linhas de comboio. Uma vez, quando já era jornalista e me sentia cheia de importância, disse-lhe que um dia lhe iria fazer “uma entrevista”, de gravador e tudo. Ele ficou entusiasmado. Sempre que eu ia à aldeia – a mesma aldeia onde passei parte da infância – o meu Tio João perguntava-me, cheio de esperança: “Então, Carla, quando é que fazemos a entrevista?” E eu, na estupidez dos meus vinte anos, e na estupidez dos meus trinta anos, sempre a adiar, sempre a deixar para a próxima vez. Até que a próxima vez foi se tornando cada vez mais esporádica e coisas de família se foram intrometendo pelo meio, para culminar numa ausência sem remissão possível. Apesar de voltar ao Minho de vez em quando, na Páscoa ou no Verão, há muitos anos que não vejo o meu Tio João. Mesmo que o pudesse ver, sei que está demasiado velho e doente para qualquer conversa desse género. Perdi a oportunidade de ouvir histórias que mais ninguém me poderá contar. E apesar de não ser dada a arrependimentos, porque acredito mais na aprendizagem do erro do que da virtude, se há coisa de que me arrependo, é dessa “entrevista” que nunca fiz.

(Fotografia de Rocha Peixoto, de 1901. Costumes da Serra de Arga. Edição do Museu Nogueira da Silva, Universidade do Minho)

OS VELHOS


Cada vez gosto mais de velhos. Olho à minha volta e vejo um país centrado nas crianças, oscilante entre a reverência e negligência. As crianças mandam em casa e mandam nos pais; são alvo de uma “permanente coquetterie” – como diz um dos meus amigos – que mantém toda a família ocupada num desvelo de presentes, actividades extra-escolares e festas de aniversário, a que elas respondem com o seu egocentrismo e ingratidão naturais. No outro extremo estão as crianças que pura e simplesmente não existem, que são um peso e uma maçada, controladas sob a ameaça do estalo, do desprezo e do insulto. No meio desta esquizofrenia, os velhos só têm que fazer uma coisa para serem tolerados: incomodar o menos possível. Falarem pouco, sem serem surdos; andarem pelo seu pé, sem saírem de casa; morrerem depressa, sem ficarem doentes. Acham que estou a ser cruel? Telefonem para um lar ou para um hospital qualquer: alguém falará dos velhos que não foram suficientemente incómodos para não ser abandonados, ontem ou um destes dias.

(Fotografia de Rocha Peixoto, do início do século XX. Um velho do Lindoso em traje rico da primeira metade do século XIX. Edição do Museu Nogueira da Silva, Universidade do Minho)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

ENID BLYTON VS. PHILIP PULLMAN


Casa cheia para o Congresso Internacional de Promoção da Leitura, organizado pela Gulbenkian/Casa da Leitura. Mais de 700 pessoas foram ontem ouvir o que significa “Formar Leitores Para Ler o Mundo”; isto é, entender a leitura como uma actividade completa (e complexa) que ultrapassa em muito as necessidades da mera literacia funcional. Recorrendo a uma das citações dos textos facultados: “Adquirir o hábito da leitura é construir um refúgio para quase todos os males do mundo.” (Somerset Maugham)

Depois da inauguração oficial, o dia começou da melhor forma com a conferência de abertura de Peter Hunt, um dos mais conceituados estudiosos da literatura infantil, habilíssimo na arte de comunicar. Assumindo-se como “um especialista em livros e não em leitura”, Peter Hunt avaliou os resultados do Ano Nacional da Leitura (2008) no Reino Unido, onde se constatou que uma em cada quatro pessoas não tinha lido um livro no ano anterior. Apesar do declarado aumento da frequência das bibliotecas, da distribuição de “livros simplificados” e da profusão de iniciativas relacionadas com a leitura, Hunt questiona a boa vontade das autoridades, perguntando: “Sim, mas que livros é que as pessoas andaram a ler?”

A constatação do professor da Universidade de Cardiff não é nova, mas foi bem sintetizada e melhor explicada. Pelo menos no Reino Unido, “a natureza da leitura mudou nos últimos 40 anos”, em função da mudança nos media em favor do audiovisual. Por sua vez, “as mudanças nos livros reflectem uma mudança no conceito de infância e na forma como as crianças interagem”. Ressalva: “Não é bom nem mau, é o que está a acontecer e temos de nos adaptar.” Segundo Hunt, as crianças de há cem anos “eram treinadas para fazer leituras mais complexas”, capacidade que tem sido progressivamente perdida com a invasão do mercado editorial por obras de qualidade menor. “O que chamamos ‘mainstream fiction’ está a mudar para ‘popular fiction’”, afirmou, apontando as falhas da actual escrita para crianças e adolescentes: é menos subtil, menos sugestiva, menos original e – o pior dos defeitos – menos recorrente de técnicas estilísticas literárias. “Mostrar em vez de contar tornou-se demasiado comum. E quando se mostra em vez de contar, roubam-se também as técnicas de leitura às pessoas.”

Arrancando gargalhadas ao auditório, Peter Hunt foi buscar o caso de dois clássicos do início do século XX, The Phoenix and the Carpet (E. Nesbit) e The Tale of Peter Rabbit (Beatrix Potter), comparando-os com as actuais versões adaptadas (também para televisão). As conclusões foram claramente enunciadas: perda real de vocabulário, empobrecimento do estilo de escrita, substituição dos conteúdos mais evocativos por descrições literais, aumento do discurso directo… A pergunta de Hunt parece-me absolutamente pertinente: “Será esta uma nova maneira de escrever? O que é que as crianças ganham com estes novos textos?”.

Questões que ficaram também à vista com a comparação de dois textos do género de aventura, um do anterior paradigma e outro recente – e mais fraco, no seu entender. Os nomes dos autores e respectivos títulos estavam escondidos e o auditório rendeu-se quando Hunt os revelou: a “velhinha” Enid Blyton e um dos livros de "Os Cinco", de 1953; e o premiadíssimo Philip Pullman e As Luzes do Norte, de 1996. Blyton venceu por larga vantagem.

É claro que há alguma “batota” (como o próprio admitiu) quando se escolhe determinada página em detrimento de outra. Certamente que haverá passagens no livro de Pullman muito superiores à que foi mostrada; e que Enid Blyton não mantém a mesma subtileza ao longo das páginas de Five Go Down to the Sea. Mas, essencialmente, os exemplos serviram para ilustrar a tendência que Peter Hunt tem observado e estudado, e que aponta para um decréscimo da qualidade versus aumento da produção de livros. Conclusão: “Tem havido uma regressão na escrita para crianças. Há uma falta de conhecimento do que foi publicado anteriormente, por parte das editoras; e há uma falta de vocabulário crítico para falar dos livros actuais.”

Como se situam os autores – escritores e ilustradores – perante este quadro pouco favorável, é o que me interessa perceber melhor. A organização do congresso não abriu tempo para perguntas a seguir às conferências, preferindo criar fóruns de debate para cada um dos painéis, hoje à tarde. Parece-me uma boa opção e lá estarei, para saber mais sobre “Literatura para a Infância e Formação de Leitores”, designação do painel que acolheu Peter Hunt e outros experts, moderados por José António Gomes.

Ontem, o segundo painel ocupou-se do tema “Estratégias de Leitura e Compreensão Leitora”, começando com a comunicação de outro nome de referência: Teresa Colomer, da Universidade Autónoma de Barcelona. Foram discursos mais densos e mais técnicos, que interessam sobretudo aos mediadores da leitura; em especial, professores e bibliotecários. A manhã de hoje segue a mesma linha, com o tema “Projectos de Promoção da Leitura”. A fechar, logo à tarde, o auditório ficará mais uma vez repleto para ouvir Fernando Savater, José Barata-Moura e Eduardo Marçal Grilo. “A Leitura em Debate” é o tema de encerramento. Não se iniba quem não se inscreveu, porque o congresso está a ser transmitido em várias salas da Gulbenkian em regime de videoconferência. E vale a pena.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

DE SAÍDA PARA A GULBENKIAN
Hoje e amanhã vou estar a acompanhar o congresso da Gulbenkian/Casa da Leitura, "Formar Leitores Para Ler o Mundo", de que espero dar conta aqui logo à noite. O conferencista de abertura do primeiro painel é Peter Hunt, escritor, ensaísta, crítico literário e professor na Universidade de Cardiff. O programa completo pode ser consultado aqui.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

MR. POE, I PRESUME


E com este elegante retrato devidamente subtraído ao generoso Irmão Lúcia, o gato preto retira-se do Jardim Assombrado, onde tem sempre um canto isolado à espera dele. Para escrever, é claro. Por falar nisso…

POE TROCADO POR MIÚDOS


Há uma série de livros de Edgar Allan Poe destinados a um público maioritariamente adolescente, quando é mais fácil vestir de preto sem ouvir permanentes remoques dos pais. Outros escritores prestaram-lhe homenagem, incorporando certos traços em novas personagens; caso de Lemony Snickett, autor da divertida colecção “Uma Série de Desgraças” (Terramar). Aqui, Mr. Poe é o nome do executor testamentário dos três irmãos Baudelaire, uma figura bisonha e atormentada pela tosse, simpática mas razoavelmente negligente na protecção dos miúdos. Na banda desenhada, Roman Dirge é outro autor declaradamente “Poe-esque”: a terrorífica personagem de Lenore, uma menina que vive entre o mundo dos vivos e dos mortos, estragando tudo o que toca, está no panteão do humor macabro e visceral. Há filmes no YouTube, não aconselháveis a crianças. O nome “Lenore” dá título a um dos poemas de Poe e surge também no célebre The Raven. Prefiro a voz de Christopher Walken, mas não se pode contornar as versões com filme de Williem Dafoe (incluída no disco The Raven, de Lou Reed) e do mestre Vincent Price, esta um pouco teatralizada. Escolha o seu corvo preferido.

OS PIORES VILÕES


A Feiticeira Branca – ou Bruxa Branca – inventada por C. S. Lewis para As Crónicas de Narnia (no cinema, interpretada por Tilda Swinton) é a figura maligna das histórias que está no top ten de uma lista de inquiridos pela Penguin Books. Segue-se o Capitão Gancho (Peter Pan, J.M. Barrie), a Poderosa Bruxa-Mor (As Bruxas, Roald Dahl), a Rainha Má de Branca de Neve (Irmãos Grimm) e Cruella de Vil (Os 101 Dálmatas, Dodie Smith). Num grupo dominado por clássicos da literatura infantil, a personagem mais recente acaba por ser o inominável Voldemort, tormento de Harry Potter. É preciso dizer que o inquérito foi dirigido a leitores adultos, o que talvez explique este top algo nostálgico. Ou isso ou já não se fazem vilões como antigamente.

Ver a lista completa no site do Telegraph.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

EDGAR ALLAN POE E TIM BURTON


No início da carreira, Tim Burton trabalhou para os estúdios da Disney; onde, escusado será dizer, não ganhou o prémio de Mr. Popularidade. Aí realizou o primeiro filme de autor, uma curta-metragem intitulada Vincent (1982), que podemos considerar como o antepassado de O Estranho Mundo de Jack. Narrada pela voz de Vincent Price, decano dos filmes de terror, tem como protagonista um miúdo obcecado com as mais negras fantasias – e, em particular, Edgar Allan Poe –, enquanto a mãe o tenta convencer de que é “um rapaz normal”. O You Tube permite-nos rever esta pequena maravilha.

A imagem do post é uma parte da ilustração do José Fragateiro para um texto (bastante mauzinho, devo dizer) que foi publicado há uns anos na Notícias Magazine, na secção "Paixões Secretas". Lá está Vincent e o seu canito esgrouviado, lindos.
COMENTÁRIOS IN
A partir de agora, a pedido de várias famílias, O Jardim Assombrado passa a contar com caixa de comentários sujeita a moderação prévia. Não incluí essa opção desde o início pela mesma razão por que antes não tinha um blogue: achei que não tinha tempo. Impura verdade. Como a experiência é a mãe de todas as coisas, já diziam os antigos, vamos a ver no que isto dá. Be my guests.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

HAPPY BIRTHDAY, MR. POE


A 19 de Janeiro de 1809, em Boston, faz hoje duzentos anos, nasceu Edgar Allan Poe, um dos escritores mais universais e intemporais de sempre. Morreu cedo e não foi amado pelos deuses, como qualquer gato preto que se preze. A nossa sorte é que ainda não acabou de gastar as suas sete vidas. 2009 é o Ano Poe.
FAULKNER E POE

“Faulkner was well acquainted with Poe’e work, especially the grotesque element in many of his stories. Very Poe-esque characters appear in the Snopes novels (especially Eula in The Hamlet); and several critics have noted resemblances between Quentin Compson in The Sound and The Fury and the speaker of Poe’s ‘The Raven’ – both are lovers mourning the loss of their cherished beauties and both are ‘visited’ – oddly so for the Faulkner novel – by a bird.”

(da biografia de Edgar Allan Poe, por James M. Hutchisson, University Press of Mississipi, 2005)

domingo, 18 de janeiro de 2009

O SOM E A FÚRIA DOS COMPSON


“Versh pôs-me no chão e entrámos no quarto da Mãe. Havia um fogo. Estava a subir e a descer nas paredes. Havia outro fogo no espelho. Eu podia cheirar a doença. Era um pano dobrado na cabeça da Mãe. O cabelo dela espalhava-se na almofada. O fogo não lhe chegava, mas brilhava-lhe na mão, onde os anéis dela estremeciam.”

(O Som e a Fúria, William Faulkner, Portugália Editora, tradução do inglês por Mário Henrique Leiria e H. Santos Carvalho, pág. 66)

Hoje, às 17h00, a companhia Elevator Repair Service estará na Culturgest para terceira e última representação do texto de William Faulkner, uma versão praticamente intacta da primeira parte de O Som e a Fúria. Actores em estado de graça (Susie Sokol no papel de Benjy em criança, impressionante) numa encenação que articula toda a polifonia de vozes narrativas, tempos e espaços diversos do romance no cenário de “uma sala de estar intemporal de uma família sulista”. O encenador John Collins afirma, na entrevista reproduzida no programa, que tudo começou com a imagem da casa da avó quando era criança: “Pensava nessa sala como um pouco assustadora e misteriosa. Estava sempre um pouco escura e tinha uma colecção de mobílias de épocas diferentes. O poder estranho que eu atribuía a essa sala permaneceu comigo. Portanto imaginei que seria um bom substituto para o cérebro sombrio, perturbado e misterioso de Benjy.”

Já não vale a pena ir comprar bilhetes. Está esgotadíssimo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

NA BIBLIOTECA DE…


O meu primeiro texto para a secção “Na biblioteca de…”, incluída nas páginas do IN, suplemento-que-não-é-bem-um-suplemento da Notícias Sábado (revista do Diário de Notícias e Jornal de Notícias), saiu hoje e é sobre um pintor: Carlos Barahona Possollo. Quando era miúdo queria ser egiptólogo, obsessão da qual não se curou completamente. Por ter enveredado por um registo figurativo chamam-lhe “conservador”, “académico” e “anacrónico”. Ele não se importa muito com a rotulagem. Está a preparar a próxima exposição para Março – na Sala do Veado da Faculdade de Ciências de Lisboa – e tem um site muito completo que pode ser visto aqui. Entre sem preconceitos e clique na imagem para ler o artigo.

A LAREIRA DE SOMERSET MAUGHAM


Isto não é mais do que um fait-divers destinado a quem se interessa pela memorabilia dos escritores. Na Casa-Museu da Fundação Medeiros e Almeida, entre salões carregados de mobiliário Luís XV e Luís XVI, pratarias e porcelanas que reflectem os gostos conservadores do proprietário, o único objecto de relevo associado ao mundo dos livros é, precisamente, uma lareira em mármore branco esculpido que pertenceu ao escritor Somerset Maugham, autor de Servidão Humana, O Fio da Navalha e outros romances e contos que hoje se consideram fora de moda. Li alguns durante a adolescência, por sugestão do meu pai, que neles via “uma psicologia profunda” (e que ficou muito decepcionado quando soube que Maugham era homossexual…). Gostava de os revisitar para ver que impressão me provocam agora.

Enfim, a lareira. António Medeiros e Almeida, homem de negócios e diplomata que deu cartas durante o anterior regime (embora o texto biográfico do catálogo o considere “muito ligado a Inglaterra”, “ajudando a gerir as tensões entre Winston Churchill e Salazar”) , comprou-a por sete mil libras num antiquário de Londres. Veio de uma casa em Chesham Place, onde Somerset Maugham terá passado pouco tempo, já que viveu sobretudo em França. Não foi propriamente uma pechincha, mas Medeiros e Almeida acumulou a sua opulenta colecção de artes decorativas sem olhar ao dinheiro, embora regateando o mais que podia, sob o argumento de que os objectos se destinavam à exposição pública, como de facto veio a acontecer. Aberta ao público em 2001, a Casa-Museu da Fundação Medeiros e Almeida é o centro nevrálgico de um quarteirão de Lisboa cujas rendas garantem a sobrevivência folgada da instituição. E isso representa uma tranquilidade para o visitante. Não há cá cheiros a humidade, correntes de ar, cantos mal iluminados e outras maleitas da maioria dos nossos museus. O sistema de luzes da exposição temporária “Realidade e Capricho”, um núcleo de pintura flamenga e holandesa, é um luxo. Quantas exposições de arte ou fotografia são mortas à partida pela ineficácia da iluminação…

Sente-se a falta de duas coisas “normais” numa moradia desta natureza: um jardim e uma biblioteca. O primeiro desapareceu para dar lugar à ampliação da colecção de arte. A segunda nunca existiu. Fica-se a pensar no acervo que poderia ter sido legado, se António Medeiros e Almeida fosse um homem dado aos livros. Não era. A lareira de Somerset Maugham não passou de uma pequena excentricidade de coleccionador. Também, não se pode ter tudo.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

TEASER
Sabiam que a lareira do escritor Somerset Maugham está em Lisboa, numa casa ali para os lados da Avenida de Liberdade?

MAY THE SUN SHINE BRIGHT FOR YOU


“May the Sun Shine Bright For You”, Primal Scream (Sonic Flower Groove).
Fotografia de Guto Ferreira.
I’M GOIN’ TO JACKSON
Será que a Tânia Raposo me empresta os headphones por um bocadinho?
FORMAR LEITORES PARA LER O MUNDO

Daqui a uma semana, Peter Hunt, Teresa Colomer, Fernando Savater e mais alguns experts vão falar para os muitos inscritos no Congresso Internacional de Promoção da Leitura organizado pelo projecto Gulbenkian/Casa da Leitura. Tantos que a organização teve de repensar e alargar o espaço disponível para os debates. Daí a falta de feed-back às inscrições, que já estava a inquietar algumas boas almas. Não se esqueçam: dias 22 e 23 de Janeiro. O programa completo pode ser consultado no site da Casa da Leitura.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

RETRATOS DE DUBLIN


Agora que já saiu a LER de Janeiro, aqui fica a referência a um livro que vale a pena traduzir:

Her Mother’s Face
Roddy Doyle
Ilustrações de Freya Blackwood
Scholastic

Da obra para crianças do vencedor do Booker Prize de 1993, chegou até nós Os Brincalhões (The Giggler Treatment), publicado pela Presença em 2000. Seria um regresso estimulante se alguém deitasse mãos ao último livro do escritor irlandês que nos deu o inesquecível As Aventuras de Paddy Clarke. Com Roddy Doyle, os personagens nunca são esquemáticos, mesmo se as suas vidas parecem simples e ajustadas às expectativas da working class. Em Her Mother’s Face, uma menina de nome Siobhán cresce na sua casa de Dublin, com muitos livros e um pai cuidadoso, mas sem ter referências da principal figura feminina. O pai guarda silêncio sobre a morte prematura que afectou a família; e guarda também as fotografias da mãe de Siobhán. Então surge a dúvida: como era ela? Pacientemente, deixando que o tempo conduza a narrativa, Doyle reconstitui a presença desse vazio que se instalou, para chegar a um final reconfortante em que tudo regressa ao seu núcleo afectivo e familiar.

sábado, 10 de janeiro de 2009

CITY-BREAKS: CALDAS DE MONCHIQUE


Agora vou ali ao Sul respirar um bocadinho e já volto. Era o que faltava, atravessar a barreira dos 40 em Lisboa. Vou é tratar-me bem, que já mereço. Até daqui a pouco.

THE COMING OF WISDOM WITH TIME


Though leaves are many, the root is one;
Through all the lying days of my youth
I swayed my leaves and flowers in the sun;
Now I may wither into the truth.

"The Coming of Wisdom with Time", W. B. Yeats, The Green Helmet and Other Poems, 1910

THE ROARING FORTIES



“The 'Roaring Forties' and the 'Furious Fifties' are terms often applied to the strong westerly winds which are experienced over the mid-latitudes of the Southern Hemisphere. But while this image of raging gales is accurate for much of the time the strength of these winds varies greatly from day to day, across the seasons and also from year to year.” (Fonte: Australian Antarctic Division)

Está quase. A década de todos os perigos. Ou talvez não.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A BAGAGEM DO VIAJANTE


Ainda um souvenir de uma tarde de chuva memorável no Porto: a passagem pela Livraria Caixotim, editora de A Maleta Literária - "Os Caminhos da Literatura" (ou como viajar em Portugal acompanhado pelos melhores escritores). Lá estão, num projecto concebido pela designer Helena Lobo, bem acondicionados em cartão duplo a quatro cores, Aquilino Ribeiro, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Ferreira de Castro, Guerra Junqueiro, João de Araújo Correia, José Régio, Miguel Torga, Teixeira de Pascoaes e Trindade Coelho. Em conversa com o livreiro Sérgio Sousa, ficámos a conhecer os nomes que vão completar a segunda série de roteiros literários a partir do primeiro trimestre de 2009: António Feijó, Raul Brandão e Pedro Homem de Mello. Comecem a fazer as malas.

OS OUTROS



O título deste post é uma evocação de um filme de terror (ia escrever “terror psicológico”, mas haverá outro?) de Alejandro Amenábar, que por sua vez remete para o livro de Henry James, The Turn of the Screw. Ando com vontade de o rever, mas ainda não arranjei ambiente. Lembro-me, muitas vezes, da cena de revisitação dos mortos nas fotografias a sépia, uma Nicole Kidman aterrada pela constatação de os mortos são os vivos e vice-versa. Da inquietação de quem é quem, num filme admirável que perturba as nossas noções estabilizadas de tempo, memória e consciência.

E isto vinha a propósito de quê? Ah, sim, da exposição que inaugura amanhã no Centro Comercial Braga Parque: “Retratos de Família”, uma amostra do espólio pertencente ao estúdio Photographia Aliança, ex-libris da cidade de Braga, onde por acaso também já vivi em tempos idos. Famílias minhotas da burguesia ascendente ou da remota nobreza rural, todas se apresentavam a preceito no “dia da fotografia”. Experimentem olhar para estas imagens sem sentir o arrepio das histórias escondidas sob estas poses e estes rostos. Pode ser, apenas, a forma como uma mão pousa sobre um certo ombro, ou um olhar altivo, ou o pressentimento de uma intimidade forçada e momentânea. Para ver até 27 de Fevereiro.

O PRÓXIMO LIVRO, 2


Não era suposto ter passado tanto tempo entre este post e o anterior, mas a vida é o que acontece fora dos nossos planos. Nem eu nem o Alex imaginávamos que um dia estaríamos prestes a fazer um livro juntos. Apesar de nos conhecermos há tanto tempo, passaram-se anos em que os nossos encontros eram apenas inesperados, literalmente ao virar da esquina. Ele perguntava-me sempre: “Então, ainda moras na mesma casa?” Sim, eu ainda morava na mesma casa e, entretanto, ele já tinha feito trinta por uma linha. Deve ser uma das pessoas que conheço que mais vezes mudou de casa, o que só de imaginar me deixa exausta. Mais tarde, comecei a ver umas ilustrações na primeira série da LER assinadas por um tal Alex Gozblau, mas não associei, porque se trata de um nom de plume. No entanto, tive a sensação instintiva (wishful thinking, provavelmente) de que um dia iria trabalhar com aquele tipo. Há cerca de dois anos encontrámo-nos por acaso na Silva! Designers, o atelier do Jorge Silva onde, de vez em quando, as nossas colaborações se cruzam. Como a maior parte dos Capricórnios, o Alex não é dado a grandes manifestações exteriores de afecto, mas levou com um abraço que se lixou. E pronto. Já estou a trabalhar com este tipo. Espero que a história que aí vem seja apenas a primeira de muitas. E darei conta do processo em curso nas semanas que se seguem.

PS – Resta esclarecer que a ilustração publicada neste e no post anterior pertence a uma série de inéditos do Alex Gozblau, não ao livro que temos (ainda virtualmente) em mãos. Mais ilustrações podem ser vistas em A Blue Dog’s Journal, que está aí ao lado, na lista dos “Links à Sombra”. Espreitem, se ainda não o fizeram antes.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O PRÓXIMO LIVRO, 1


Tenho tido a sorte de trabalhar com ilustradores de primeira água. Depois do Júlio Vanzeler (O gato e a Rainha Só) e do André Letria (Não Quero Usar Óculos), a próxima parceria vai ser com o Alex Gozblau, autor da belíssima ilustração acima. Temos fortes probabilidades de nos entendermos: somos ambos Capricórnio e do Sporting, o que já diz bastante quanto à capacidade de trabalho, esforço, tenacidade e resistência a longos invernos napoleónicos. Também dizem que temos mau feitio, mas isso são vozes da reacção. No essencial, estamos em sintonia. E só não digo que “este pode ser o princípio de uma bela amizade” porque nos conhecemos vai para vinte anos. Sim, nós somos do tempo do Rock Rendez-Vous, dos discos de vinil e das madrugadas na Feira da Ladra. Aliás, acho que foi mesmo aí que nos conhecemos. Mas não se iludam: ele nunca foi um "amigo de Alex".

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

ROCK E LITERATURA, 3


Desde que o Bibliotecário de Babel deu a conhecer o blogue Bookride e a colecção de bandas cujos nomes se inspiram em títulos ou personagens literárias, tem sido irresistível descobrir estas ligações. No campo da literatura para crianças também as há. No seguimento deste post e deste, lembro o caso de O Vento nos Salgueiros, o clássico de Kenneth Grahame que fez cem anos em 2008, e o capítulo mais estranho de todo o livro, The Piper at the Gates of Dawn (O flautista às portas da alvorada, na tradução de Júlio Henriques para as edições Tinta-da-China). Estranho porque é um capítulo autónomo em relação à economia da história; e estranho porque a descrição do encontro do Rato e do Toupeira com a música e a visão do misterioso flautista tem ressonâncias de êxtase religioso ou de experiências alucinogénias. Não sei se Kenneth Grahame, um respeitável funcionário do Bank of England, passou por qualquer um destes estados alterados de consciência, mas basta pensar que há cem anos a heroína era vendida como remédio contra a tosse e que misturas de álcool e ópio serviam para acalmar crianças recém-nascidas, para concluir que “trip” e “gripe” seriam termos que se tocariam com relativa facilidade.

A 5 de Agosto de 1967, com Syd Barrett, os Pink Floyd estreavam-se na cena musical inglesa com o álbum The Piper at the Gates of Dawn. Mais tarde, referiram-se ao seu mentor psicadélico como o “flautista”. Vejam e ouçam aqui.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

MEMORANDUM
Admito: os últimos dois posts são apenas um forma capciosa de lembrar que está na hora de escrever o terceiro livro.

domingo, 4 de janeiro de 2009

CARTAS A UM JOVEM ESCRITOR

“For me, the most satisfying part of being a writer is not the finished product; it’s when the plot starts to come together in your head. You’ve had this idea for a while that seems as if it might turn into a novel, but up until now you’ve had no more than the starting point. Maybe it’s a character or a situation, a time or a place, or even just a mood. It doesn’t matter. You can feel it there, like an itch. Every now and again, you scratch it. But it doesn’t go away.”

Leia o resto no blogue de Brian Keaney, Dreaming in Text, já citado no post anterior. Outros textos sobre as penas e prazeres de um escritor de livros para crianças e adolescentes, especialmente a ter em conta por quem segue o métier:

- Cinco maneiras de estragar um bom manuscrito;
- O que querem os editores;
- Palavras de encorajamento, quem não precisa?;
- A ansiedade das ideias brilhantes;
- A importância do final antes de a história começar;
- A angústia entre dois livros;
- Conselhos dos editores;
- O mito da inspiração, parte 1 e parte 2;
- O que faz um escritor quando não está a escrever.

E ainda:

- Como uma alucinação provocada por uma amigdalite aos 13 anos pode acender o desejo de escrever ficção.

CONFISSÕES DE UM ESCRITOR PARA CRIANÇAS


Brian Keaney, autor inglês de ascendência irlandesa, começou agora a ser publicado pela Gailivro, que editou o primeiro volume da trilogia “As Promessas do Dr. Sigmundus”, Gente Vazia (The Hollow People). Classificá-lo no género fantástico, na linha de Philip Pullman (que já lhe deu a sua bênção, aliás) é tão redutor como dizer que Philip K. Dick ou Ray Bradbury são autores de ficção científica. Ao fazer a pesquisa para os próximos textos da LER, descobri o blogue de Keaney, que li de uma assentada (infelizmente, não tem mais do que um ou dois posts por mês), não só por ser divertido como por fornecer pistas e considerações interessantes sobre o que é ser um escritor para crianças e adolescentes (ou, se preferirem, young adults), bem como sobre o tipo de reacções que tal escolha provoca. Por exemplo, quando um taxista insiste em contar a incrível ideia que teve para escrever um livro:

Cabbie: So what do you do then?
Me: I’m a writer.
Cabbie: What sort of thing do you write?
Me: Children’s books.
Cabbie: What, like that J K Rowling woman?
Me: Well, sort of, but obviously I’m not as successful as she is.
(LONG PAUSE DURING WHICH YOU CAN ACTUALLY HEAR CABBIE’S BRAIN WHIRRING.)
Cabbie: I’ve had an idea for a children’s book.
Me: Oh really?
Cabbie: Yeah. It’s pretty good, actually. Do you want to hear it?

Ler o resto aqui.

TESOUROS


Sem dúvida, o presente de Natal que mais gostei de receber este ano: a colecção completa, em dois álbuns, das Maravilhas do Mundo, uma publicação da Agência Portuguesa de Revistas vendida ao preço de 4$00. “Um verdadeiro tesouro instrutivo e recreativo, em maravilhosos cromos coloridos, ao alcance de todas as algibeiras!”

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O PORTO NUM RELANCE


Descer a Rua dos Clérigos depois de entrar no Centro Português de Fotografia e sair logo a seguir, hoje estamos fechados, a livraria só abre a partir das quatro, ficar pela exposição dos bacalhaus secos na Casa Oriental, que felizmente não encerra à segunda-feira, atravessar para a Rua do Almada e parar na loja dos chocolates Arcádia, a comemorar setenta e cinco anos, apreciar o sortido de bombons, as embalagens retro, sair com uma caixa de línguas de gato setenta por cento chocolate preto, seguir adiante até à Praça D. Filipa de Lencastre, esquadrinhar as prateleiras da loja Alma Viva, levar mais uma agenda para 2009 e um cheiro a folhas de Outono para o roupeiro, hesitar entre um café no Aviz ou no Ceuta, acabar por ir a nenhum, correr até à Rua de Cedofeita para comprar um guarda-chuva, o tempo está bom para o negócio e melhor do que este não encontra, menina, é de fabrico alemão, dois anos de garantia, chove copiosamente e a salvação do dilúvio encontra-se debaixo de um tecto impermeável verde-azeitona, a caminho do CCB, na Rua Miguel Bombarda, o único centro comercial do país que vale a pena conhecer e não só pelo jardim de bonsais, há por exemplo uma loja que não é loja, é um espaço de leituras públicas, algumas estão afixadas na parede desde o último encontro, cito, “contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o feixe das trevas que provém do seu tempo”, Georgio Agamben, fim de citação, na mesa ao canto há restos de pão, figos e queijo, tudo seco, sequíssimo, ao contrário deste dia que rebenta em água debaixo de um céu plúmbeo, o Porto é uma cidade de Inverno, como Praga, o sol assenta-lhe mal, as gaivotas atravessam a rasar a Praça dos Leões, o mar estará revolto, apetece uma torrada e um galão tranquilos mas só há tempo para resgatar um salgado da montra da Padaria Ribeirinha, passar à porta da Lello e regressar à Livraria Caixotim, que estava fechada à hora de almoço, ficar ali um bocadinho a namorar os tinteiros antigos e sair depois em direcção aos alfarrabistas, à procura de uma recolha de contos populares da Figueirinhas que desapareceu nas trocas de casa, ou de mãos, ou de gostos, tanto faz, termina-se a tarde no Café Lusitano com uma taça de vinho branco, na rua já é de noite e continua a chover, o jantar pode esperar, a família pode esperar, o Metro pode esperar, hoje o meu coração é de granito, deixem-me estar sossegada, amanhã logo se vê.

PS – A fotografia foi tirada há uns anos. Ainda os automóveis circulavam no tabuleiro superior da Ponte D. Luís, onde agora só passa o Metro.

VÍRUS FELINO


As últimas semanas foram férteis em pressas e distracções. Só assim se explica que tenha perdido o “vírus” gentilmente enviado pela Isabel Castanheira, da Loja 107. Felizmente, este é de uma estirpe que se instala e depois nunca mais quer sair.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

ANOTAR OS DIAS É TORNÁ-LOS NOTÁVEIS


Bem que gostaria de ter inventado o título deste post: "anotar os dias é torná-los notáveis". Mas quem escreveu esta e outras frases notáveis chama-se Eugénio Roda, como se pode confirmar na nova agenda das Edições Eterogémeas: 2009 Mundos a Céu Aberto. Participam 53 ilustradores, cujas técnicas vão desde a serigrafia ao suporte digital, passando pela tinta-da-china, acrílico, lápis de cor, aguarela e outras (e lá está também o recorte em papel do próprio Gémeo Luís). Cada planificação da semana tem uma frase entre o aforismo, o provérbio e o nonsense, além da ilustração. Esta pertence a Eleanor Marston, que misturou impressão com grafite. "Os gatos só astronomiam no universo das crianças", pode ler-se. Eu já tinha comprado uma agenda para 2009, mas não fui capaz de resistir. Se tiver dificuldade em encontrá-la à venda, consulte o site das Edições Eterogémeas e veja o catálogo completo, podendo fazer a encomenda por email. Para começar bem o ano e continuar por aí fora, a céu aberto.