quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO DE DEZEMBRO


O mundo jamais é parecido consigo próprio
tão inesperada é a noite,
mesmo quando em sua rotação se repete,
efectiva e extingue,
no corpo e cinzas de uma criança,

*
não vos espanteis por isso senhores,
dezembro é um solstício que nos sobrevive
e nada mais se anseia
do que abraçar todo o tempo do tempo
para seguir uma estrela viva,
um frágil e divino coração de criança
em homens aturdidos pelo afago da entrega,
guardai pois um Natal,
nada mais se reterá no cheiro do orvalho
que aconchegamos dentro de nós,

(...)

de Solstício de Dezembro, poema de João Rasteiro
Foto Bárcia, Matosinhos, Janeiro de 1971

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

ANA SALDANHA: SEM MARCAS DE CONDESCENDÊNCIA



«A geração dos nossos pais e avós deu-nos cabo da vida», diz um dos rapazes, o Doberman. «Depois admiram-se que a gente seja assim um bocado...». A frase é interrompida pelo toque do telemóvel de outro personagem. Três gerações cruzam-se num enredo familiar em que os personagens adultos não fazem de corpo presente, só para que os adolescentes se evidenciem. Todos são espelhos uns dos outros, mesmo quando, ou principalmente quando os diálogos resvalam para a incomunicabilidade. Marcas deste tempo, comerciais e emocionais, acompanham a travessia dos que ficaram. «Não é essa a questão», contrapõe o avô de Gonçalo e Maria, filhos de pais divorciados: «Aliás, os netos, agora, só telefonam, só aparecem quando precisam de alguma coisa. Os avós, para eles, são um caixa automático, mais nada.» Cruel? Ana Saldanha nunca é condescendente com os seus personagens, tão pouco com os leitores. «Vai-te foder» não é expressão comum na literatura para os mais novos (e, de qualquer modo, é o narrador a falar, não a autora). O recurso à metaficção fortalece o enredo, sem que o texto perca ritmo e agilidade. O final é avassalador, quase opressivo, e tudo se compõe sem que as marcas sejam apagadas.

Marcas
Ana Saldanha
Caminho

sábado, 17 de dezembro de 2016

MÁQUINA DE VOAR VEZES DOIS


A editora Máquina de Voar tem dois novos livros prontos a levantar voo. O primeiro é apresentado hoje no CCB, pelas 16h00, e é uma aventura literária de homenagem ao clássico de Maurice Sendak, Onde Vivem os Monstros. Com texto de João Ferreira Oliveira e ilustrações da Maria Bouza Pinto, dá pelo título de Monterrosso. Intrigados? Eles hoje desvendarão o porquê da escolha. Amanhã, é a vez Maria João Lopes (texto) e Teresa Cortez (ilustrações) explicarem o que é que os pais não sabem, com uma pequena ajuda de moi-même. O lançamento de Os Pais não Sabem, mas Eu Explico vai ser na Landeau, também às 16h00, e haverá bolo de chocolate. Apareçam! 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

INTERTEXTUALIDADES, 1


«Voltou-me ao espírito uma frase recorrente da minha mãe: Pára ou corto-te as mãos dizia ela quando me apanhava a mexer nas suas coisas de costureira. E essas suas palavras eram para mim verdadeiras tesouras, muito grandes e de metal brilhante, que lhe saíam da boca, lâminas que me abocanhavam os pulsos e deixavam em seu lugar cotos rematados pela agulha e os fios dos carrinhos de linha.»

(Elena Ferrante, Os Dias do Abandono, ed. Dom Quixote, 2004, tradução de Miguel Serras Pereira. Ilustração de S.J.-Ash para o conto dos irmãos Grimm, A Menina sem Mãos.) 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

WENDY NO DIVÃ: REVOLTA-TE, RAPARIGA!



WENDY DARLING Demasiado responsável, adulta antes do tempo, excessivamente permissiva e abnegada, convencional até na aparência, a filha mais velha dos Darling não parece ter grande história. Mas, sem ela, não saberíamos quem é Peter Pan.


Chegou a vez de Wendy se deitar no divã que tomou a liberdade de adoptar o seu nome. O caso de Wendy Moira Angela Darling, quando comparado com os de outros personagens, desde o psicótico Barba-Azul até à insuportavelmente narcisista Rainha Má da Branca de Neve, não parece representar grande perigo para a sociedade. Afinal, a ideia de prolongar a adolescência é apelativa para muitas personalidades; e há sempre uma (ou um) Wendy de serviço para fazer o papel de mãezinha. A vantagem da codependência é que ninguém fica a ganhar, certo? A nossa Wendy Darling é uma querida, e J. M. Barrie descreve-a com bastante profundidade. Há quem defenda o seu protagonismo na história, mas o glamour vai todo para Peter Pan. É ele quem a convida para contar histórias na Terra do Nunca, tarefa que Wendy assume com gosto, ao mesmo tempo que se mantém «muito ocupada a costurar» e a tratar de «cozinhados [que] a obrigavam a não tirar o nariz da panela». Cumprindo os seus deveres, torna-se imprescindível, e pelo meio apaixona-se por Peter, que «detestava todas as mães, excepto Wendy». O idílio não vai durar sempre. Movida pelos remorsos, Wendy regressa a casa, levando os irmãos e os Meninos Perdidos consigo. Casará, terá filhos e esquecerá como se voa. Quando volta a ver Peter Pan, já tem mais de vinte anos: sente-se «desprotegida e culpada, como uma adulta». Wendy, querida, qual seria o teu destino se tivesses enveredado pela pirataria?



(Último texto da série «Wendy no Divã», publicado na edição 143 da LER. No próximo número, a sair brevemente, começa a série «Grandes Viajantes», dedicada às personagens mais aventureiras da literatura para os mais novos – e não só.)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 26


«O mar acabara para os olhos de Macário, naquela noite. A areia frágil também acabara, e o rochedo esburacado como uma esponja pela erosão, e a sua laca de espuma e de sol, e debaixo dos barcos virados, as redes amarfanhadas em que peixes morriam e o amor, às vezes, principiava.»

Maria Gabriela Llansol, A Terra Fora do Sítio, in Os Pregos na Erva, ed. Portugália, 1962.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

CONTRA A VIOLÊNCIA SOBRE AS MULHERES


400 mulheres mortas às mãos de maridos, namorados e ex-companheiros no espaço de 10 anos. 400 vítimas, número redondo que é apenas ponta de um icebergue de violência e humilhação.

A partir de um problema ainda enraizado na sociedade portuguesa, a escritora Ana Cristina Silva construiu uma ficção que dá voz literária a um drama que se vive todos os dias. Lançado originalmente em 2004, A Mulher Transparente regressa para que, através de si, possamos ver com clareza um problema grave do Portugal contemporâneo, manchado pela violência física e psicológica que se exerce todos os dias no seio das relações mais íntimas.

Compreender a extrema vulnerabilidade psicológica destas mulheres, que vivem diariamente um nível de stress não muito diferente do das vítimas de tortura, é fundamental para lhes proporcionar ajuda. Só assim será possível interromper o ciclo de violência e de submissão a que estão sujeitas. A diminuição de casos desta natureza passa também por pôr em causa uma certa mentalidade colectiva que se reflecte em ditados populares como por exemplo “ entre marido e mulher não metas a colher” ou “quando mais me bates mais gosto de ti”. A história de cada mulher espancada comporta uma luta esgotante para sobreviver.

Na luta contra o silêncio e o desespero, as personagens como a protagonista de A Mulher Transparente podem ter um papel determinante. No fundo trata-se de trazer a Literatura para dentro da Cidadania.

As receitas referentes a direitos de autor desta edição de A Mulher Transparente revertem integralmente para a APAV — Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

 

LANÇAMENTO: 7 de dezembro | 18.00 | Biblioteca da Assembleia da República
Apresentação de Catarina Marcelino (Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade), Paulo Pisco (Deputado do PS) e Carla Maia de Almeida (escritora e jornalista.)

 

(Fonte: Booktailors)

sábado, 3 de dezembro de 2016

ESTÁ UM BOM DIA PARA CHORAR NO PORTO


«O Porto é um sítio fantástico para se visitar e viver. Também é um sítio óptimo para chorar desesperadamente. Por vezes, viajar é cansativo e confuso. Podemos sentir vontade de chorar; mas não temos onde, porque estamos enfiados no dormitório de um hostel com mais oito pessoas. Se só quer estar sozinho e deitar tudo cá para fora antes de se sentir capaz de enfrentar o mundo, este mapa é para si! Depois de cinco anos de intensa pesquisa, é com orgulho que lhe dou a conhecer os dez melhores sítios do Porto para chorar.»

(Tradução minha para a introdução ao Map For Crying Travellers, de Joana Estrela. Ver mais aqui. E aproveitem a chuva.)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

DEPOIS DE SANTIAGO




Apesar do frio persistente, não podia ter sido mais calorosa a recepção da comitiva portuguesa que participou no encontro Desfacendo a Raia - Literatura infantil e xuvenil na Galiza e em Portugal, uma inicitiva da Livraria Ciranda, de Santiago de Compostela, em parceria com a Gálix - Asociación Galega do Libro Infantil e Xuvenil. Cá estamos na primeira fotografia, por ordem de altura métrica: Joana Estrela, ilustradora e autora de Mana, álbum vencedor do Prémio Internacional de Serpa para Álbum Ilustrado 2015 (em primeiro plano na fotografia logo acima); a «je», no meio; e Benedita Barros, uma das responsáveis da editora Máquina de Voar. Os livros ao fundo, todos portugueses, vieram das estantes da Livraria Ciranda e são procurados não só pela qualidade como pela proximidade linguística ao galego, que cada vez se ouve menos nas ruas e nas escolas. Falou-se de escrita, de edição, de ilustração, de leitura, de educação e de outros temas que nos aproximam culturalmente, inclusive às horas do almoço (apesar de «almoço» se dizer «xantar», em galego). Daí o título do encontro, «Desfacendo a Raia», que é como quem diz: «desfazendo a fronteira». Esteve para se chamar «Borrando a Raia» (borrar=apagar), mas, felizmente, alguém se lembrou a tempo que, em português, «borrar» tem um significado completamente diferente!