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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 3


Ontem, Linha Verde do Metropolitano de Lisboa. Carruagens semi-vazias, o ar ainda leve da manhã. Há uma senhora com um cão enrolado aos pés, lugares a toda a volta. Sento-me à frente dela, abro a mala, abro o livro.
- Está a gostar?, pergunta-me.
- Muito.
- Eu já vou no quarto volume, mas o terceiro é diferente de todos.
- Porquê? (pergunto por amabilidade, no fundo não quero saber a resposta)
- Não sei, é diferente...
A senhora tem olhos claros, cabelo alourado, veste-se para não impressionar. Não parece portuguesa. Ao lado dela, senta-se agora uma mulher mais nova, dos seus trinta e poucos. Diz:
- Ah, é a Ferrante. Também ando a ler.
O cão, um épagneul breton ainda cachorro (percebo pelas orelhas, sou zero quanto a caninos), mexe-se irrequieto, pede festas, atenção, sente-se aconchegado. Parece um cão feliz. Chama-se Luca.
- Todos os meus outros cães tinham nomes de pintores, mas este não, diz a senhora. As minhas sobrinhas começaram a chamar-lhe "Luc, Luc..". E ficou Luca.
- E teve mais?, pergunto.
- Sempre. Quando morreu o último, um labrador, disse para o meu marido que não queria mais cães... Aquilo dói. Dali a um mês já tínhamos este.
- Fez bem, há cães como nós. E como se chamava o outro?
- Dali. Como o Salvador Dali.
Esquecemos a Ferrante, as famílias a ferro e fogo, a violência doméstica, a escrita que põe o leitor a correr por cima das linhas como se estas fossem cordas esticadas até ao limite do insuportável. Falamos antes de animais.
Chegamos à estação do Martim Moniz. Desejo um bom dia às minhas companheiras de viagem e despeço-me:
- Vou sair aqui.
Quando a porta do metro se abre, ainda ouço a senhora perguntar à mulher mais nova:
- E está a gostar da Ferrante?
Não ouço a resposta. Saio como se entrasse numa qualquer irmandade. Saio acompanhada. Pressinto que vai ser um bom dia. E foi.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 2


Hoje, ao final da tarde, na Linha Vermelha do Metropolitano de Lisboa. Um senhor bem vestido, mas com um aspecto muito cansado e, talvez por isso, parecendo mais velho do que na realidade seria, sentou-se no lugar vago ao meu lado:

- Saldanha?! Então, mas eu acabei de entrar no Saldanha!...
- Não se preocupe, é a voz que não está a bater certo com as estações, também já tinha reparado...
- Ah, pronto! Uma pessoa já lhe falha a memória, e eles ainda tornam isto pior. Olhe, minha senhora, não sei para que lemos tantos livros... Eu li tanta coisa e não me serve para nada.
- Oh... Então porque é que diz isso? Os livros...
- Porque, se calhar, o único objectivo disto tudo é segurar a bola...
- A bola?... Ah, quer dizer, a Terra.
- Pois, a Terra, o globo...
- Então, mas os livros fazem a civilização...
- Se calhar! Mas foram eles que nos puseram cá, para segurarmos a bola.
- Eles, quem?
- Os extraterrestres, os alienígenas...
- Ah... talvez...
- Isto é tudo muito cansativo. Uma pessoa nasce e morre, e depois acabou-se. Uns atrás dos outros. Para que servem os livros?
- Servem para as pessoas que ficam depois de nós...
- Essas depois também morrem. Se começamos a pensar nisso, ficamos doentes. Isto não faz sentido nenhum. Somos todos robots nas mãos deles, estamos aqui só para segurar a bola!
- Não diga isso.... Então e a arte? Para que serve a arte?
- Olhe, serve para provar que eles já cá estiveram. Deixaram desenhos nas grutas para provar que já cá estiveram. E um dia talvez voltem para salvar a bola, porque nós não conseguimos tomar conta dela.
- ..... (silêncio)
- Há cada vez mais máquinas e robots para nos substituir. Qualquer dia inventam robots para limpar a casa, já pensou?
- Eu acho que já inventaram robots para limpar a casa...
- Ai sim? Olhe, então talvez eu seja um robot e esteja a aqui a ser controlado por alguém. Quem me diz a mim que eu não sou um robot? Adeus, minha senhora, muito gosto em falar consigo. Feliz Natal!
- Para o senhor também, Feliz Natal!


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

ENCONTROS COM A MINHA ALMA GÉMEA, 1


À porta do Vasco da Gama, em Lisboa, dois jornalistas interpelam quem passa, armados de microfone e câmera. Param uma senhora dos seus 60 anos, mala de rodinhas e ar apressado. Fica uns segundos a falar com eles e segue adiante, resmungando.

- Que queriam saber? – pergunto-lhe, na passadeira.
- O que é que eu achava de não sei quem ter saído da quinta!
- Ah... aqueles programas tipo...
- Se me perguntassem o que é que eu acho dos atentados de Paris e das pessoas que trabalham, eu sabia o que dizer, agora a quinta! Quero lá saber da quinta! Francamente! Que nojo de país, este!

Foi assim o encontro com a minha alma gémea de hoje. Amanhã há mais.