segunda-feira, 29 de novembro de 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

A VIDA NÃO É UM MAR DE CHOCAPICS


Para quem faz contas à vida, os cereais do pequeno-almoço tornaram-se um dos terrores do orçamento familiar. Crianças e adolescentes – a quem o tempo da «meia sardinha» soa a nome de restaurante de praia – ingerem-nos com uma voracidade quase orgíaca, como se no fundo da embalagem houvesse uma cornucópia mágica que expelisse chocapics e estrelitas até à náusea. Ainda com a soma do último talão de supermercado plasmado na testa, os pais assistem ao esvair dos ordenados num oceano de flocos crocantes; enquanto à noite, para piorar as coisas, as telenovelas os tentam convencer de que qualquer família portuguesa moderna saboreia papaia importada ao pequeno-almoço.

Ao arrepio destes cenários tirânicos e perdulários, a troco de duas colheres de sopa, a Farinha 33 continua a render tal como no ano que assistiu ao seu heróico aparecimento: 1936. Produzida desde então pela empresa A Moreninha, com sede na Praça da Figueira, em Lisboa, contribuiu para o crescimento saudável de várias gerações – daí a sua designação, evocando o ancestral «diga 33» do escrutínio médico. Afinal, quem não se sente inspirado pelos fortes bíceps do rapaz da embalagem, capaz de quebrar correntes como qualquer Houdini de ginásio suburbano? Infelizmente, estas já mal se vêem, tal como os calções de tamanho micro, a salientar os efeitos fortificantes da farinha. Em seu lugar, estrategicamente colocado, recorta-se o slogan: «Alimento saudável composto só com produtos naturais». Também a Moreninha foi na cantiga do politicamente correcto, mas não podemos querer-lhe mal por isso. Vamos continuar a dizer 33 até que nos doam os bíceps.

(Texto publicado na edição de 3 de Outubro da Notícias Magazine, revista de domingo do DN e JN, na secção "Nostalgia".)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A CARTA DE OBAMA


Com ilustrações de Loren Long (o mesmo ilustrador de As Maçãs do Sr. Peabody, de Madonna), chega em breve às livrarias a tradução portuguesa do livro para crianças assinado por Barack Obama, De Ti Eu Canto - Carta às minhas filhas (Of Thee I Sing - Letter to my daughters), um retrato em 40 páginas de 13 heróis (ou anti-heróis) da História dos EUA – de Abraham Lincoln a Sitting Bull, de Billie Holliday a Helen Keller. A partir da segunda semana de Dezembro, com edição da Alêtheia.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

APRENDER A LER E A ESCREVER PARA CRIANÇAS

Clara Haddad, contadora de histórias brasileira, vai estar n’O Quarto da Lua esta sexta-feira, às 21h30 (Rua Almeida e Sousa, 25, cave). No dia seguinte e no mesmo local, entre as 10h00 e as 18h30, conduz o workshop “Entre Contos & Encantos”, com um programa onde vão ser tratados temas relativos à “expressão corporal, vocal, técnicas de narração oral cénica, diferenças entre o conto popular e de autor, estrutura de um conto, preparação de sessão de contos, ética e vários contextos de narração (hospitalar, terapêutico, performance, mediação de leitura)”. Se ainda houver vagas, a inscrição pode ser feita até ao próprio dia, através dos telefones 96 247 37 06, 931 156 558 e 91465 6372.

Atenção também à primeira oficina de escrita de livro infantil ministrada por David Machado, dia 11 de Dezembro, um sábado, cujo programa pode ser visto aqui. Também em Dezembro, mas nos dias 1 e 4, das 15h00 às 18h00, o Espaço Evoé, em Lisboa, promove um workshop de contadores de histórias com Carlos Marques. Informações pelos telefones 21 888 08 38, 96 381 65 05 e 96 446 26 02.

domingo, 21 de novembro de 2010

DRA. JECKYLL E MRS. HYDE


Um dos sonhos de qualquer criança que cresceu a ver televisão portuguesa nos anos 1970, praticando zapping entre dois canais, era ter um pijama vagamente parecido com os uniformes do Espaço: 1999. O outro era ser a Maya, ser amiga da Maya ou mesmo propor-lhe namoro, se as sobrancelhas ao estilo Frida Kahlo e as patilhas rockabilly não constituíssem entrave estético. Mas vamos aos uniformes, primeiro. É importante notar que não se assemelhavam a fatos de treino berrantes comprados na feira de Moscavide, como os de outras séries de ficção científica que se seguiram. Pelo contrário, exibiam uma elegância distinta, à imagem do Comandante John Koenig (Martin Landau) e da Dra. Helena Russel (Barbara Bain), que também formaram um casal invejável durante 36 anos, fora da Base Lunar Alfa. Bem vistas as coisas, comer a poeira da Lua não devia ser assim tão mau quando se habitava um lugar onde até havia um solário (é claro que, aos 7 anos, não fazíamos ideia da utilidade da coisa) e moças de biquíni e saltos altos que se passeavam por corredores de um branco virginal. Maya, a cientista do planeta Psychon adoptada pela Base Lunar Alfa, encarnava o lado selvagem e sensual da comunidade. O seu uniforme incluía minissaia e botas de cano alto; mas, mais importante do que isso, tinha o dom de se transformar numa pantera, num gorila ou num monstro nojento escorrendo baba e verdete, levando ao extremo a conhecida duplicidade feminina. Tinha pinta, a Maya. E depois, naquela altura, 1999 parecia tão longe que ninguém se imaginava com 30 anos, quanto mais com 40.

(Texto publicado na edição de 21 de Novembro da Notícias Magazine, revista de domingo no DN e JN, na secção "Nostalgia".)

sábado, 20 de novembro de 2010

HOMENAGEM A MATILDE ROSA ARAÚJO


As Bibliotecas Municipais de Lisboa, a Editorial Caminho e a Calendário das Letras irão prestar homenagem a Matilde Rosa Araújo. “Senhora de Tantos Tesouros” será um momento dedicado ao universo literário e à exploração da sua humanidade. Familiares, amigos e especialistas em literatura infantil reúnem-se dia 25 de Novembro, às 18.00 horas, na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras para celebrar a autora e a obra. A homenagem inclui a apresentação de O Livro da Tila, primeira obra infantil da Matilde, agora reeditada pela Caminho com ilustrações de Madalena Matoso e da obra inédita Florinda e o Pai Natal, com ilustrações de Maria Keil.

No programa constam comunicações de Ana Margarida Ramos ("Entreabrir uma caixinha mágica: a poesia da Tila"), Leonor Riscado ("A voz nua de uma fada verde – Matilde Rosa Araújo"), Jorge Silva ("Meninas das mãos de seda. A ilustração nos livros de Matilde"), leitura de poemas por Maria Barroso Soares, uma exposição bibliográfica e de ilustração de Maria Keil e Madalena Matoso, e ainda a venda de livros da autora.

(Informação enviada pela Caminho.)

VENCEDORES DO PRÉMIO MARIA ROSA COLAÇO

A Lusa adianta que “O Relógio Real, de Palmira Martins da Silva Baptista, e O Galo que Nunca Mais Cantou e Outras Fábulas, de Cassilda Saldanha, foram as obras distinguidas na edição deste ano do Prémio Literário Maria Rosa Colaço”, respectivamente, nas categorias de literatura infantil e literatura juvenil. Só uma pequena correcção: onde se lê “Cassilda Saldanha” deve ler-se “Ana Saldanha”. Notícia aqui.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

CIVILIZAÇÃO PASSA A EDITAR ROALD DAHL


A Civilização acaba de adquirir os direitos da obra de Roald Dahl em Portugal. O primeiro título, Charlie e a Fábrica de Chocolate, sai em Março de 2011. Seguem-se O Fantástico Senhor Raposo, em Junho, e James e o Pêssego Gigante, em Outubro. Não sei em que tipo de edições a Civilização está a pensar (de bolso? De capa flexível? Com novas traduções? Com ilustrações a cores?), mas será que a importância do autor não justifica um ritmo de publicação um bocado mais acelerado, sobretudo numa editora que lança dezenas de livros por mês? É só uma pergunta.

OS LIVROS E O LIVRÃO

Na minha ingenuidade pouco santa, pensei que esta campanha da Bertrand, desenvolvida em parceria com o Banco de Bens Doados e a Fundação Pro Dignitate, tivesse como objectivo a recolha de livros para crianças. Livros que as pessoas tivessem em casa e quisessem oferecer a instituições de solidariedade social, deixando-os no sítio criado para o efeito, o Livrão (um nome infeliz, pela ressonância evocada com os lixos recicláveis). Afinal, não é bem assim. A ideia é comprar os livros nas livrarias e só depois os oferecer. Que livros? Explicação do comunicado de imprensa: “A oferta incide sobre livros infantis e juvenis didácticos de baixo preço, com as Livrarias Bertrand a sugerirem uma lista de seis títulos que fazem parte do Plano Nacional da Leitura.” Aahhhhhh… Realmente, estava a achar que era muita fruta, mesmo para a época.

ENCONTROS LUSO-GALAICOS 2010

“Ao nível das fórmulas, assistimos há vários anos a uma reprodução no juvenil daquilo a que temos vindo a assistir no mercado para adultos: fantasia, romance histórico, e ícones que se repetem, como os piratas, os vampiros, e ao que tudo indica, os anjos. Todas estas fórmulas são devoradas pelos adolescentes e jovens, alimentando ainda mais este ciclo pernicioso.
Ora, terá então deixado de haver lugar para a narrativa realista e desempoeirada que Alice Vieira 'inaugurou' no Portugal democrático?
Há, claro que há.”

(Andreia Brites foi uma das participantes dos últimos Encontros Luso-Galaicos, este ano dedicado à literatura juvenil. Há um texto indispensável para ler no blogue O Bicho dos Livros.)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

YOU'RE THE ONE THAT I LOVE




Um daqueles movimentos que surge sabe-se lá de onde no Facebook, terminando de forma tão espontânea como começa, pede às pessoas que elejam um herói de infância (ou de banda desenhada, ainda não percebi bem…) e o coloquem na imagem de perfil. Uns dizem que é para durar até 20 de Novembro, outros que é durante todo o mês. Well… why not? Tenho tantos heróis que é um desperdício não os evocar, a propósito ou a despropósito. Hesitei entre a bela Marianne, “a Pérola de Labuan”, que tanto me impressionou ao morrer de febre nos braços de Sandokan; a enigmática Maya do Espaço: 1999; e a altiva Tigerlily, a princesa índia da história de Peter Pan. São mulheres magníficas. Mas acabei por escolher a personagem mais inspiradora de todas, Sara Crewe, A Little Princess, que moldou a minha confessada anglofilia e deu forma a uma imagem recorrente das figuras heróicas (indomáveis, arrogantes, alumbradas, inconformistas, estóicas...). Dediquei-lhe um longo post aqui: Imaginação e Stiff Upper Lip. As versões cinematográficas que conheço são inenarráveis de tão más, por isso o melhor mesmo é escolher qualquer uma destas capas de livros. A primeira será, talvez, mais bonita, mas a última é mais verdadeira.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

CARGA DE TRABALHOS


O tempo não anda bom para a jardinagem. Por causa disto - e outras coisas que não posso contar - este blogue tem estado inactivo nos últimos dias. As minhas desculpas aos leitores habituais e ocasionais. É a vida.

domingo, 7 de novembro de 2010

UM COMBOIO CHAMADO DESEJO


Há mais estações e apeadeiros abandonados em Portugal do que, à primeira vista, se possa pensar. Não falamos de lugares perdidos no meio da paisagem, já consumidos pelo mato e pela erosão, mas de todas essas estações de comboios progressivamente desumanizadas, cujo maior recurso é a diabólica máquina de vender bilhetes. Vejam-nas: estão por toda a parte, como um exército invasor vindo de uma cultura sofisticada, atirando-nos à cara as nossas lamentáveis e frágeis emoções: o desejo de estar em casa à hora do jogo, o medo de chegar tarde à entrevista de emprego, a urgência de abraçar alguém antes de que o mundo se desmorone de vez… E o que fazem essas máquinas de vender bilhetes, na sua insuportável arrogância robotizada? Confundem-nos. Irritam-nos. Desesperam-nos. Fazem-nos passar por parvos ou por turistas na nossa própria terra. Atrás de nós, forma-se uma fila de gente impaciente, que suspira e revira os olhos perante o nosso desaire, a nossa imperdoável demora, a nossa tão humana indecisão («Querem ver que por causa deste/a ainda vou perder o comboio?»). Ora, não devia ser assim. Viajar requer uma predisposição mental e emocional que não precisa destas mesquinhices para nada. A viagem deve começar num estado de entrega e confiança, não de exigência. Estações de comboio fantasmas, com máquinas no lugar de pessoas, deviam ser rigorosamente proibidas. Temos saudades do tempo em que um chefe de estação representava a civilização, mesmo no meio do nada, e havia sempre alguém atrás do guichet para responder a um simples pedido: «É um bilhete, se faz favor.»

(Texto publicado na edição de 7 de Novembro da Notícias Magazine, revista de domingo no DN e JN, na secção "Nostalgia".)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

ATENÇÃO A TODOS OS PASSAGEIROS

Última chamada para o (Mini)Curso de Livro Infantil, em parceria com a Booktailors. Inscrições até hoje à tarde...

Curso de Livro Infantil, por Carla Maia de Almeida

Objectivos: Este curso não é uma oficina de escrita nem está vocacionado para a formação do leitor e para as acções pedagógicas associadas à leitura. Pretende-se, sim, explorar o universo do livro infantil tomando-o como objecto total, privilegiando a componente literária, mas sem negligenciar outros campos como a ilustração, a edição ou a sua evolução histórica. Será dado ênfase ao livro para crianças e não para adolescentes, que consideramos integrado numa lógica de funcionamento própria. Serão mostrados e trazidos à discussão dezenas de títulos, sejam portugueses, traduções ou originais noutras línguas. Estas escolhas reflectem o gosto pessoal e as idiossincrasias da formadora e não têm qualquer pretensão de exaustividade nem de doutrinação.

1 ª Sessão: Era uma vez um reino incerto
Introdução ao curso. Que coisa é essa da «literatura infantil?». Origens e desenvolvimento do livro para crianças em Portugal. Do livro de conceitos ao romance juvenil: diferentes géneros de um produto editorial específico mas pleno de ambiguidades. Breve panorama do mercado do livro infantil. A quem serve a crítica da literatura infantil.

2ª Sessão: Contar para dar nomes às coisas
A percepção cosmológica da criança segundo Bachelard. Os contos como desdobramento da vida interior e construção de sentido. O lobo mau não é vegetariano – sobre a temida crueldade dos contos de fadas. Não há temas difíceis, apenas livros que funcionam (ou não). A importância de contar histórias e o impacto da tradição oral no livro infantil.

3 ª Sessão: Some like it hot
Características e especificidades da tradução de livros para crianças. Autores estrangeiros – das colecções de clássicos da era de ouro das publicações juvenis aos contemporâneos indispensáveis num Plano Pessoal de Leitura. A nossa selecção incompleta: Roald Dahl, Jutta Bauer, Babette Cole, Edward Gorey, Maurice Sendak, Javier Sáez Castán, Emily Gravett, Anthony Browne, Neil Gaiman e David Almond.

4 ª Sessão: A arte de iluminar as palavras
Breve História da ilustração de livros para crianças. Diferentes linguagens e técnicas de ilustração. A expansão do picture story book (ou álbum) como campo contemporâneo de experimentação estética. Relação entre texto e imagem: efeitos de ampliação e ressonância. O elo perdido no virar da página de um picture story book. Pop-ups e livros só com imagens são literatura?

5ª Sessão: Posso usar a palavra «vislumbrar»?
Escrever para crianças: a ilusão da facilidade. Transformar o simples em complexo e vice-versa. Noções de ritmo, fluência, densidade e substância. As boas ideias caem do céu. Os Onze Mandamentos do Escritor. Quando as projecções culturais e ideológicas da infância se intrometem na literatura. Escritores de livros para crianças e auto-imagem.

6 ª Sessão: Isso não é para a tua idade!
Como escolher livros para crianças. Chaves de interpretação qualitativas para texto e ilustração. Orientação de leituras por idades, interesses temáticos e personalidade. Cativar o leitor relutante. A leitura literária como factor de desenvolvimento da literacia e do sentido crítico. O livro para crianças à conquista de um público generalista. Bibliografia e outras fontes de informação institucionais e informais.

Ver mais aqui.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

ROALD DAHL: O GIGANTE NÃO TÃO SIMPÁTICO


Odiado por uns, amado pela maioria, Roald Dahl morreu há vinte anos. Autor de dezenas de short stories adaptadas para as séries de televisão Contos do Imprevisto e Hitchcock Apresenta, foi como escritor de literatura para crianças que se distinguiu, em parceria com o ilustrador Quentin Blake.

Só na década que precedeu a sua morte, a 23 de Novembro de 1990, venderam-se onze milhões de livros do escritor que um número indeterminado de professores, bibliotecários e críticos classificou como «não recomendável». Depois de morrer, em Oxford, aos 74 anos, feito o diagnóstico de leucemia e uma vida inteira de dedicação aos cigarros, álcool e analgésicos, Roald Dahl continuou – até hoje – a suscitar as mais antagónicas reacções.

Nos Estados Unidos, país onde se estreou literariamente, com uma narrativa de não-ficção sobre a sua experiência como piloto da RAF (publicada na Saturday Evening Post, em 1942), Dahl é agora inconciliável com os tempos do politicamente correcto. O seu humor selvático, sustentado numa predisposição intrínseca para a ironia e para o grotesco, atinge especialmente os personagens de adultos, muitas vezes retratados como bárbaros estúpidos e capazes das maiores vilanias contra os mais fracos. Veja-se o casal de Os Tontos (The Twits), Mrs. Trunchbull, a directora de escola em Matilde (Matilda), ou esse desfile de horrores carnavalescos que é As Bruxas (The Witches), uma das suas obras mais polémicas.

A enredos de estrutura transparente, consistindo no reavivar da luta mítica do herói contra o Mal, Roald Dahl acrescentou a singularidade da sua imaginação e a sua memória obsessiva (e o bom trabalho dos seus editores, justiça lhes seja feita). Nos seus livros não há sentimentalismos, mas há afectos e emoções intensas. Nascido em Cardiff, no País de Gales, de pais noruegueses, «vinha de uma família de bons cozinheiros e bons contadores de histórias», como lembra um dos seus biógrafos, Jeremy Treglown. A mãe foi, segundo o próprio, «a primeira influência», ampliada pelo desaparecimento prematuro do pai e de uma irmã, quando ele tinha apenas três anos.

Repetindo o padrão familiar, uma série de acontecimentos trágicos acompanharia a vida pessoal de Roald Dahl, ao longo dos trinta anos conturbados de casamento com a actriz Patricia Neal. Também a experiência dos colégios internos ingleses, com os seus castigos sádicos e permanente clima de bullying, lhe deixou marcas indeléveis. No entanto, muitos dos seus heróis e heroínas – quase sempre crianças – são animados por um espírito combativo e industrioso, expurgado do narcisismo e arrogância de que o autor era acusado, entre outros defeitos. O «gigante amigo», citando um dos seus livros mais felizes, O GAG (The BFG), podia não ter o melhor feitio e carácter do mundo, mas deixou-nos grandes livros, à imagem dos seus quase dois metros de altura.


(Texto publicado na edição nº 96 da LER. Por lapso, é dito que Matilde, Os Tontos e As Bruxas têm edição da Teorema, quando a colecção referida pertence à Terramar. No próximo número será feita a rectificação.)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, 28


Há pelo menos três viagens dentro da mesma viagem. Há a viagem da predisposição mental e emocional, feita de expectativas, projecções, planos e decisões práticas sobre que roupa e livros levar. Há, depois, a viagem propriamente dita, raras vezes correspondente ao que havíamos imaginado. Desenrola-se num estado de quase irrealidade, como um filme ou um sonho em que nos observamos à distância, incapazes de reconhecer o eco dos nossos passos em solo estrangeiro. É quando a viagem nos faz a nós, ao contrário da primeira. E há, por fim, a terceira viagem, síntese das anteriores e, de longe, a mais imprevisível. É a viagem do regresso a casa, do desfasamento das rotinas, da estranheza dos lugares e ruídos que antes nos eram familiares (as travagens bruscas dos automóveis na nossa rua, a chamada do editor a lembrar o texto para entregar, a campainha da loja de ferragens que sempre toca à passagem de um cliente…). Para exorcizar o medo do desconhecido, pousamos a bagagem e percorremos a casa e os objectos numa mistura de ansiedade e conforto, a fim de nos certificarmos de que tudo está, afinal, nos seus lugares. Mas essa é apenas uma mentira conveniente que contamos a nós próprios, porque nunca regressamos iguais ao que éramos, nem tão pouco o mundo permaneceu intacto à nossa espera. As verdadeiras viagens são as que nos trocam as voltas, as palavras e as evidências que tomamos por garantidas. Só passado o tempo justo e necessário é que conseguimos, eventualmente, abarcar a inteireza das três viagens a que tivemos direito.