domingo, 23 de agosto de 2009

UMA ENGRENAGEM CONTRA O REMORSO


“Estranho”, pensou o homem. “Nunca tive de tomar uma decisão assim. Decidir um destino, decidir entre a vida e a morte.” Não era como no supermercado, em que os bichos já estavam mortos e a responsabilidade não era sua – pelo menos não directamente. Você podia comê-los sem remorso. Havia toda uma engrenagem montada para afastar você do remorso. As galinhas vinham já esquartejadas, suas partes acondicionadas em bandejas congeladas, nada mais distante da sua responsabilidade. Os peixes jaziam expostos no gelo, com os olhos abertos mas sem vida. Exactamente, olhos de peixe morto. Mas você não decretara a morte deles. Claro, era com sua aprovação tácita que bovinos, ovinos, suínos, caprinos, galinhas e peixes eram assassinados para lhe dar de comer. Mas você não estava presente no acto, não escolhia a vítima, não dava a ordem. Não via o sangue. “De certa maneira”, pensou o homem, “vivi sempre assim, protegido das entranhas do mundo. Sem precisar de me comprometer. Sem encarar as vítimas.” Mas agora era preciso escolher.

(excerto da crónica de Luís Fernando Veríssimo, “A Truta”, publicada no Expresso desta semana)

Sem comentários: