"Nasci quando os meus pais já não se amavam. Cristina, a minha irmã mais velha, era nessa altura uma rapariguinha altiva, cujo simples olhar me tornava culpada de qualquer misteriosa ofensa contra a sua pessoa, que nunca consegui decifrar. Quanto aos meus irmãos Jerónimo e Fabián, gémeos e cheios de acne, não me ligavam nenhuma. De forma que os primeiros anos da minha vida foram bastante solitários. Uma das minhas mais antigas recordações remonta à noite em que vi correr o Unicórnio que vivia emoldurado na reprodução de uma famosa tapeçaria. Com assombrosa nitidez, vi-o começar a correr e desaparecer por um canto da moldura para reaparecer de imediato e retomar o seu lugar: lindo, branquíssimo e enigmático. Nunca soube por que razão o Unicórnio tentara fugir do quadro e isso intrigou-me durante muito tempo, e até me atemorizou um pouco. Por aqueles dias eu não devia ter mais de cinco anos – talvez apenas quatro –, mas essa recordação tem um lugar relevante entre as primeiras da minha vida. Às vezes, as recordações parecem-se com alguns objectos, aparentemente inúteis, pelos quais sentimos um confuso apego. Sem saber muito bem por que razão, não nos decidimos a deitá-los fora e acabam por se amontoar no fundo dessa gaveta que evitamos abrir, como se lá fôssemos encontrar alguma coisa que não desejamos, ou inclusive tememos vagamente."
(Excerto do primeiro capítulo do livro Paraíso Inabitado, de Ana María Matute, nome grande das letras espanholas que também deixou uma marca indelével na literatura para crianças. Uma edição Planeta.)
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