segunda-feira, 16 de maio de 2011

ADMIRÁVEL MUNDO ANTIGO


Em 1957, quando a Agência Portuguesa de Revistas lançou Maravilhas do Mundo II, a Praça de São Marcos e o Palácio dos Doges ainda não eram sítios a evitar por quem tem um pingo de fé na raça humana. Meio século depois, pensamos em Veneza e invade-nos um prenúncio de angústia e náusea, provocadas pelo pulsar de milhões de máquinas fotográficas a disparar em uníssono, embaladas num turbilhão de línguas e sorrisos circunstanciais. É assim em Veneza, na Catedral de Notre-Dame, no Mosteiro de Montserrat, no Taj Mahal, no Coliseu de Roma ou perto de qualquer «criação assombrosa do espírito e da mão do Homem», como então exaltava o editorial. A ideia de um vai e vem de barcos turísticos passando por baixo das pernas do Colosso de Rodes, à espera do ângulo exacto à sua brônzea privacidade, só não acontece porque o desgraçado há muito se precipitou no mar, vítima de terramoto. Valha-nos isso. Olhamos para estes cromos e sentimos a nostalgia de um mundo estranhamente despovoado, que se agudiza no primeiro álbum, dedicado às «maravilhas naturais da crosta terrestre». Aqui, são sobretudo as palavras que fazem ressurgir devaneios próprios da infância, quando nomes como os Penhascos Monstruosos de Jabalpur ou os Alcantilados da Heligolândia pareciam conter mais aventuras do que a própria ficção. «Súbitas e violentas tempestades põem em risco de morrer geladas as pessoas mais robustas», lia-se, no cromo do Mar de Gelo. E crescia pelo corpo um arrepio de medo que hoje nos deixa felizes, se o conseguirmos recuperar.


(Texto publicado na edição de 15 de Maio da Notícias Magazine, revista de domingo do Diário de Notícias e Jornal de Notícias, na secção "Nostalgia". Informação adicional: no original espanhol da Editorial Bruguera não havia cromos de «maravilhas portuguesas naturais». A Agência Portuguesa de Revistas acrescentou-lhe o Vale das Furnas, nos Açores, a Cabeça da Velha, na Serra da Estrela, e a Ilha da Madeira.)

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